Sumários

Um balanço sobre a importância da Metodologia da Arte.

19 Dezembro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A nossa disciplina estuda a génese da disciplina da História-Crítica da Arte em atenção à problemática da construção de um discurso científico face da reivindicação de autonomia da arte, e as metodologias de abordagem com abertura a cruzamentos interdisciplinares, consciencializando para as práticas da conservação e da salvaguarda, e os inerentes conhecimentos de museologia e de organização estruturada de uma pesquisa analítico-descritiva devidamente contextualizada. 

À luz destas premissas, o programa enfatizou, assim, a urgência em formar profissionais aptos a assumir o estudo integrado da arte em perspectiva pluridisciplinar, numa visão alargada do fenómeno artístico com incidência no caso português e das artes do antigo império colonial, e seguindo o princípio da Gestão Integrada de Património Histórico-Artístico. Dão-se alguns estudos de caso exemplificadores.


Balanço da matéria dada: a gestão integrada de Património Artístico.

16 Dezembro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

«Afigura-se-me que há duas formas de olhar para as rápidas transformações por que o mundo passa. Muitos vêem sobretudo o que muda, outros procuram surpreender o que, a despeito delas, permanece». Estas palavras de Orlando Ribeiro (1945) sobre a inevitabilidade da perda face ao crescimento acelerado recordam-nos o conceito de ‘espírito de lugar’ avançado por Françoise Choay, reflectindo sobre o modo como progresso e salvaguarda de bens histórico-artísticos podem ser harmonizados à luz da Gestão Integrada do Património. Sob estas bases, a UNESCO valorizou, na Carta de Cracóvia sobre os Princípios para a Conservação e o Restauro do Património Construído (2000), os princípios de autenticidade e integridade como valores de aferição das identidades patrimoniais que, através da classificação, urge estudar, preservar, valorizar e dar a conhecer. Como é que esse princípio, à luz da História da Arte, se articula com as práticas da gestão Integrada do Património, é uma das funções da nossa disciplina.  


Arte na Antiga Índia portuguesa: noções gerais e linhas de investigação e salvaguarda.

12 Dezembro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 

     Goa como grande centro de produção imagética.

     Investigações realizadas nos últimos anos, designadamente o projecto científico De Artibus in Auream Goa, em curso de realização [1], permitiram dar relevo ao património artístico goês naquilo que diz respeito à menos conhecida das suas vertentes: a pintura sacra, tanto de cavalete como mural, produzida durante os séculos XVI e XVII. Trata-se de um acervo pictórico manifestamente importante, e que precisa de ser analisado com saber, em termos materiais e estilísticos.

      É certo que os elogios de escritores como Francisco Pyrard de Laval, no início do século XVII, à riqueza dos interiores das igrejas e palácios de Goa, já destavam as decorações auríferas e as pinturas cenográficas aí existentes [2] -- a fazer jus aos honrosos títulos de Goa Dourada e de Roma do Oriente por que era então conhecida a grande metrópole da Ásia portuguesa. Se a outrora vicejante arte de Goa foi sendo gradualmente alvo de ruína e abandono, tendo-se dispersado ou pura e simplesmente desaparecido um número significativo de espécimes, mesmo assim as pinturas murais e sobre madeira de teca que sobrevivem em altares da Sé, em Santa Mónica e São Francisco, no Rosário, em santo António, ou nas igrejas de Calangute, Ribandar, Chicalim, Rachol, Raj Bhavan, Navelim, Neurá, Reis Magos, e em vároias outras igrejas goesas, num total de duas centenas de espécimes, mostram que a riqueza da arte indo-portuguesa não se restringe à escultura, ao mobiliário e à ourivesaria, mas também à arte da pintura. Trata-se de uma realidade artística importante, posto que ainda mal pressentida, e que precisa de ser inventariada, estudada e, naturalmente, preservada e musealizada.

