Arte na Antiga Índia portuguesa: noções gerais e linhas de investigação e salvaguarda.
12 Dezembro 2019, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Goa como grande centro de produção imagética.
Investigações realizadas nos últimos anos, designadamente o projecto científico De Artibus in Auream Goa, em curso de realização [1], permitiram dar relevo ao património artístico goês naquilo que diz respeito à menos conhecida das suas vertentes: a pintura sacra, tanto de cavalete como mural, produzida durante os séculos XVI e XVII. Trata-se de um acervo pictórico manifestamente importante, e que precisa de ser analisado com saber, em termos materiais e estilísticos.
É certo que os elogios de escritores como Francisco Pyrard de Laval, no início do século XVII, à riqueza dos interiores das igrejas e palácios de Goa, já destavam as decorações auríferas e as pinturas cenográficas aí existentes [2] -- a fazer jus aos honrosos títulos de Goa Dourada e de Roma do Oriente por que era então conhecida a grande metrópole da Ásia portuguesa. Se a outrora vicejante arte de Goa foi sendo gradualmente alvo de ruína e abandono, tendo-se dispersado ou pura e simplesmente desaparecido um número significativo de espécimes, mesmo assim as pinturas murais e sobre madeira de teca que sobrevivem em altares da Sé, em Santa Mónica e São Francisco, no Rosário, em santo António, ou nas igrejas de Calangute, Ribandar, Chicalim, Rachol, Raj Bhavan, Navelim, Neurá, Reis Magos, e em vároias outras igrejas goesas, num total de duas centenas de espécimes, mostram que a riqueza da arte indo-portuguesa não se restringe à escultura, ao mobiliário e à ourivesaria, mas também à arte da pintura. Trata-se de uma realidade artística importante, posto que ainda mal pressentida, e que precisa de ser inventariada, estudada e, naturalmente, preservada e musealizada.
No caso do Mosteiro de Santa Mónica, casa de freiras eremíticas de Santo Agostinho fundada por D. frei Aleixo de Meneses (que governou a Diocese de 1595 a 1609) e sito no chamado Monte Santo em Velha Goa, ainda se preserva um acervo pictórico abundante e de surpreendente mérito, onde avultam numerosos testemunhos de pintura mural e sobre madeira, do fim do século XVI e da primeira metade do século XVII, que valorizam a presença desta arte no território da antiga Índia portuguesa, tanto pela extensão como pela qualidade. O que sucede no caso deste Mosteiro é que ele não sofreu as circunstâncias destrutivas que conduziram no século XIX ao abandono e à ruína inerente dos palácios, conventos e igrejas goesas. Por isso, foi precisamente este mosteiro de agostinhas – conservado após a morte da última monja, em 1883, devido a circunstâncias que sempre lhe garantiram utilização funcional – aquele que melhor pôde preservar um largo acervo pictórico da época dos Filipes que nos ilumina sobre as valências artísticas na cidade ao tempo considerada, por não poucas razões, a Roma do Oriente.
As pesquisas de arquivo já realizadas nos fundos documentais de velha Goa, conservados em Pangim [3] deixam concluir que existiram em Goa, desde fim do século XVI, uma série de pintores e douradores instalados, com oficinas abertas, activos para a cidade e para outros centros portugueses no Oriente, e senhores de uma linguagem artística própria. Tais pintores, que rivalizavam com os reinóis (artistas vindos do Reino, de passagem ou que se fixavam na metrópole), eram artistas competentes, não muito desfasados em relação aos parâmetros europeus e, sobretudo, peninsulares no que toca à produção de arte sacra.
Para o olhar romântico do século XIX, este tipo de pintura beata, ultra-católica, com referências mais ou menos explícitas a um tempo ligado à Inquisição e ao que se viria a chamar a «lenda negra», não se mostrava especialmente atractiva. O escritor Richard Burton, por exemplo, disse que «the minor decoration of paintings and statues are inferior to those of any Italian church» [4] e, reportando-se concretamente ao claustro de Santa Mónica, que visitou, disse que «the frescoes are one of the most grotesque description; Pontius Pilate is accomodated with a huge turkish turban; and other saints and sinners appear in costumes equally curiouys in a historical and pictorial point of view. Some groups, as for instance, the Jesuit Martyrs upom the walls of St. Francis, are absolutely ludicrous...»[5].
[1] Notas do projecto "De artibus in auream Goa" e à Fundação para Ciência e Tecnologia (SFRH / BPD / 103315/2014) através do programa QREN-POPH- tipologia 4.1, co-participado pelo Fundo Social Europeu (FSE) e por Fundos Nacionais do MCTES.
[2] Viagem de Francisco Pyrard de Laval contendo a notícia da sua navegação às Índias Orientais, Ilhas de Maldiova, Maluco e Brasil, e os diferentes casos que lhe acontecera na mesma viagem nos dez anos que vou nestes países, ed. de José Heliodoro da Cunha Rivara, 2ª ed., Porto, 1944, tomo II, p. 15.
[3] Vitor SERRÃO, «Pintura e Devoção em Goa no Tempo dos Filipes: o Mosteiro de Santa Mónica no ‘Monte Santo’ (c. 1606-1639) e os seus artistas» («Painting and worship in Goa during the period of iberian union: the Santa Mónica monastery at ‘Monte Santo’ (c. 1606-1639) and its artists»), revista Oriente, nº 20, 2011, pp. 11-50.
[4] Richard BURTON, Goa and ther Bluen Mountains, London, 1851 (reed. Madras, 1998), p. 60.
[5] Idem, ib., p. 70.