De Artesão a Artista, no caminho da liberalidade e a consciência de um novo estatuto de emancipação social.
21 Outubro 2019, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A reivindicação de um estatuto de liberalidade é uma constante na literatura do Humanismo da época de D. João III, antes mesmo de um Francisco de Holanda regressar de Roma e escrever o tratado Da Pintura Antigua (1548). Para os bons artistas nacionais, que a exigência de qualidade da arte praticada tornava homens cultos, era absolutamente humilhante que, ainda em 1539, o Regimento dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa continuasse a considerar pintores, escultores e arquitectos como «oficiais mecânicos» sujeitos aos deveres gremiais e às obrigações das Bandeiras corporativas... A reivindicação de uma dimensão estatutária por parte dos nossos artistas do século XVI, à luz do que na Itália do Renascimento se entendia por liberalità, nobiltà e virtú, tem sido tema privilegiado da História da Arte. Tais valores, gerados no seio do Humanismo cristão, contribuíram decisivamente para que pintores, escultores, arquitectos, ourives e outros praticantes do que então se designava por «ofícios mecânicos» saíssem da tutela corporativa de Bandeiras (como a de São Jorge) e adquirissem um novo estatuto social, com reforçada auto-estima e maior afirmação autoral.´ Pintores, luminadores, agora no cume estam’, escrevia Garcia de Resende na sua famosa Miscellanea, saída em 1554, juntamente com a Chronica de D. João III. O poeta-escritor destacava, nesse poema, aquilo que era uma realidade: o ascenso social dos artistas portugueses e o estatuto de privilégio que muitos deles auferiam fruto de uma consciencialização que paulatinamente se impusera... O Humanismo cristão e a decisiva viragem para a Idade Moderna na senda da liberdade de criação e de pensamento; o papel das ciências; o culto all’antico; o irenismo e a dignitas; a noção de antropocentismo e a virtú; o conceito de património como mais-valia comum; a ideia ou a construção da arte como cosa mentale; o novo estatuto social e intelectual de artista.
Prova de que o ascenso social se não confinou à Lisboa renascentista prova-o Gaspar Vaz, pintor de Viseu com actividade coeva da de Nicolau Chanterene. Este pintor, formado em Lisboa na oficina de Jorge Afonso (1515), mas sempre morador em Viseu (pelo menos de 1522 a 1569), teve actividade subsidiária junto a Vasco Fernandes e cargos como o de escudeiro de El-Rei e almotacé na Câmara de Viseu. A sua assinatura mostra a altivez de um artista liberal. Autor de algumas tábuas grãovasquinas no Mosteiro de São João de Tarouca), chegou a ter no seu tempo uma rua com o seu nome – Quelha de Gaspar Vaz – no centro histórico de Viseu. O estudo das assinaturas de artistas da época manuelina-joanina, como Cristóvão de Figueiredo (act. 1515-1555), pintor do Cardeal-Infante D. Afonso, ou o pintor régio Gregório Lopes (c. 1480-1550), revela várias rubricas aparatosas de afirmação estatutária (no caso de Figueiredo, com o seu rosto de perfil). Também a nível regional, nos Padilhas (André e Francisco) de Viana do Castelo, algo idêntico se verifica… A reivindicação de um estatuto de liberalidade é uma constante na literatura do Humanismo da época de D. João III, antes mesmo de um Francisco de Holanda regressar de Roma e escrever o tratado Da Pintura Antigua (1548). Para os bons artistas nacionais, que a exigência de qualidade da arte praticada tornava homens cultos, era absolutamente humilhante que, ainda em 1539, o Regimento dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa continuasse a considerar pintores, escultores e arquitectos como «oficiais mecânicos» sujeitos aos deveres gremiais e às obrigações das Bandeiras corporativas...
João de Barros (1496-1570) , historiador, geógrafo, gramático, pedagogo, escritor, funcionário da corte de D. João III, escreveu em 1532 a sua obra Ropica Pnefna, onde define os ‘graus’ da arte da Pintura e afirma que «a vista tem suas forças de potência visiva, cujo ofício é receber cores, figura e luz», sendo a Alma uma «távoa com pinturas» que nos acompanha ao longo da vida na sua «prisca beleza». Na famosa Crónica do Imperador Clarimundo, João de Barros volta a descrever o texto como uma espécie de «pintura metaphorica» das «origens, antiguidade e nobreza» do próprio Reino de Portugal: no Portugal joanino, as artes estavam no auge da consideração e entendiam-se como um verdadeiro processo de liberalidade. A influência do tratadismo, as viagens a Roma, Florença e Antuérpia, os debates no seio dos studia humanitatis e as lutas reivindicativas de artistas no tempo de D. Manuel I e D. João III abriram campo para que pintores, escultores, iluminadores, ourives, arquitectos e outros artistas se consciencializassem do seu dever de reclamar um estatuto social de privilégio, dada a antiguidade e nobreza das artes que praticavam e a exemplo do que noutros reinos já se reconhecia.
Cita-se, enfim, o ensaio de Claude-Gilbert Dubois Le Bel aujourd’hui de la Renaissance (2001), que atesta a persistência de alguns mal pressentidos valores epi-renascentistas: representação mimética, valorização de uma estética de Belo clássica; memória patrimonial; perduração da consciência da liberalitá dos artistas; última grande utopia, individualidade partilhada e ecumenismo fraternal -- valores sob cuja óptica vivemos, criamos e avaliamos as coisas segundo graus de consciência mais ou menos diluídos. À luz destes pressupostos, analisei em cotejo temas do largo tempo do Renascimento como: manutenção de cânones, exotismo de novos mundos, formulação teórica, trans-memória, retoma de modelos, revitalização de módulos neo-renascentistas, e afirmação social da liberalidade.