Metodologia de apoio à realização de uma Ficha analítico-descritiva de uma obra de arte: um exemplo.
12 Outubro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Estuda-se uma peça do século XVII, de colecção particular -- um ‘estudo de caso’ de ficha analítico-descritiva: uma Tróia abrasada do pintor Diogo Pereira e o ‘género’ da pintura de «catástrofes» na arte portuguesa do século XVII -- , no sentido de exemplificar o processo de investigação em História da Arte seguindo, com rigor metodológico, o processo analítico-descritivo da fortuna histórica (que permite, recorrendo às fontes disponíveis, publicadas, manuscritas, laboratoriais, ou outras, saber algo sobre a época, data, autor, tema, iconografia, estilo e contexto da peça), da fortuna crítica (que permite avançar no campo da iconologia e da simbólica, desvendando sinais e confrontando enigmas, e da comparação dos estilemas da peça com outras que ajudem a melhor iluminá-la e esclarecê-la enquanto discurso artístico) e da fortuna estética (que permite, à luz do anteriormente seriado, perceber melhor a aura da peça, o seu sentido estético e o seu peso trans-contextual), num processo global de apreciação tendente a saber o mais possível sobre a peça em apreço e testemunhar a sua real valia, devidamente inserida num contexto comparatista.
A tela escolhida é uma representação, aparentemente enigmática, da guerra de TRróia e foi pintada no século XVII, segundo diz a tradição, por um artista lisboeta chamado Diogo Pereira, ao tempo muito famoso e apreciado pelo colecionismo. Compete, assim, analisar uma peça em torno a um questionário previamente reflectido e que pode ser, por exemplo, este conjunto de problemas: -- Avaliação crítica de um artista famoso no seu tempo mas esquecido nos mercados após o século XVIII até data recente: porquê ? -- Identificação de um artista com obra internacional a partir da pesquisa arquivística, do método analítico-comparatista, do estudo de laboratório e da abrangência contextual. -- Actualidade do estudo do coleccionismo e da peritagem de obras de arte. Questões de análise, restauro, percepção e revalorização: o gosto em fogo. -- A avaliação crítica: visão mitificada sobre um artista de fama: a pintura ‘de género’ do século XVII vista à luz dos critérios dos séculos XIX e XX. – Acento na cripto-história da arte, trajectos de modernidade e a reavaliação de ‘épocas esquecidas’ no campo da pintura de cavalete em Portugal e no contexto internacional. -- O conceito e a prática do comparatismo artístico: o estilo, a marca pessoal, a técnica e a maneira autoral, o gosto de época. -- O olhar micro-artístico e a fortuna crítica na revalorização de artistas e obras esquecidas. -- A percepção das memórias artísticas esquecidas e dos seus comprometimentos ideológicos.
Sabemos que o pintor em causa está documentado entre 1630 e 1658, ano da morte. Foi artista com aura de marginalidade, especialista em quadros com Incêndios de Sodoma, Tróias abrasadas, Infernos, Purgatórios, borrascas de mar, ruínas clássicas e outros temas simbólico-profanos de caprichosa cenografia. Dentro do seu «género», e apesar de mal-amado até à reabilitação recente, foi uma das estrelas da nossa pintura dos anos centrais do século XVII, a quem o escritor Félix da Costa Meesen (que escreve em 1696) não regateou, excepcionalmente, elogio: disse ele que Pereira foi «genio raro, sempre se ocupou em incendios, Diluvios, Tromentas, noites pastoris, vistas varias de paizes com gados; no que foi tão celebre neste genero, como os mais peritos nas couzas de mayor empenho; e como o seu exercício foi sempre imitar desgraças, nunca chegou a ver fortuna». Mais destaca o «Dom de Deos de que foi dotado» e a «veneração» que merecem suas telas, «porem o serem de Portuguez, lhe faz o mayor dano». Pereira foi famoso como criador de catástrofes, bambochatas, dilúvios e temas afins, e pode considerar-se uma espécie de Monsú Desiderio português, dados os paralelos com esse famoso pintor lorenense estabelecido em Nápoles, de nome François de Nommé, estudado por Rosaria Nappi e conhecido por esse epíteto lendário. Trata-se de caso singularíssimo na arte portuguesa, pelo engenho criativo e força revolucionária das touches, tal como foi finalmente reconhecido com a exposição Rouge et Or. Trésors du Baroque portugais, onde pela primeira vez se expuseram dez obras do artista. Sedutor no modo como adequou a tradição do capricho architectural de Roma e Nápoles à tradição nacional, com pessoalizada liberdade de touche, mereceu ver os seus quadros disputados nos mercados de Itália, Espanha, França e Inglaterra, sendo de estimar que, em 1753, o perito Pietro Guarienti (no Abecedario Pittorico de Orlandi) lhe chamasse «stimatissimo pittore de fuochi, incendi, Torri abbruciate, Sodome, purgatori, e inferni», destacando quadros, «a lume di luna, o di candele» e elencamdo os palácios de Lisboa onde havia obras suas.