     No caso do Mosteiro de Santa Mónica, casa de freiras eremíticas de Santo Agostinho fundada por D. frei Aleixo de Meneses (que governou a Diocese de 1595 a 1609) e sito no chamado Monte Santo em Velha Goa, ainda se preserva um acervo pictórico abundante e de surpreendente mérito, onde avultam numerosos testemunhos de pintura mural e sobre madeira, do fim do século XVI e da primeira metade do século XVII, que valorizam a presença desta arte no território da antiga Índia portuguesa, tanto pela extensão como pela qualidade. O que sucede no caso deste Mosteiro é que ele não sofreu as circunstâncias destrutivas que conduziram no século XIX ao abandono e à ruína inerente dos palácios, conventos e igrejas goesas. Por isso, foi precisamente este mosteiro de agostinhas – conservado após a morte da última monja, em 1883, devido a circunstâncias que sempre lhe garantiram utilização funcional – aquele que melhor pôde preservar um largo acervo pictórico da época dos Filipes que nos ilumina sobre as valências artísticas na cidade ao tempo considerada, por não poucas razões, a Roma do Oriente.

      As pesquisas de arquivo já realizadas nos fundos documentais de velha Goa, conservados em Pangim [3] deixam concluir que existiram em Goa, desde fim do século XVI, uma série de pintores e douradores instalados, com oficinas abertas, activos para a cidade e para outros centros portugueses no Oriente, e senhores de uma linguagem artística própria. Tais pintores, que rivalizavam com os reinóis (artistas vindos do Reino, de passagem ou que se fixavam na metrópole), eram artistas competentes, não muito desfasados em relação aos parâmetros europeus e, sobretudo, peninsulares no que toca à produção de arte sacra.

      Para o olhar romântico do século XIX, este tipo de pintura beata, ultra-católica, com referências mais ou menos explícitas a um tempo ligado à Inquisição e ao que se viria a chamar a «lenda negra», não se mostrava especialmente atractiva. O escritor Richard Burton, por exemplo, disse que «the minor decoration of paintings and statues are inferior to those of any Italian church» [4] e, reportando-se concretamente ao claustro de Santa Mónica, que visitou, disse que «the frescoes  are one of the most grotesque description; Pontius Pilate is accomodated with a huge turkish turban; and other saints and sinners appear in costumes equally curiouys in a historical and pictorial point of view. Some groups, as for instance, the Jesuit Martyrs upom the walls of St. Francis, are absolutely ludicrous...»[5].


[1] Notas do projecto "De artibus in auream Goa" e à Fundação para Ciência e Tecnologia (SFRH / BPD / 103315/2014) através do programa QREN-POPH- tipologia 4.1, co-participado pelo Fundo Social Europeu (FSE) e por Fundos Nacionais do MCTES.

[2] Viagem de Francisco Pyrard de Laval contendo a notícia da sua navegação às Índias Orientais, Ilhas de Maldiova, Maluco e Brasil, e os diferentes casos que lhe acontecera na mesma viagem nos dez anos que vou nestes países, ed. de José Heliodoro da Cunha Rivara, 2ª ed., Porto, 1944, tomo II, p. 15.

[3] Vitor SERRÃO, «Pintura e Devoção em Goa no Tempo dos Filipes: o Mosteiro de Santa Mónica no ‘Monte Santo’ (c. 1606-1639) e os seus artistas» («Painting and worship in Goa during the period of iberian union: the Santa Mónica monastery at ‘Monte Santo’ (c. 1606-1639) and its artists»), revista Oriente, nº 20, 2011, pp. 11-50.

[4] Richard  BURTON, Goa and ther Bluen Mountains, London, 1851 (reed. Madras, 1998), p. 60.

[5] Idem, ib., p. 70.


Hibridismo e miscigenação artística: o caso da arte indo-portuguesa.

