Ainda a tratadística de arte do Renascimento como primeiro dos géneros literários.
31 Outubro 2019, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
O
Trattato di architettura de Antonio Averlino, o Filaret
e, segundo texto teórico sobre Arquitectura produzido em Itália, e primeiro redigido em volgare (italiano) e contendo ilustrações, foi elaborado entre 1461-64, por Antonio Averlino detto il Filarete (φιλαρετής = amante da virtude), na corte de Francesco Sforza, Duca di Milano, ao tempo em que trabalhava nos projectos e obras do Ospedale Maggiore di Milano. No Trattato é proposta uma Arquitectura e um sistema de proporções com base nas medidas e proporções do homem, pois Adão fora o primeiro arqui-tecto, e a Arquitectura e as edificações, uma consequência do pecado original, porque o homem, exposto às agruras do tempo, tinha necessidade de abrigo. Apresenta uma proposta desenhada e exaustivamente descrita de cidade ideal. de natureza utópica, Sforzinda, de forma circular e traçado rádio-concêntrico de grande regularidade, inspirada na descrição da cidade eólica de Vitrúvio, de que, historicamente, constitui a primeira interpretação com expressão desenhada. A Cidade de Sforzinda: situava-se em um vale, sob bons ares, fértil e abundante, e seria uma cidade ideal, integralmente planeada, erigida de uma só vez; estava contemplada a sua relação com o restante território. A forma global da cidade resultava de um círculo com dois quadrados circunscritos, um rodado 45º em relação ao outro. O traçado de ruas é do tipo rádio-concêntrico, irradiando de uma praça central. Era recintada por muralhas e um fosso de água, com canais convergindo para o centro. No centro da cidade localizava-se uma ampla praça porticada, para a qual se dispunha a catedral, o palácio do Signore, o do município, o do capitão; no meio da praça haveria uma torre, feita à minha maneira, tão alta que por ela se discernirá o país; essa praça era articulada com outras duas, mercantis. Noutros pontos da cidade havia e são descritas escolas separadas para rapazes e raparigas, a prisão e a Casa do Vício e da Virtude, misto de biblioteca, academia, taberna, e bordel, que visava contribuir para a perfeição moral dos cidadãos. – Haveria muitos outros edifícios e construções, como um Labirinto no acesso à Fortaleza do Signore. A cidade tinha dimensões colossais, com um diâmetro de 28 estádios, equivalente a 6,3 km, qualquer coisa como um perímetro de 20 km, e uma área total de mais de 30 km2, i. é, mais de 3.000 hectares. Enfim, considerando como densidade média 200 hab/ha, era cidade para cerca de 600.000 habitantes... o que nesse tempo nenhuma Capital da Europa tinha, andando, na sua maioria, pelos 100.000 a 200.000 habitantes. Na edificação da muralha trabalharam 102.000 homens durante 10 dias, e utilizaram-se 300 milhões de pedras! tudo minuciosamente calculado. Enfim, trata-se de uma utopia urbanística, correlacionada com uma utopia política – a utopia de uma cidade-estado, organizada segundo um ideal aristocrata, onde as casas da
poveragli são escassamente contempladas, reduzidas aos aspectos funcionais,
perchè non v’entra troppa spesa, neanche magistero –, e com um carácter de obsessiva organização e previsão, como se veio a revelar
Mas o utopismo de Filarete não se limita a Sforzinda, a cidade ideal: há toda uma série de propostas de edificação do território, de que constam Portos de Mar, Aquedutos, Pontes, Igrejas, Templos, Castelos, Torres, Palácios, Monumentos… Enfim, toda uma panóplia de construções, em que parece ressoar a Utopia Edificatória de Alberti, e um análogo desejo de construir o Mundo.próprio das utopias.A proposta urbanística de Leonardo da Vinci consiste num esquema de cidade de retícula quadrada, atravessada por canais derivados de um rio próximo; os canais e o rio tinham uma importância fundamental na estruturação da cidade do ponto de vista da higiene e da salubridade, e para a amenização do clima. As ruas seriam construídas em níveis diferentes: as do nível inferior eram destinadas à circulação de carros e outros transportes para as necessidades e o abastecimento do povo… Pelas ruas altas não devem andar carros nem outras coisas similares, sim que são só para uso dos gentis-homens. Deste modo, à diferença em níveis planimétricos das ruas corresponderia uma diferenciação de uso pelos níveis sociais da população. Pelas passagens subterrâneas devem-se vazar as retretes, estábulos e similares coisas fétidas. Estas iriam desaguar no rio, através de grandes esgotos. As casas eram elevadas sobre arcadas e formariam quarteirões na sua disposição, sendo outras, tipo casa-páteo, voltadas para o seu interior, mas também formando quarteirões. A cidade esboçada e descrita por Leonardo da Vinci parece, por um lado, prefigurar as grandes cidades contemporâneas, com níveis diferenciados de tráfego, que começaram por ser teorizadas, no princípio do Séc. XX, por Eugène Hénard, com o seu conceito de
rues pour étages, e que o crescimento do tráfego automóvel e dos meios de transporte colectivo pôs em prática, através de túneis, viadutos sobre-elevados, e galerias. Por outro lado, se se atender à prescrição da total separação de classes sociais pelos diferentes níveis de arruamentos, parecem evidenciar-se as cidades descritas nas distopias da Modernidade, de Aldous Huxley, Eugeni Zamiatine, e George Orwell, e que são o correlato urbanístico das sociedades absolutamente estratificadas descritas nessas distopias.