Artes, Mecenas e Coleccionismo: linhas de pesquisa metodológica sobre artes decorativas e a análise do gosto.
20 Outubro 2016, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Analisa-se nesta aula, à luz e segundo a definição do conceito de gosto em português, o espírito dos recheios artísticos das casas portuguesas dos séculos XVI, XVII e XVIII, caracterizados por um geral equilíbrio entre a compra de peças ítalo-flamengas e as de origem colonial, numa expressão onde dominam o hibridismo e o exótico e que lhe assegura originalidade no contexto europeu da Idade Moderna. As figuras de D. João de Castro, vice-rei da Índia, e seu filho D. Álvaro de Castro, ao ornarem a sua quinta da Penha Verde, em Sintra, tanto com pinturas renascentistas do melhor escol como de pedras lavradas hindus, assumem essa vertente peculiar do colecionismo doméstico, que se atesta, também, na riqueza dos acervos reunidos em Évora por D. Fernando de Castro, 1º conde de Basto, e mantidos de seguida por seus descendentes (mas dispersos após a Restauração de 1640) segundo o mesmo gosto plural. Refere-se, por último, o problema do mobiliário em tartaruga, unanimemente considerado de origem indo-cíngalo-portuguesa, a partir de uma encomenda realizada no Brasil, em 1687, por um ilustre ribatejano, Tristão Nuno Infante, que recorreu ao artista mais exímio de Pernambuco para lavrar peças em tartaruga e prata destinadas ao recheio da sua residência de Santarém. Estamos, neste caso, perante um exemplo de globalização do exótico perenizado, através das artes decorativas, nos vários espaços do Portugal ultramarino do século XVII.
O estudo dos acervos artísticos que constituíam a decoração interior dos palácios e das casas portuguesas dos séculos XVI a XVIII, fossem realengas, aristocráticas, religiosas ou burguesas; permite constatar, a partir dos inventários sobreviventes e das remanescências em termos de peças, um campo fascinante para os historiadores de arte e para quem analisa as contingências do gosto e as suas mutações. Nos exemplos nacionais da Idade Moderna, destaca-se com evidência uma linha de caracterização de tais colecções e acervos: os seus proprietários revelam tanto a busca de padrões europeus de referência, em geral ítalo-flamengos, por um lado, como o êxtase por peças exóticas oriundas do ‘mundo das descobertas’, por outro. É a presença de tais peças artísticas, com origem num perímetro globalizado que se estende do Brasil à costa africana, à faixa magrebina, à Índia, a Ceilão, à China ou ao Japão, que confere ao colecionismo português, e ao mecenato que o suportou, características verdadeiramente sui generis no contexto da Europa do seu tempo. A análise do gosto enquanto vertente de uma História da Arte ‘de género’ é imperativo estrutural da própria disciplina, tal como alguns projectos de investigação e estudos recentes vêm enfatizando. Trata-se de campo essencial para se compreenderem critérios de escolha, aquisição e estrutura coleccionística, e que assume valências autónomas no quadro de uma dimensão geográfico-cultural que é hoje contextualizável e percebível. A partir dos inventários apensos a testamentos, de pleitos judiciais ou de processos de partilhas, dos róis de bens móveis das grandes famílias e mercadores e também de conventos e irmandades, ou ainda da informação que decorre de registos de compra e venda e das descrições de festividades, é possível não só reconstituir acervos dispersos como definir opções estéticas, fórmulas operativas e linhas de metodologia analítico-comparatista nos estudos das tipologias e gostos imperantes no mercado português (nobre, sacro ou civil). Trata-se de um ‘género’ que impõe um programa de âmbito plural, não esquecendo as ‘inconstantes estéticas’ e as curvas de efemeridade e sobrevivência que acompanham os ‘gostos’, o peso do exotismo, a novidade pelas manifestações do ‘outro’, a sua definição como factor social distintivo (com peso ideológico mas dialecticamente mutável), ou dependente de conjunturas mais ou menos breves, como escreveu Gillo Dorfles «abarrotado de equívocos e dúvidas» ou, enfim, marcado por ritmos trans-memoriais com retomas de modelos e variedade ilimitada de novas corporalidades (SERRÃO, 2008). Aliás, trata-se de um tema que impõe necessariamente um olhar comparatista com o que se passa ao mesmo tempo com residências de Lisboa e Évora, Goa ou Cochim, Bahia e Olinda, e tantos outros espaços da diáspora imperial portuguesa onde o tipo de arte que complementa a decoração das casas tem, sem dúvida, traços comuns a um mesmo gosto.