9 Dezembro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     A arte indo-portuguesa (tomando por comodidade metodológica esta designação comumente aceite) abrange o extraordinário acervo de realizações geradas durante os séculos XVI a XVIII no contexto das relações culturais estabelecidas pelos portugueses com os espaços do Índico e, em especial, no âmbito do antigo Estado Português da Índia. Sob essa designação se integram numerosíssimos testemunhos artísticos, desde a escultura de marfim e madeira à talha dourada, à ourivesaria e ao mobiliário, mas também à pintura, ao esgrafito, às ferragens, ao azulejo e à própria decoração da arquitectura (religiosa, militar e civil) nas suas componentes dialectais e nas suas morfologias distintivas, tal como foram produzidas durante os períodos a que, em contexto europeu, se convencionou chamar Tardo-Gótico, Manuelino, Renascimento, Maneirismo, Barroco, Rococó ou Neoclássico. Ou seja, trata-se de um capítulo extenso das artes móveis de origem ou influência extra-europeia, testemunho de uma forte miscigenação técnica e formal, envolvendo todos os campos da produção artística e formando um património de qualidade e valência excepcionais, capaz de correr mundo e conquistar o mercado colecionístico devido ao seu tónus exótico.

     A noção epistemológica de Arte do antigo Império Português justificou um significativo reforço das investigações pluri-disciplinares, estudos de divulgação, processos de conservação e restauro e inerente debate científico, sem esquecer a sua rigorosa definição terminológica. Assim, quando falamos de ‘arte ultramarina’, ‘luso-oriental’, ‘luso-indiana’, ‘lusíada’, do ‘mundo português’, ‘arte da expansão», ‘arte colonial’ ou simplesmente ‘arte indo-portuguesa’, referimo-nos a um acervo que abarca as artes da Índia tocada pelos portugueses (Goa, Damão, Diu, Cochim) que Mário Tavares Chico e Carlos de Azevedo tão bem analisaram no terreno, e as que brotaram em discursos sincréticos para a produção europeia, com estudos pioneiros de Madalena Cagigal e Silva, Bernardo Ferrão ou Maria Helena Mendes Pinto nos anos 60 e 70 do século passado e que foram muito desenvolvidos em anos recentes. Os últimos estudos vieram, finalmente, valorizá-la nas suas especificidades globais, notando-se, por vezes, que nem esta arte é apenas indiana e produzida na Índia, pois existem outros focos de produção que reclamam a mesma designação, nem a miscigenação presente nestes objectos, enquanto modelo ou tipologia, é exclusivamente portuguesa, porque em muitos casos trata-se de objectos de exportação para a Europa. Embora exista por vezes, entre a vasta produção em catálogos de exposições internacionais, a tentação de diminuir a originalidade da arte indo-portuguesa, explicando-a como mera produção indiana de exportação para o mercado português, a verdade é que a força sincrética deste tipo de peças e tão forte que não pode ser explicada senão no quadro de relações artísticas que lhe estão subjacentes.

     Num campo polémico e insuficientemente estudado como este, perduram naturalmente vertentes analíticas redutoras, como a exagerada valorização do pitoresco (no caso do mobiliário e do marfim luso-indiano), a subvalorização das expressões locais (sob o estigma de um decadentismo que seria sempre inevitável face à influência do ‘centro’ imperial, ou seja, Lisboa) e o destaque para a contribuição de temas de retorno que vieram enriquecer, numa espécie de mais-valia aberta pela Expansão, os repertórios europeus (representações exóticas da fauna e da flora, temas sincréticos, etc). É verdade que essa dimensão mais redutora tem sido ultrapassada por perspectivas críticas com disponibilidade para perceber melhor a originalidade absoluta da arte indo-portuguesa, sabendo olhar em conjunto para as suas especificidades, desvendando as qualidades de produção autóctone na sua exacta contextualização, pelas quais avultam, entre redes de influências díspares abertas com o curso da História, as pulsões originais. Importa, por isso, recorrer sempre a dois conceitos operativos para a leitura contextualizada da arte dita indo-portuguesa: o primeiro é o de intermediação multi-cultural (Barreto, 2013), que se ajusta, em salutar cruzamento micro-histórico, com o de miscigenação artística aplicada às artes ditas de periferia (Luís Filipe Thomaz, 1998). A produção emanada da antiga Índia portuguesa, e de outros territórios sob influência portuguesa, pode ser vista, assim, sob luz mais objectiva, reforçando o estudo integrado da novidade e multiplicidade de valências de um conjunto admirável de acervos artísticos através dos quais Portugal gerou relações de encontro recíproco com outros povos. É por isso que, como sintetizou Jorge Flores destacando o universo material das relações luso-orientais, «nos objectos se lê o Oriente português, tanto ou mais que nos documentos» (Flores, 1998, p. 51).