As nossas investigações atestam que quem possuíu as várias versões do tema Tróia abradada de Pereira eram as novas clientelas da Restauração, entre elas D. Manuel da Cunha, capelão-mor do rei, os Mascarenhas e Sousas, o Conde de Tarouca, os Marqueses de Borba, Nisa e Orisol, D. Diogo de Noronha, D. Tomás de Noronha e Nápoles, etc. Estas Tróias eram vistas como um testemunho de parenetização nacionalista anti-castelhana com a sua forte carga simbólica, onde a figura de Eneias, salvador de Anquises, idealizava o bom príncipe cristão numa espécie de metáfora às virtudes do restaurador D. João IV. Conhecem-se doze versões de Tróias de Pereira (Museus de Lisboa, Coimbra e Évora, B.N.P., Palácio Real de Nápoles, colecções de Milão, Paris, Oeiras, Caramulo, etc), todas com atmosferas apocalípticas, efeitos labirínticos, arquitecturas antiquizantes e cenografias idealizadas, em que o sentimento trágico da «catástrofe» está patente, a lembrar a conjuntura de guerras com que o novo regime se defrontava. É sintomático que algumas destas obras (caso da Tróia da col. Franzini, Milão) chegasse a andar atribuída ao próprio Monsú Desiderio ! O sucesso do tema não escondia, dentro da retoma do trecho clássico, um surdo sentido de resistência com motivações políticas na opção coleccionística. Antes de mais, assumia funções moralizantes ao atestar o amor pio de Eneias (precursor de Jesus nas interpretações da 4ª écloga do poema de Virgílio) a salvar Anquises e simbolizando a fraternidade cristã; depois, justificava a ideia da resistência dos povos face à tirania, o que servia a retórica cristã-brigantina restauracionista; a seguir, dava imagem à tese da ancianidade de Portugal legitimadora da Restauração (através da lenda da fundação de Lisboa e outras cidades lusas por descendentes de Ulisses e Eneias fugidos de Tróia, em livros de Gabriel Pereira de Castro e António de Sousa de Macedo); por último, simbolizava as virtudes do bom rei tal como a empresa XXVI da Idea do Principe Cristiano de Saavedra Fajardo (Madrid, 1640), ao ligar o cavalo de Tróia à astúcia da boa governação.
Estas Tróias revelam o modo como o pintor se pauta no panorama do seu tempo, ao alinhar não pelo naturalismo da sua geração (André Reinoso, Baltazar Gomes Figueira, José do Avelar Rebelo) mas por um gosto sui generis aberto ao onirismo, à ars parabolica, ao capricho das rovine, à irreverência das formas labirínticas, à disfunção de espaços, às arquitecturas imaginosas, à ousadia das touches livres. O tema Tróia em chamas foi tratado também nos espectáculos de ars parabolica de festas como as do casamento de D. Afonso VI com Maria Francisca de Sabóia (1666) dirigidas por João Nunes Tinoco, onde se incluía «Troya que sobre hum cavallo por ser tão linda vinha incendios motivando», máquina de pirotecnia no Terreiro do Paço citada por Craesbeeck de Melo na Metaforica Relaçam das Festas.