Também importa reflectir, entretanto, em termos de máxima propriedade, a respeito do uso do termo colecção artística, a qual, como observa Hugo Crespo, deve implicar sempre a existência de um carácter preciso a estruturar a política de aquisição e de gostos convergentes por parte de um mentor, e que impõe, ainda, uma sequência geracional de possidentes, numa lógica puramente estética em que a exibição e ordenação de peças faça sentido. O tema foi inicialmente explorado por Julius von Schlosser (1908) a partir do acervo reunido na segunda metade do século XVI pelo arquiduque Ferdinando II de Habsburg, príncipe do Tirol, no seu castelo de Ambras (Innsbruck) e, mais recentemente, por Patricia Falguières, que destaca as singularidades históricas das câmaras de maravilhas reunidas ao longo da Idade Moderna, espécie de embrião do accrochage de peças dos museus contemporâneos. É em nome dessa singularidade que podem ser compreendidos, por exemplo, os gabinetes e salas de opulência da Rainha D. Catarina de Áustria, da Infanta D. Maria, filha de D. Manuel, do Duque de Bragança D. Teodósio I ou, já no século XVIII, as pinacotecas do Patriarca de Lisboa D. Tomás de Almeida e do 5º Marquês de Penalva D. Estêvão José de Meneses, a propósito das suas bem escolhidas colecções de quadros. Devem-se sempre distinguir situações correntes onde os acervos são reunidos por mera ostentação estatutária, através de incorporações casuísticas ou ditadas pela necessidade de provir ao apetrechamento da casa, daquelas situações em que determinado mecenas marcado por um sentido de especialização reúne e agrupa peças dentro de uma lógica coleccionística.
O pano de fundo para estes estudos será sempre a análise do gosto, que permite caracterizar as formas de colecionismo mais ou menos consequente e as suas bases ideológicas e estéticas. No caso nacional, o peso das manifestações artísticas decorrentes da descoberta de ‘novos mundos’ criou condições ímpares para o pioneirismo de uma espécie de gosto em português em que surgem colecções da corte e de fidalguia (como as da Rainha D. Catarina de Áustria ou do 5º Duque de Bragança D. Teodósio I), mas também acervos de dignitários da Igreja, mercadores, políticos e humanistas que reúnem peças em Kunstkammer privadas de certo aparato, mesmo quando o objectivo fosse de uso em círculos restritos. É preciso saber mais sobre as clientelas, as multiplicadas ofertas, as obras que adquirem valor e conquistam aura através do intercâmbio pluricontinental de gentes, de ideias e de usos, pelos quais se vão incorporando e sedimentando as novidades materiais e artísticas e de percebem melhor os percursos e miscigenações. Como afirma Miguel Cabral de Moncada, durante o Renascimento, o Maneirismo, o Barroco e o Rococó, os mercados nacionais acolheram sem reserva testemunhos artísticos ligados ao inóspito, ao exótico, ao estranho, ao inefável, apreciando novas técnicas, como a marchetaria, a lacagem ou o incrustrado, e novos materiais, como as madeiras do Brasil, o ébano, o sissó, o sândalo, o angelim, as porcelanas da China, a tartaruga, o marfim, a madrepérola, o cristal de rocha, o coral, a laca, a corda de fibra de bananeira, os chifres animais, o narval, o coco-do-mar. Assim, durante a Idade Moderna, este gosto pelo inóspito e pelo ‘novo’, que decorreu dos Descobrimentos marítimos, junta-se à afeição nunca interrompida pelas novidades europeias (italianas ou flamengas) e dá ênfase a um coleccionismo de novo tipo no palco continental.
Este gosto em português mostrou-se apto a miscigenar com naturalidade, desde o século XVI, o vernáculo e a tradição, os estilos europeus dominantes e o exótico colonial, o erudito e o inóspito, o aparato e as artes do efémero, e uma disponibilidade de integrar esse mundo plural e globalizado, como se intui nas festas realengas e religiosas, nas ‘entradas de embaixadas’, nos autos-de-fé, e na decoração dos salões, que preenchem o património quinhentista a que chamamos de ‘retorno’, esse ‘empório de maravilhas’ de que falava Damião de Góis a respeito do mercado lisboeta de então, verdadeiro ‘umbilicus mundi’ onde os estrangeiros se extasiavam pela inovação dos têxteis, marfins, madeiras lavradas, caixas-escritório, lacas, biombos e outras peças oriundas da Índia, da China e do Japão, ou da costa da Guiné e de Marrocos, do Hindustão, da costa de Bengala e de Ceilão, do recôncavo da Bahia, de Pernambuco, da América brasileira e outras partes. Os ‘casos de estudo’ seriados – um soldado-humanista do Renascimento na sua quinta de Sintra, um político-chefe militar na Évora do tempo dos Filipes, e um ilustre santareno da época de D. Pedro II – constituem exemplos singulares de pessoas com gosto em cujas casas coabitavam os recheios eruditos da Europa coeva com as artes exóticas, oriundas do mundo colonial, dentro dessa boa tradição miscigenada de um gosto em português que afirmou a tipologia colecionística nacional nos séculos XVI a XVIII.
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