     Desde as primeiras referências às artes indo-portuguesas (como subcapítulo dentro do estrito campo das «artes decorativas») aos estudos mais recentes, abriram-se caminhos para se construírem desejáveis visões de síntese. É um campo de pesquisa que impõe uma dimensão integrada, sem nostálgicas derivas neo-colonialistas ou (no pólo oposto) ultra-chauvinistas, capaz de reavaliar os tecidos artísticos tal como foram concebidos -- fruto de diálogos e confrontos, bravuras e limitações, enriquecimentos e seguidismos, ousadias e retomas anacrónicas, linhas vernáculas e fugas rupturais, cruzamentos de formas, etc. Um celebrado número da revista Oceanos (CNCDP, 1994) intitulou-se, de modo entre o provocatório e o original, com a designação de Indo-Portuguêsmente para enfatizar esse grau de novidade da arte indo-portuguesa, capaz de multiplicar variações dialectais no discurso das artes a partir de processos de miscigenação cultural mais ou menos consequentes.

     Será necessário recuar às fontes de uma ‘fortuna crítica’ inevitavelmente breve para se perceber o que de significativo era intuível no panorama historiográfico. Já no início do século XVII os elogios que Francisco Pyrard de Laval e outros viajantes deixam registados sobre a riqueza das igrejas e palácios de Goa com suas imponentes decorações de talha, imagens, ouro, marfins e pintura cenográfica (a fazer jus aos títulos de Goa Dourada e de Roma do Oriente), atestam o significado exótico da arte indo-portuguesa e o previsível impacto de que ela era alvo, de há muito, nos mercados de compra de Lisboa, onde este tipo de peças era transacionado e seguia para toda a Europa. A qualidade das decorações remanescentes em Goa atesta que aí existia então uma série de artistas, canarins ou reinóis, activos nesse e noutros centros portugueses no Oriente, e sobre essas oficinas as recentes investigações contribuíram para um início de caracterização, identificando nomes e clientes, materiais e programas (Serrão, 2011; Lopes, 2011).

     O termo arte indo-portuguesa é geralmente utilizado, não sem discussão, a respeito dessa produção incidentemente realizada no contexto de tais relações. Trata-se de peças de património móvel, em geral escultura em marfim e madeira, oratórios, contadores, caixas, escritórios e demais peças de mobiliário, têxteis litúrgicos e civis, ourivesaria de prata e ouro, e também pintura mural e de cavalete, sem esquecer o lavor pétreo da construção, onde avultam os efeitos de uma interpenetração das culturas indiana e europeia, com maior ou menor ressonâncias em aspectos técnicos, formais, iconográficos, iconológicos, materiais e funcionais. Coube a Bernardo Ferrão analisar as origens do termo e destacar as suas origens inglesas (foi John Charles Robinson quem, em 1881, refere uma «arte indo-portuguesa» intuível em certas peças expostas no Special Loan Exhibition of Spanish and Portuguese Ornamental Art; Robinson, 1881), aplicado a uma produção artística maioritariamente goesa, mas alargada a uma actividade portuguesa inspirada nesses modelos e técnicas e no uso de novos materiais (no campo do mobiliário). O termo é tomado em lúcida análise da problemática artística indo-portuguesa pelo grande investigador Francisco Marques Sousa Viterbo no texto sobre a Exposição de Arte Ornamental (Sousa Viterbo, 1883), com acento no estudo das colchas à luz das suas fontes de inspiração, e no trabalho de artistas na Índia por artistas indígenas ou em Portugal por artistas nacionais sob influência indiana. Também o historiador de arte Joaquim de Vasconcelos, ao escrever sobre a Exposição Distrital de Aveiro (Vasconcelos, 1884), define tipologias de uma arte indo-portuguesa onde pressente a existência de três categorias: as peças produzidas em Portugal por artífices orientais aqui residentes, as que foram criadas por reinóis (artistas e artífices portugueses sediados no Oriente), e as peças importadas para a Europa oriundas da Índia portuguesa.

