Comentário a uma ficha analítico-descritiva de uma obra de arte: metodologias a seguir.
26 Setembro 2016, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Escolheu-se como exemplificação o painel de Vasco Fernandes e Oficina que representa «Cristo em casa de Marta e Maria», de c. 1530, que formava o antigo retábulo da capela do Paço do Fontelo e se expõe em Viseu, no Museu Grão Vasco.No âmbito da nossa disciplina, partimos da nossa disciplina, partimos da definição de dois conceitos operativos que devem ser considerados basilares para a prática de uma História da Arte-ciência não só eficaz no diálogo a empreender com as obras de arte como, também, útil e socialmente comprometida: -- a noção de PROGRAMA ARTÍSTICO, assente num olhar inter-disciplinar com visão globalizante (histórica, estética, ideológica, contextual, etc) das obras de arte à luz da compreensão daquilo a que Aby Warburg, entre outros, já definia como os seus ‘pontos de vista intrínsecos’, isto é, das condições culturais, políticas, socio-económicas, laborais, memoriais, ideológicas, de perduração e de continuidade, etc, para um pleno entendimento iconológico das mesmas; --- e a noção de TRANS-MEMÓRIA IMAGÉTICA, por nós proposta, que busca (re)conhecer em todas as obras de arte as suas capacidades de perpetuação memorial, tornando-as um elemento fundamental de percepção das suas potencialidades globais, numa base trans-temporal sempre aberta. A leitura das obras de arte deve ter em conta esses princípios.
O painel reflecte a cultura humanística de D. Miguel da Silva, Bispo de Viseu e Cardeal de Roma, seu encomendador. Através das informações do cronista viseense Botelho Pereira, no seu manuscrito de 1630-1638, sabe-se que o Claustro da Sé de Viseu data de 1528 e estava concluído em 1534, pois D. João III, em alvará de 18 de Setembro deste ano, cedia ao bispo a seu pedido para que o projecto arquitectónico pudesse assumir um outro alcance urbanístico, os arruinados paços reais, contíguos ao muro do novo claustro e pegados à velha torre de menagem, que serviu, séculos a fio, de aljube eclesiástico. Todavia, se D. Miguel da Silva tinha em mente um projecto de regularização da caótica praça medieval, com a construção «de huas varandas sobre a Praça, cujos altos fossem dos bispos, e os baixos da Cidade para as vendedeiras», não o chegou a concretizar. Como refere o cronista, «não houve effeito esta obra com estar inda o Bispo alguns años nesta, a causa não sei, mas fora ela muito a propósito». Mas a alta galeria setecentista, que estrutura a praça e marca a fisionomia da cidade, não é alheia ao projecto regularizador que D. Miguel da Silva, dois séculos antes, havia delineado, bem como outras obras por si patrocinadas sob estímulo dos valores italianizantes do Renascimento e da cultura do Neoplatonismo.
À data da eleição de D. Miguel da Silva, em 1525, a velha Catedral, renovada com uma exuberante fachada manuelina (que ruíu em 1630), mantinha o claustro trecentista gótico. A construção do actual, renascentista, implicou a demolição daquele, entaipar capelas, portais e arcossólios dos muros (hoje a descoberto); é o indicador do gosto que este prelado pôde adquirir e amadurecer na cidade eterna quando desempenhava as funções de embaixador do rei junto da Cúria Romana. Francesco da Cremona, arquitecto italiano que o acompanhou na vinda de Roma a Portugal, é o autor do projecto, cujo protótipo, de acordo com Rafael Moreira, "reside no famoso cortile do palácio ducal de Urbino, construído por L. Laurana e Francesco de Giorgio Martini cerca de 1470". A sua construção teve início em 1528, ano em que o prelado dá início ao projecto de ampliação e reconstrução da quinta de Fontelo e encomenda ao prestigiado pintor da cidade, Vasco Fernandes, celebrizado com o nome Grão Vasco, uma série de retábulos para a Sé e para os espaços reedificados.
Obra fundamental para estudar o universo
pictórico de Vasco Fernandes, a tábua de Fontelo é bom testemunho
da sua adesão aos valores do Renascimento italiano, é um dos melhores
exemplares da pintura quinhentista portuguesa, com ênfase na parangona da VIDA CONTEMPLATIVA de Maria, inspirada em gravura de Albrecht Durer, face à VIDA ACTIVA encarnada na personagem de Santa Marta, a patrona da capela palatina de D. Miguel da Silva. É a essa luz que o quadro deve ser entendido.
Trabalho prático:
a) Fortuna Histórica - fase de recolha heurística e definição iconográfica;
b) Fortuna Crítica - fase de comparatismos e contextualização, análises técnicas, iconológicas, estilísticas, formais e funcionais, e definição da trans-contextualização da peça;
c) Fortuna Estética -- fase de leitura estética integrada à luz da Iconologia.
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