Um caso de estudo: os Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves.

10 Outubro 2016, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

       Há pouco mais de cem anos, era revelado ao grande público na Academia Nacional de Belas-Artes o processo de restauro dos chamados Painéis de São Vicente, conduzido por Luciano Freire, e dado à estampa o livro do Dr. José de Figueiredo O pintor Nuno Gonçalves (1910), considerado ainda hoje uma das peças incontornáveis na magna questão suscitada pelas famosas tábuas quatrocentistas. Longe de estarem solucionados, os problemas da identidade da obra continuam a abrir campo às paixões e às polémicas, a teses contrafactuais e mesmo a especulações. Sendo tantos os mistérios que na obra permanecem insondáveis, à míngua de documentação de arquivo esclarecedora ou de dados sólidos de cotejo estilístico para a identificação de personagens, é natural que a altíssima qualidade da obra atraia proporcione esclarecimentos deste ou daquele aspecto da pintura e explica-se também que, à margem da ciência histórico-artística, continue a dar lugar a um elán irresistível que gera leituras sensacionalistas e pseudo-teses sem a mínima fundamentação.

     Mesmo assim, a História da Arte avançou, e não pouco, no decurso do último século a respeito do sentido e potencialidades desta formidável galeria de retratados da Dinastia de Avis reunidos em acto de adoração a um santo diácono duplicado ao centro. Sabemos, por exemplo, que se trata de um grandioso ex-voto gratulatório a São Vicente, diácono-patrono da Cidade, do Reino e das Conquistas do Norte de África, reunindo a corte, os fidalgos, o Cabido da Sé, as ordens religiosas, gente de ofícios e da administração, pescadores, mercadores, um trabalhador braçal.  Também sabemos que estes seis painéis (e mais outros dois com martírios de São Vicente, hoje no MNAA) integravam a decoração da antiga capela de S. Vicente na Sé Catedral de Lisboa, junto ao venerado túmulo e relíquias do santo, e que esse altar era constituído por mais tábuas colocadas em fiadas sobrepostas, com cenas de milagres e martírios do santo (de que nos chegaram as duas referidas), podendo ser melhor esclarecida a vida desse famoso altar conforme à vasta documentação reunida (34 documentos), que mostra ser alvo de grande devoção de todos que visitavam Lisboa. Sabemos, ainda, que as tábuas foram executadas cerca de 1460-70, dadas as características do estilo, da técnica e dos elementos compositivos, que os exames laboratoriais confirmaram. Sabemos, enfim, o nome do pintor que dirigiu a empreitada, que se chamava Nuno Gonçalves, artista muito elogiado por fontes antigas como uma das Águias da Pintura, e que exerceu a actividade de pintor régio de D. Afonso V desde 1450, pintando em 1471 um retábulo para a Capela do Paço Real de Sintra, sendo agraciado por esses anos pelo Infante D. Pedro da Catalunha com um cavalo estante em Barcelona, e que faleceu em Lisboa pouco antes de 1492.

     Não são poucas, assim, as bases de conhecimento do artista a quem se devem as tábuas do Museu Nacional de Arte Antiga... aliás oito e não seis, pois  a  descoberta do historiador de arte Adriano de Gusmão, em 1955, das duas outras tábuas de Nuno Gonçalves, o excepcional S. Vicente atado à coluna e o fragmento de S. Vicente na cruz em aspa, como painéis restantes do antigo retábulo da Capela de S. Vicente da Sé de Lisboa, veio dar a verdadeira identidade estilística que faltava para se compreenderem as seis da Veneração. E não só identidade estilística, também iconográfica, sendo óbvio que a figura martirizada de S. Vicente era (é) a mesma que, trajando dalmática, se encontra como diácono e com seu nimbo luminoso de santidade no centro dos Painéis chamados do Infante e do Arcebispo.    

     Mas são muitas as questões que continuam sem resposta. Não sabemos quem são os sessenta representados.  Nâo sabemos para quê a obra foi feita, ou seja, que evento político ou militar específico é tratado e com que objectivo veneratório ou gratulatório. Não sabemos quem a encomendou, se o Cabido, a Corte, o Senado da Câmara, a Confraria de São Vicente da Sé, se todas estas entidades em conjunto. Não sabemos como se dispunha exactamente a obra na sua primitiva capela da Sé, destruída com o terramoto (ainda que os painéis não estivessem lá à data do megassismo, estando provada a sua oportuna transferência em 1742 para o palácio do Patriarcado em Marvila). Enfim, não sabemos onde se formou Nuno Gonçalves -- embora a referência do atento tratadista renascentista Francisco de Holanda, em 1548, quando dele diz ser o único português que «merece memória» e que deve o saber aos «antiguos e italianos pintores» cuja «discrição» quis «imitar» --, levem a concluír que o pintor, como retratista exímio dotado de um naturalismo requintado e senhor de uma técnica aprimorada, com o seu cromatismo cálido, sensibilidade por camadas transparentes e personalizado desenho, conhecia o ambiente proto-renascentista mediterrânico de Gozzoli, Mantegna, Castagno, Gentile da Fabriano, e até de Huguet, que a documentada estadia em Barcelona vem comprovar -- sendo de todos os modos uma questão insolúvel o modo como se pode entender a altíssima qualidade e maturidade estética da peça no contexto internacional do seu tempo, sobretudo num país ainda tão arreigado à tradição goticista. 


BIBLIOGRAFIA:

1910 – JOSÉ DE FIGUEIREDO, O Pintor Nuno Gonçalves, Lisboa.

1957 – ADRIANO DE GUSMÃO, Nuno Gonçalves, ed. Europa-América, Lisboa.

1988 -- DAGOBERTO L. MARKL, O Retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa e os novos documentos, ed. Caminho.

1994 – AAVV., Nuno Gonçalves – Novos Documentos, coord. de I. Vandevivere, J. Pessoa, D. Rodrigues, J. A Seabra Carvalho, D. L. Markl, ed. Instituto Português de Museus e Instituto José de Figueiredo, Lisboa.

2002 – FERNANDO ANTÓNIO BAPTISTA PEREIRA, Imagens e Histórias de Devoção. Espaço, Tempo e Narratividade na Pintura Portuguesa do Renascimento (1450-1550), Doutoramento, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

2006 – PEDRO FLOR, O Retrato na arte portuguesa (1450-1550), Doutoramento, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.