     Começam a valorizar-se assim, nos estudos de arte portuguesa, uma série de objectos portugueses nascidos em franca miscigenação com modelos indianos, a par de peças que chegavam do mundo asiático, com cotação muito elevada no mercado colecionístico, e cujo exotismo incitava à sua imitação. O estudo A Arte Portuguesa e a Arte Oriental de Luís Keil, apresentado ao Congresso do Mundo Português (Keil, 1940), analisa de modo pioneiro as influências artísticas abertas pelo encontro das diferentes culturas no decurso da presença portuguesa no contexto do antigo Estado da Índia, o que o levou a aprofundar a génese de tais discursos especificando as relações estabelecidas com as populações da costa do Malabar e definindo o estilo indo-português como produto de uma arte vernácula que se adapta a certos aspectos da cultura cristã ocidental, sem todavia deixar de respirar por pulmão próprio, o que confere máxima singularidade aos resultados obtidos nos mais diversos ‘géneros’ das artes. 

     À medida que o património é melhor conhecido (fora da estrita rede antiquária que durante muitos anos manteve uma espécie de monopólio em seu torno), a análise da singularidade da arte indo-portuguesa, quer da sua identidade quer dos seus significados intrínsecos, com a valorização dos ‘contextos regionais’ e das ‘especificidades artísticas’, foi possível levar a cabo abordagens micro-artísticas, unidas ao comparatismo formal que reforçaram o conhecimento das suas valências em campos como o mobiliário (Felgueiras, 1994), a ourivesaria (Vassalo, 1996) e a escultura de marfim (Ferrão, 1983), analisando a produção original e seriada, os intercâmbios artísticos e os intermediários de exportação, e aquilo a que se convencionou chamar a ‘viagem das formas’ (Dias, 1995). Os conceitos de ‘miscigenação’ e ‘mestiçagem artística’ foram também alvo de discussão, que persiste salutarmente em aberto. Sobre o ‘encontro de culturas’ centrado em Goa, que conheceu fases de enorme fulgor (o tempo do Arcebispo D. frei Aleixo de Meneses, de 1595 a 1612), reforça-se a partilha de fontes comuns de inspiração (em geral gravuras maneiristas ítalo-flamengas, mas também ressonâncias da arte mogol), em fecundos cruzamentos de influências que tornam essas linhas de produção luso-asiática fascinantes nos seus resultados.

     Marcados por visões muito distintas, tanto por uma perspectiva eurocêntrica, ou já por visões de entendimento globalizante, os estudos realizados partir dos anos 50 do século passado relançaram o interesse por este campo. Autores como Luís Keil, Maria José de Mendonça, João Couto, Reynaldo dos Santos, Madalena Cagigal e Silva, Maria Helena Mendes Pinto, Pedro Dias, José Meco, Sylvie Deswarte, José Manuel Fernandes, Isabel Mendonça, Paulo Pereira e, mais recentemente, Alexandra Curvelo, Maria João Pacheco Ferreira, Hélder Carita, Nuno Vassallo, Teresa Pacheco Pereira, Jessica Hallett, Miguel Cabral Moncada, Pedro Moura Carvalho, Manuel Castilho, Mário Roque, Rui Oliveira Lopes, Hugo Crespo, entre outros, alargaram o interesse da História da Arte e da Museografia pelo chamado Indo-Português, paulatinamente visto não só como uma curiosidade no contexto das artes decorativas do Mundo Português, mas como um subcapítulo artístico com absoluta originalidade e, pela força das miscigenações formais, com grande poder de abertura cultural, através dos sincretismos manifestados nos seus discursos simbólicos.

