Liberalidade e tratadística no Renascimento: Léon Battista Alberti e a literatura artística.

3 Novembro 2016, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Alguns títulos fundamentais:

Publicado pela editorial Taurus, de Madrid, em 1989, na sua colecção ‘Conceptos fundamentales para la Historia del Arte Español’, a obra El Largo Siglo XVI. Los usos artísticos del Renacimiento español, da autoria de Fernando Marías (n. 1949), introduziu nas práticas da História da Arte peninsular a análise trans-comparatista e trans-contextual do facto artístico, aplicada à conjuntura renascentista, seguindo o princípio da conjuntura larga para analisar os fenómenos de persistência, de revitalização e de ruptura na lenta evolução dos comportamentos histórico-culturais e artísticos. Para além de um Renascimento histórico que tem suas referências grosso modo durante a primeira metade do século XVI, existiu uma situação renascentista com prolongamentos naturais que tem ressonâncias até ao século XVII.

Interessa-me também recorrer aqui ao conceito ICONOLOGIA DO INTERVALO avançado por Aby Warburg (1866-1929),  no quadro de uma "ciência das imagens" que visa analisar e comparar na íntegra os testemunhos de esferas, culturas e geografias diferentes tanto na sua forma de pathos como nas de de nachleben (migração de imagens e memórias). No seu texto sobre o "ritual da serpente" dos índios norte-americanos Hopi, confronta os registos dessas práticas com outras muito distintas de lugar, tempo e cultura. Tal dá origem à iconologia do intervalo, que Georges Didi-Huberman, ao estudar a sobrevivência das imagens, atesta do seguinte modo: «…quando se colocam duas coisa diferentes num mesmo plano, é o diálogo que entre eles se estabelece que interessa observar». Por muito singulares que as imagens sejam, têm sempre uma raiz comum, uma espécie de memória colectiva que está para além da singularidade de cada uma…

Também chamamos a este debate o polémico ensaio de Claude-Gilbert Dubois Le Bel aujourd’hui de la Renaissance (2001), que nos vem revelar a presença, bem no coração dos nossos dias, de algumas mal pressentidas atitudes epi-renascentistas que persistem, como sejam os sinais de representação mimética, a valorização de uma estética de Belo clássica, da natureza e da memória patrimonial, a perduração da consciência da «liberalitá» dos artistas, e o sentido da última e grande utopia de uma individualidade partilhada e de um ecumenismo fraternal -- valores esses sob cuja óptica vivemos, criamos e avaliamos as coisas segundo graus de consciência mais ou menos diluídos. É à luz destes pressupostos que trazemos à discussão alguns temas que podem ser vistos no âmbito artístico do tempo do Renascimento como testemunhadores de uma nova mentalidade, sejam de manutenção de cânones (exemplos de arquitectura senhorial), de trans-memória (o mecenato de D. Teotónio, Arcebispo de Évora), de efusivo exotismo de «novos mundos» (mecenato de D. Álvaro de Castro na Penha Verde), de formulação teórica (o tratado de Félix da Costa Meesen, Antiguidade da Arte da Pintura, de 1696), de retoma de modelos (casos de «filo-rafaelismo», p. ex.), ou de revitalização de módulos neo-renascentistas, entre muitos outros exemplos de arte portuguesa que se poderiam citar.

O uso do conceito de Micro-História da Arte na análise da produção artística, ao iluminar ‘zonas’ de periferismo, i. e., fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, obriga a ver o tecido artístico – autores, oficinas, clientes, programas, públicos, e fruidores – numa ampla perspetiva comparatista. É esse ponto de vista que deixa perceber as linhas de ruptura e continuidade, o sopro de originalidade, as linhas de vanguarda e anacronismo, conformismos, e demais valências envolvidas – seja qual for a situação analisada ou o peso relativo dos artistas analisados. A História da Arte portuguesa, tão rica de fenómenos de descontinuidade e permanência dadas as relações de miscigenação lusófonas, pode tirar partido deste conceito (que não se confunde com meras listagens de artistas, artífices e obras regionais, mas com um comparatismo alargado que ilumine as situações em apreço). É por isso que a Micro-História da Arte, ao devolver uma consciência plural aos fenómenos de criação e recepção artística, vem justificar a prática de um olhar microscópico sem arrogância nem preconceitos. 

A respeito da ciência pictórica como forma simbólica, Erwin Panofsky formulará a sua teoria, tendo por base os rudimentos epistemológicos cassirerianos, fundamentalmente no que respeita à noção de “percepção” fenomenológica das formas e do espaço. Segundo o autor, a garantia de uma formulação espacial racional, infinita, constante e homogénea, como é formulada pelo postulado albertiano, obriga a uma evidente mutilação da percepção psicofisiológica, inapta na apreensão dos conceitos espácio-temporais infinitos do Quantum Continuum. É precisamente nas diferenças evidentes entre o “espaço visual” em oposição ao “espaço métrico” da geometria Euclidiana, que a qualidade anisotrópica e heterogénea das formas e dos objectos se manifesta. Em traços largos, a tese Panofskyana defende que a transfiguração de uma “perspectiva naturalis” para uma “perspectiva artificialis” mediante a formulação do postulado Albertiano, implicou uma clara reformulação do sistema cognitivo e psicofisiológico, que desde a antiguidade clássica vem formulando e expressando uma noção de espaço como forma simbólica, tributária das idiossincráticas cosmovisões de cada período histórico. A constituição de um espaço matemático puro, o more geometricum, ou a Neo-Platónica doutrina da matematização da natureza. Busca-se revalorizar e promover, no campo da teoria e prática dos historiadores de arte, a aplicação do conceito de Micro-História, utilizado pela primeira vez por Enrico Castelnuovo e Carlo Ginzburg na análise do facto artístico segundo uma conjuntura globalizante e uma visão trans-contextual e comparatista mais alargada (História Cultural, Geografia, Antropologia, Sociologia da Arte, Iconologia, etc. O uso por parte dos historiadores de arte deste conceito de análise microscópica das artes ilumina melhor a produção que emana em situações de periferismo, fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, e impõe um olhar integrado sobre o tecido artístico – artista, oficina, clientes, programas artísticos, públicos, e fruidores no seu conjunto – numa mais ampla perspectiva, que deixa perceber as linhas de ruptura e de continuidade, o sopro original e os anacronismos, o vanguardismo e os conformismos, independentemente do tempo e do espaço em que se situe a conjuntura artística em apreço. Estamos dentro das possibilidades de uma leitura microscópica aplicada ao campo das artes, i. e., uma História vista de baixo (utilizando o conceito marxista de António Gramsci de «classes subalternas»), para melhor se alcançar o âmbito da circularidade cultural percepcionada por Ginzburg e por Castelnuovo. Correndo sempre o risco de esta opção de pesquisa, que se baseia na complementaridade de testemunhos artísticos sobreviventes, ser algo de fragmentário (até pela aceitação implícita do carácter conjectural dos dados recolhidos), é inegável que uma análise muito alargada e transversal dos comportamentos colectivos num dado momento histórico permite observar com outra objectividade o que se passou e passa no campo da produção das artes nas suas instâncias plurais, na dialéctica entre reaccionarismo e inovação -- o que só por si justifica e recomenda a prática da Micro-História da Arte.


BIBL.: Carlo Ginzburg, Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del '500, Milano, Einaudi, 1976 (trad. portuguesa: O Queijo e os Vermes, Lisboa, Companhia das Letras, 2007).