O conceito de Liberalidade e a consciência do Artista, entre operário «mecânico» a criador emancipado. O caso português como exemplo.
17 Outubro 2019, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A consciência da dignitas, da liberatità, da virtù artística, que se impõe no Renascimento em Itália e será vivida de modo empolgado pelos artistas, mecenas e demais protagonistas desse tempo, olhos postos nos exemplos italianos, teve acento nos argumentos em defesa de um novo estatuto social, que ocupou os interesses maiores de pintores, escultyores, arquitectos, ourives e outros artistas durante a segunda metade do século XVI e ao longo do século seguinte. O reconhecimento da liberalità, reivindicado com sucesso na célebre carta que em 1577 foi dirigida a D. Sebastião pelo pintor Diogo Teixeira, a que se seguiram outras petições mais ou menos moldadas nos argumentos daquela e igualmente vitoriosas, constituiu a essência dessa espécie de ‘literatura de protesto’, digamos assim, em que os artistas de maior consideração buscaram no tratadismo italiano e castelhano bons argumentos para sedimentar a sua luta junto das autoridades. A busca de um estatuto de dignificação laboral consumiu os interesses da nova geração de artistas portugueses da segunda metade do século XVI, fascinados pelo exemplo romano, e abundam, por isso, os argumentos em prol da liberalidade em cartas, petições, contratos de trabalho e intervenções académicas, onde se destaca a antichità da Pintura, a sua origem divina, a sua utilização por príncipes e reis da Antiguidade (seguindo o anedotário de Plínio o Velho), e a sua qualidade de mimésis (ut pictura poesis) como imitação da natureza (seguindo, embora com conhecimento menos profundo, a doutrina dos tratados de Giorgio Vasari, as célebres Vite de 1550, reeditadas em 1568, de Federico Zuccaro, L'idea de' Pittori, Scultori, ed Architetti, de 1607, e de Giovan Paolo Lomazzo, Idea del tempio della pittura de 1590, por exemplo).
Rareiam entre nós, entretanto, reflexões mais profundas sobre a essência da criação artística (salvo na produção de filósofos como Frei Heitor Pinto no famoso livro Imagem da Vida Cristã, seguindo bases aristotélicas), que em palcos coetâneos como Itália e Castela conduzia, nos mesmos anos, à elaboração de teorias globalizantes sobre a ideia motriz das artes e sobre uma ordem estética e ordenadora do mundo. Como sintetizava em 1577 o grande humanista Benito Arias Montano (1527-1598) num poema em louvor da Pintura que compôs em Roma (onde preparava a edição da Bíblia Poliglota buscando autorizações junto do Papado) para acompanhar um desenho de Federico Zuccaro passado à estampa por Cornelis Cort, a arte deveria ser avalizada como o «verdadeiro remédio para os males da humanidade». Nesse contributo de ideias e escolhas para a sedimentação de uma Teoria da Arte (onde não é nunca de negligenciar a influência de Frei Luís de Léon), é a defesa da harmonia, do rigor doutrinário e, também, a carga pedagógica e a força da emotividade nas representações artísticas, em nome de uma concepção neoplatónica da criação, que se impõem como valência estética. Quando se admira essa estampa A verdadeira Inteligência inspira o Pintor (Staatlische Museum, Berlim), gravada por Cornelis Cort segundo desenho de Frederico Zuccarro, e o poema latino de Arias Montano que a acompanha, vemos um discurso sobre o papel da pedagogia, da emoção e da beleza ideal aliada à alegoria clássica e aos conceitos neoplatónicos: Apolo como Ideia motriz das Artes, a Fraga de Vulcano no ‘quadro dentro do quadro’, as Fúrias, a Inveja, e o Concílio dos Deuses num Olimpo onde a Caritas, Prudentia, Benignitas e Fortituto têm valência qualificante. É toda uma síntese da estética do Humanismo cristão aplicada ao sentido profundo das artes.
É de supor que Francisco de Holanda, no perdido poema Louvores eternos, de 1569, fizesse, também ele, o elogio das artes a partir de uma espécie de Anjo da Inspiração Divina, que alimenta o talento inato dos artistas numa dimensão de cosa mentale onde ele se mostra, aliás, precursor das posições teóricas de Arias Montano e do próprio Federico Zuccaro (que no mosteiro do Escurial pintaria, um pouco mais tarde, o quadro São Jerónimo no seu gabinete de trabalho, onde o santo é inspirado por um anjo da guarda etéreo e quase incorpóreo, em cuja representação sequencia a leitura dos conceito holandiano de ideia, defendido no tratado Da Pintura Antigua). Todavia, faltam-nos o conhecimento directo desse e de outros textos de Holanda (por alguma razão não publicados à época, fosse desinteresse de editor, falta de mecenas ou desinvestimento dos poderes), como é o caso do tratado Do Tirar Polo Natural, dedicado à arte do Retrato, e o mesmo sucede com o manuscrito de Francisco de Sólis com as biografias de vários artistas portugueses, bem como outros de que existe fugaz menção mas se encontram perdidos (ou inlocalizados em fundos de arquivo), facto que depaupera em extremo um trabalho de reconstituição da tratadística das artes em Portugal durante a Idade Moderna.