     O contributo para esta matéria dado por Maria Madalena Cagigal e Silva com o incontornável texto A Arte Indo-Portuguesa, capítulo da Arte Portuguesa, dirigida por João Barreira (Cagigal e Silva, 1951), abriu campo à definição do indo-português como «combinação especial de elementos indianos e portugueses ou ocidentais recebidos através do nosso país, resultante da fusão das diferentes formas de emprego da decoração, escolha dos motivos e técnicas», que tornam o resultado artístico absolutamente distintivo. Entretanto, John Irwin publicava o ensaio Reflections on Indoportuguese Art, onde fez uma síntese dos conhecimentos sobre o assunto, apresentando uma sistematização de categorias de produção indo-portuguesa (Irwin, 1955). Este autor aprofundou as três vertentes definidas por Joaquim de Vasconcelos (1884), reconhecendo também as peças produzidas por artistas locais em regime de independência, secundarizando a influência portuguesa, e ainda as peças criadas por autóctones alheias à influência local e totalmente subjugada pelas temáticas portuguesas (devendo ser, estas, obras de artífices cristianizados e viradas para a grande exportação). Note-se que, apesar de vinculado a uma perspectiva de cunho nacionalista, já Reynaldo dos Santos sabia visionar na arte indo-portuguesa, além da relação com o espaço geográfico em que foi gerada (o Estado Português da Índia), outros centros de produção como Malaca e a China (Santos, 1962), chegando mesmo a distinguir no caso dos têxteis, conforme destacou Maria João Pacheco Ferreira (2004), o bordado indiano do bordado chinês, e a destacar a importância da presença deste na Índia, ao nível das peças de cariz sacro. Reconhece-se que o estudo da arte indo-portuguesa também ganha em conhecimento se alargar o seu enfoque às peças produzidas por reinóis segundo protótipos orientais e já sem memória dos repertórios portugueses. É esta a perspectiva que domina, grosso modo, nos nossos dias.

     A Bernardo Ferrão Tavares e Távora coube contributo essencial no estudo da escultura de marfim e do mobiliário (Ferrão, 1983; 1990), em livros ancorados, um e outro, num suficiente levantamento de fontes e peças. É de notar que, com Bernardo Ferrão, o termo evolui mais uma vez, já que, da designação geral a toda a produção ligada às interpenetrações culturais entre Índia e Europa, se passa para definições mais específicas e segmentadas, que se limitam às culturas presentes no tipo de produção. Assim, é a partir dos livros deste autor, e dos trabalhos de Maria Helena Mendes Pinto, que a terminologia da História da Arte se enriquece com os termos (além do indo-português) artes sino-portuguesa, nipo-portuguesa e cingalo-portuguesa. Entretanto, Teotónio de Souza defendeu que nas «peças verdadeiramente indo-portuguesas» não se devem considerar as que foram produzidas por artistas (reinóis ou canarins) ligados à Companhia de Jesus, já que, como consequência da «forte capacidade da Ásia de resistir melhor do que os povos das Américas e da África às forças da expansão colonial», estas mantiveram o domínio das tradições artísticas indígenas face aos valores do cristianismo imposto (Souza, 1994). Seja como for, no próprio terreno de estudos da arte indo-portuguesa vem-se esbatendo a própria ideia de uma espécie de «centralidade» unívoca desde Goa, já que, reconhecendo-se que a capital do Estado Português da Índia foi um verdadeiro empório de comércio e produção de bens de luxo à escala mundial, tal papel só ganha sentido revalorizando-se outros pólos de produção coeva e concomitante, como Malaca, Ormuz, o Guzarate ou o Coromandel, no contexto de circulações formais com vários protagonistas (Crespo, 2014). É esta a perspectiva que domina, grosso modo, nos nossos dias.  

     O trabalho de investigação da arte indo-portuguesa tem sido dominado nos últimos anos pela análise dos marfins, do mobiliário, da joalharia, dos têxteis e da talha dourada, à luz de novos conhecimentos, sejam os exames técnicos periciais ou as pesquisas de arquivo e, ainda, os resultados de um cotejo estilístico alargado, mas não há que esquecer a importância dessa influência nos frontais de altar portugueses em azulejo do século XVII (Meco, 1985; Curvelo, 2012), bem como no campo da arquitectura. Sempre arredada dos estudos do Indo-Português, como se ele se restringisse ao património artístico móvel, a arquitectura sacra e civil mostra-se, afinal, como um campo onde a decoração de pedra ou de massa constituíu mais um espaço privilegiado para multiplicar os infinitos repertórios indo-portugueses, com os mesmos sincretismos e simbologias que prevalecem nas outras artes (Gomes, 2011).

