O novo estatuto social de artista a partir dos séculos XV e XVI.
6 Outubro 2016, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Da fundamentação artística e das suas estratégias de afirmação antropocêntrica no Renascimento: Liberdade e liberalidade artística no largo tempo do Renascimento em Portugal e no Mundo (sécs. XV-XVI). A liberalità (liberalidade, ou seja, um conceito de emancipação, de reivindicação social e de consciencialização autoral) é uma das grandes conquistas do Renascimento, no século XV, em termos de criação no campo das artes. Estas passam a ser vistas e entendidas como produto emanado das ideias e não como mero trabalho das mãos: assumem-se, pois, como criação intelectual e não como produção ‘mecânica’. Face àquilo que era a liberdade criadora restrita dos artistas medievais, e dos da Antiguidade – um regime anónimo, colectivo e gremial – a reivindicação da LIBERALITÀ representa uma conquista de vastas proporções, com incidência imediata e com longa durabilidade no mercado das artes. Com a liberalidade nascem também os mecenas, os críticos de arte e os peritos, os avaliadores, os ‘marchands’ de arte, os livros com a biografia de artista e a teoria das artes, os coleccionistas e as galerias de obras de arte (embrião dos museus contemporâneos), os intermediários de compra e venda, i. e., nasce uma espécie de artworld moderno.
A cultura artística do 'largo tempo do Renascimento' explorou, à luz dos contributos e debates no seio do Humanismo, o conceito de Felicità Pubblica (parangonizada com a Felicità Eterna), dando corpo à ideia de que a arquitectura, a pintura, a escultura e demais obras de arte, quando usadas segundo os princípios clássicos recomendados pelos bons mecenas, contribuíam para o bem público e para uma vivência mais harmoniosa de todos os homens. Assim, seguindo os preceitos vitruvianos, já Léon Battista Alberti (no De Re Aedificatoria) assumiraa que a produção arquitectónica trazia vida estável para as comunidades e uma espécie de felicidade geral, algo que os artistas e encomendantes portugueses do século XVI não deixaram, também, de acentuar (no caso de escritores como Francisco de Holanda, de pintores como Gregório Lopes, de arquitectos como Miguel de Arruda). A consciência desse princípio está presente, não só quando os artistas reivindicaram um estatuto social de liberalità, como quando geram obras onde a dimensão utópica e a busca do sentido da utilitas são expressas com maior ou menor clareza.
Recorremos a exemplos no campo da teoria das artes, e na pintura e escultura portuguesas de Quinhentos, para analisar melhor esses sinais de presença de uma busca direcionada para a Felicitá, pressentida em vários modos no substracto da criação. Mais tarde, já nas primícias do século XVII, Cesare Ripa na sua famosa Iconologia sintetizará esse ideal renascentista da felicità pubblica através da criação de uma figura feminina sedutora de mulher cujos atributos são a cornucópia, o ceptro e a coroa, e com a palma que remete, enfatizando o grau de beatitude e pureza, para a alegoria da felicità eterna, tão explorada no contexto da Contra-Reforma católica e unindo o ideal de Felicidade à boa prática da virtude cristã.
•Desde os tempos de D. Manuel I e de D. João III, e do primado de uma arte de regime assente na consciencialização do papel polarizador de Lisboa como umbilicos mundi, acentuou-se em Portugal essa convergência de uma produção artística como expressão de harmonia e de felicidade dos povos, sob signo do cristianismo universal, mas será especialmente com o Maneirismo de raíz italianizante, o movimento estético dominante no terceiro quartel do século XVI, que essa veia melhor se desenvolveu, através de obras que acentuam uma veia utópica de Felicità e mostram predilecção pelas imaginosas construções de um mundo perfeito, alternativo à dramática crise do seu século.
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