Notamos que já por volta de 1625 o poeta Vasco Mousinho de Quevedo e Castelo Branco. ao redigir o ensaio de tónus vergiliano Dialogos de Varia Doctrina illustrados com emblemas, que dedica a D. Rodrigo da Cunha, Arcebispo do Porto, constrói um discurso moralizante em torno de Eneias como príncipe redentor, de não escondidos ressaibos pró-brigantinos. Eneias torna-se um herói do partido restauracionista dos Bragança. Em 1641, aquando da chegada à Universidade de Coimbra de um retrato do Rei Restaurador, em tempo da Aclamação, foi redigido um 'aplauso' reunindo poemas e panegíricos, onde o Padre José de Figueiredo e os jesuítas do Colégio de Coimbra associam de novo a imagem de Eneias à de D. João IV, no âmbito da restauração de uma nova 'aurea aetatis'... Estes e outros textos reforçam a convicção de que as Tróias de Diogo Pereira eram vistas na época com evidente dimensão parenética, e um não escondido sinal de resistência.
Nota-se (a partir da investigação realizada) que os possuidores das Tróias eram, todos eles, membros influentes do partido brigantino ligado à Restauração, o que indicia motivações políticas na opção do tema, ligando os sessenta anos de União Ibérica ao cativeiro de Babilónia e a destruição bíblica de Jerusalém à defesa da liberdade e autonomia lusa.
Em 1758, Francisco Vieira Lusitano, ao inventariar a colecção do palácio do Marquês de Penalva, assinalou várias obras de Pereira a altíssimo preço, incluindo um notável Inferno (col. particular), que chegou aos nossos dias e é de apreciável intensidade de contrastes, com suas ‘citações’ clássicas como, por exemplo, o abismo sinistro do lago gelado, tudo ao gosto de uma «pintura de género» fantasista e onírica como à época, ou um pouco antes, faziam Claude Deruet, François de Nommé, Didier Barra, Scipione Compagno, Cornelio Brusco e recorda, também, as stregonerie napolitanas de Isaac Schawenbourg e Filippo Napoletano. O artista mostra-se mais displicente no desenho de figura, fruto certamente de um aprendizado empírico, onde é usual o recurso a gravuras maneiristas italo-flamengas, de Cornelis Cort a Agostino Carracci.
Ainda pouco se sabe da vida de Diogo Pereira, que serviu de mordomo e escrivão na Irmandade de São Lucas, em Lisboa (servia de escrivão, à data da morte, na mesa presidida pela nobre pintora D. Maria de Guadalupe Lancastre e Cardenas), sendo de estimar que ele tivesse relações com os meios napolitanos na capital portuguesa. Infelizmente, pouco ainda se sabe sobre os contactos culturais entre Lisboa e Nápoles (ao tempo da dominação filipina e depois da revolta de Masaniello em 1647), sendo possível que tivesse admirado a colecção de quadros napolitanos que existia no Buen Retiro em Madrid, o que explicaria algumas das opções estéticas tomadas no seu original percurso artístico.
BIBLIOGRAFIA:
Maria Rosaria NAPPI, François De Nomé e Didier Barra, l'enigma Monsù Desiderio, Roma, Sandi Jappi Editori, 1991.
Idem, «Il 'Filippo Napoletano' di Roberto Longhi: Scipione Compagno o Cornelio Brusco?», Prospettiva, n. 47, Ottobre 1986, pp. 24-37.
Ângela Barreto XAVIER, Pedro CARDIM e Fernando BOUZA ÁLVARES, Festas Que Se Fizeram Pelo Casamento Do Rei D. Afonso VI , Lisboa, ed. Quetzal, 1996.
Vitor SERRÃO, «Le monde de la peinture baroque portugaise. Naturalisme et ténèbres, 1621-1684», Cat. da Exp. Rouge et Or. Trésors du Portugal Baroque, Musée Jacquemart-André, Paris, 2001, pp. 51-77 e 89-171.