Sob esse ponto de vista, a influência, quer do tratado de Francisco de Holanda nos círculos cortesãos de meados do século XVI, quer do de Félix da Costa Meesen ao empreender em tempo de D. Pedro II o sonho de criar em Lisboa uma Academia artística segundo o modelo da de Charles Le Brun em Paris, foi muito restrita. As iniciativas culturais destes dois artistas-escritores foram votadas ao fracasso, o que tem, aliás, expressão na nostalgia das suas próprias palavras: o primeiro, ao dizer ao dizer que teve a primazia no louvor da Antiguidade («fui… o primeiro que n’este Reyno louvei e apregoei ser prefeita a antiguidade, e não haver outro primor nas obras, e isto em tempo que todos quasi querião zombar d’isso», mas ao regressar de Itália «não conhecia esta terra, como quer que não achei pedreiro nem pintor que não dixesse que o antigo (a que eles chamão modo de Itália) que esse levava a tudo; e achei-os todos tão senhores d’isso, que não ficou nenhuma lembrança de mi»), o segundo, espécie de Van Mander português e «estrangeirado» roído pela amargura por viver numa Lisboa em «tempo de mingoante da Pintura» e pelo desinteresse da corte em aceitar as suas ideias temperadas pelo conhecimento directo que trazia de Londres, Paris, Madrid e Roma. A Antiguidade da Arte da Pintura (manuscrito de 1696, na Universidade de Yale) não esconde a influência directa dos escritos de Vicente Carducho e de Gaspar Gutiérrez de los Ríos, senão também a de Giovanpietro Bellori, o tratadista do bel composto, mas regista menos um alinhamento com a cultura do Barroco internacional e mais uma admiração sincera pelos pintores do Maneirismo, de que destaca os portugueses Campelo, Gaspar Dias, Francisco Venegas e Diogo Teixeira. Escrito de seguida à longa crise em que as guerras da Restauração portuguesa contra Castela tinham mergulhado o país, o tratado de Meesen mostra uma admiração pela Bella Maniera oposta ao desprezo que nutria pelos pintores do seu tempo, o que certamente seria matéria polémica e de acesas inimizades nos círculos em que se movia…
De facto, nem os dois referidos tratados tiveram recepção suficientemente calorosa por parte dos públicos nacionais para serem lidos fora de uma restritíssima teia de pessoas, nem merecerem ser publicados no seu tempo – e o facto é que o não foram, pese a tentativa, igualmente votada ao malogro, em que se envolveu Manuel Denis, pintor português ao serviço da Princesa D. Juana, mãe de D. Sebastião, ao traduzir para castelhano, em 1563, o manuscrito da obra Da Pintura Antigua, nele incluindo desenhos como o elogio da Prisca Pictura (Domus Picturae), num esforço vão para o lançar à estampa no mercado espanhol. O panorama da tratadística portuguesa dos séculos XVI e XVII sobre a Pintura e outros ramos artísticos foi, assim, muito minguado: salvo os casos excepcionais de Holanda e de Meesen, constata-se a falta de «uma inteira visão do mundo baseada nas novas artes, uma cosmovisão mental e imagética na qual as técnicas e preceitos passam a ser uma componente meramente secundária»
Vitor SERRÃO, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, Lisboa, 1983.
Anthony BLUNT, Artistic Theory in Italy, 1450 to 1600, Oxford, 1940 (2ª ed., 1956).
Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, «Ideias Estéticas e Doutrinas da Arte nos Séculos XVI e XVII», História do Pensamento Filosófico Português dirigido por Pedro CALAFATE, vol. II (Renascimento e Contra-Reforma), ed. Caminho, Lisboa, 2001, pp. 337-384.
Silvaine HANDEL, Benito Arias Montano. Humanismo y arte en España, trad., Univ. de Huelva, 1999; Juan Antonio RAMIREZ, Dios Arquitecto, Ediciones Siruela, Madrid, 1995; Juan GIL, Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos), ed. Regional Extremadura, Sevilla, 1998,
Vitor SERRÃO, «As ideias estéticas de Benito Arias Montano e a arte portuguesa do tempo dos Filipes», Actas do Congresso Portugal na Monarquia Espanhola – Dinâmicas de integração e de conflito (FCSH e Instituto Cervantes, Lisboa, 26-28 de Novembro de 2009) (no prelo).
Sylvie DESWARTE-ROSA, «Aprender a desenhar em Roma no século XVI», cat. da exp. Facciate Dipinte. Desenhos do Palácio Milesi, M.N.A.A., 2011, pp. 26- 47.
Pedro FLOR, Arte do Retrato em Portugal nos Séculos XV e XVI, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.
Julián GALLEGO, El Pintor de Artesano a Artista, Granada, 1976.