     O colecionismo artístico à luz da metodologia e prática da História da Arte foi também alvo de aprofundamento em anos recentes, estudando-se inventários de bens e colecções portuguesas onde o exotismo dos «novos mundos» impera, desde datas temporãs do século XVI, como um grau distintivo face ao colecionismo de outros países. A atracção pelos temários exóticos e orientalistas explica a presença de tantas peças de marfim, mobiliário, têxteis e cerâmica oriundas de palcos asiáticos e sincreticamente moldadas por tais discursos simbólico-religiosos plurais. O estudo das colecções, tanto de corte como da grande nobreza, e também de mercadores, de conventos, de confrarias e irmandades mostra como, nos séculos XVII e XVIII, era constante a presença de objectos indo-portugueses, assumidamente vistos como mais-valias na raridade e no preçário.

     É certo que o estudo globalizante da arte indo-portuguesa continua a constituir um capítulo adiado da História da Arte, o que se explica pela dispersão das peças nos mercados antiquários e nos grandes museus e colecções privadas, e pela sua excepcional quantidade e diversidade. Cremos, todavia, que o esforço de gerações de estudiosos conduziu a um conhecimento mais aprofundado de tais manifestações artísticas de «ponte» entre os palcos da Índia e da Europa, ao longo da Idade Moderna. Foi possível perceber, assim, um corpo de produção unívoco – a que chamamos arte indo-portuguesa – onde se valorizam em igual medida a produção autóctone (incluindo aquela que realiza obras para a grande exportação) e a produção que a partir de Portugal se soube miscigenar num sólido e fecundo intercâmbio cultural em vários sentidos. Quer as correntes artísticas goesas e indianas, quer a arte dos ‘reinóis’, quer a das oficinas portuguesas que assumem de seguida os sincretismos e as influências, quer sobretudo os fenómenos de simbiose, perpetuação, fusões de estilemas e comunhão de modelos, ajudam de per si e no seu conjunto a caracterizar e diferenciar estes notabilíssimos patrimónios de tronco lusófono, que atestam o seu peso e importância no conjunto do Património do Mundo e se alargam a novos campos de pesquisa, abrindo espaço para projectos interdisciplinares de investigação.

 

Bibliografia

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Noções sobre Gestão e Salvaguarda do Património Histórico-Artístico.

5 Dezembro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Um dos magnos problemas com que se debatem os historiadores de arte, os conservadores-restauradores, os cientistas e técnicos de laboratório, os museólogos e, de uma forma geral, todos quantos trabalham com pintura antiga, é o de ainda não sabermos descortinar com a necessária aproximação crítica, aliada à objectividade histórica, quais os critérios de intervenção em peças pictóricas que foram realizados ao longo dos tempos.

As questões que se levantam são múltiplas. Porque motivos é que muitas peças antigas, sejam pintura ou escultura ou outras, de uma maneira geral aquilo que designamos grosso modo como obras de arte, justificaram intervenção «restaurativa» quando, fruto das circunstâncias históricas, das mudanças funcionais e dos efeitos degadativos, deixaram de cumprir o papel para que tinham sido inicialmente concebidas? Afinal porque razão, ou ordem de razões, uma peça pictórica foi alvo de ‘restauro’ numa conjuntura histórica posterior? E quem se ocupou de tais tarefas: meros artífices de decoração ou conceituados artistas ligados ao melhor escol da criação coetânea? De que modos e em que moldes, em que condicionantes, e com que apoio técnico, tais operações eram realizadas? Que significa precisamente a utilização do conceito de «restauro de obras de arte» no âmbito da actividade corrente de um mestre pintor do século XVI, do século XVII ou do século XVIII? Afinal, quando é que, em boa verdade, é legítimo falar-se de «restauro de obras de arte» como um trabalho metodologicamente estruturado, tecnicamente sério, coerente com a integridade do corpo intervencionado e, como tal, com a sua base científica?


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