Sumários
A teoria de Gian Pietro Bellori e o conceito de BEL COMPOSTO.
14 Dezembro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Actualidade dos conceitos teóricos de Gian Pietro Bellori (1613-1696) sobre a beleza e a arte. Ut Pictura Poesis: a ‘idea del Bello’ no Barroco seiscentista romano: o tratado de Bellori e o elogio do Classicismo. Este autor foi a mais alta autoridade da cultura artística do seu tempo. Assim o consideraram escritores, artistas, mecenas e intelectuais em toda a Europa do século XVII. Foi o primeiro autor, depois de Vasari, a determinar o carácter da literatura nas artes e a explorar o estudo da simbologia artística. Com base neoplatónica, Bellori contribuíu para a chamada ‘fortuna histórica’ e para o conhecimento da História antiga, através da arqueologia e da numismática, antecipando novas metodologias de escavação e de pesquisa de campo. Mas o que impressiona é que escreve com uma visão europeia, uma perspectiva de conjunto, como um crítico atento que compara, selecciona e sintetiza. Definiu o conceito de BEL COMPOSTO como princípio de globalidade: a obra de arte total. As biografias que introduz nas Vite de' Pittori, Scultori ed Architetti moderni (1672) são doze, e o critério de escolha foi o da fidelidade ao Classicismo, à tradição do Clássico – para ele o protótipo da arte qualificada. Procurou também servir o público e os visitantes, propondo percursos, sem deixar de inventariar recheios de palácios e galerias, de descrever decorações de jardins, etc. Giovan Pietro Bellori foi o grande divulgador das grandezas de Roma. Bellori manteve contactos com França e Inglaterra, serviu a raínha Cristina da Suécia, colaborou com Charles Errand, directorr da Academia de França em Roma, encasrregado de Luís XIV para o affaire da Colonna Trajana (cujas gravuras seriam editadas com anotações de Bellori), e conviveu muito com o pintor Carlo Maratti, tendo acompanhado o restauro dos frescos de Rafael Sanzio nas Câmaras Vaticanas, a respeito das quais escreveu, bem como sobre a Loggia Farnesina. Como Superintendente das Antiguidades Pontifícias desde 1670, Bellori trabalhou com Pietro Santi Bartoli na reconstrução e restauro de sítios arqueológicos a fim de preservar a sua memória e documentar os seus. Também tem importante papel nos estudos de Arqueologia, Numismática e História da Arte moderna, com o livro Vite de'pittori, scultori, architetti moderni. Nas pinturas que elogia apresenta-se como um 'semplice traduttore’, mas além de interpretar as obras e descrever os seus elementos também se deleita no estudo dos seus ‘sentidos’, p. ex. no caso da 'allegoria’. A sua ‘retórica do silêncio’ não é uma mera postura de espectador neutro, mas sim o desejo de emular a superioridade das artes através da ELOQUÊNCIA. Compara a Poesia com a Pintura, reune parangonas com Nicolas Poussin, e desenvolve um discurso que (ao contrário do tratadismo francês do tempo) tenta analisar os princípios das Obras-Primas e os fundamentos da Pintura à luz da Natureza e da tradição clássica.Abade da Igreja, presidente da Academia de Roma, foi Antiquário do Vaticano e bibliotecário da raínha Cristina de Suecia. Publicou as “Descripción de las estancias de Rafael en el Vaticano”. Bellori seguiu a arte da pintura sem sucesso e preferiu dedicar-se à literatura,, sendo amigo de pintores como Poussin e de escultores como Duquesnoy. A obra fundamental é as VITE, de 1672, onde rtomou o exemplo de doze artistas cuja biografia apresenta, à luz das suas maneiras distintas de fazer arte: defende que no início do XVII há duas tendências opostas, o NATURALISMO dos seguidores de Caravaggio e o TARSDOMANEIRISMO do Cavaleiro de Arpino. Critica a esse naturalismo o predomínio da cor, com que só chega às camadas popularers e iletradas. Defende um CONCEITO INTELECTUAL da arte, que define como COSA MENTALE, com tónica no estudo e imitação da natureza. A solução é a que os Carracci ofereceram no início do século XVII: a via do classicismo, assente no desenho e no estudo do Antigo. Por isso elogia tanto Annibale Carracci de Bolonha, Domenichino, Pietro da Cortona, Guido Reni, Lanfranco, Sacchi, os franceses Nicolas Poussin e Valentin de Boulogne, e os que seguem Rafael, e menos, embora admirados, nomes nórdicos como Van Dick e Rubens.Emulou a natureza à luz da estética grega. Assumiu uma sólida defesa da “idea da pintura, escultura e arquitectura” e analisou com grande dose de rigor a situação das artes na Itália do seu tempo.
Bom
testemunho do pensamento de Giovan Pietro Bellori é a conferência feita na Accademia di San Luca de Roma em 1664; aí, o escritor enunciou
a sua própria teoria Isegundo a qual é preciso retornar-se à NATUREZA
como fonte primeira de inspiração dos artistas, no que constitui uma clara
oposição às teorias artísticas do Maneirismo, que defendia uma recriação mental
e ideal da natureza. Ferozmente anti-maneirista, prefere o classicismo de Rafael à ‘maniera’ de Miguel Ângelo. Assim, defende a
prevalência dos cànones da estatuária greco-romana e as linhas apolíneras da
VENUSTÁ rafaelesca, como coordenadas de qualidade em torno das quais de
organiza a sua "idea del bello". Retoma as teses neoplatónicas do
Renascimento em defesda da Alegoria e da Mitologia, segundo os
cânones da verosimilhança. No caso de representações de cenas ambientadas em
realidades históricas – como em cenas de santos e martírios, etc
– defende uma ‘visione
idealizzante e intellettuale del mondo sensibile’. Nesta viagem metafórica pela descoberta de Roma, Bellori destaca o papel de Annibale Carracci, a Morte dos Inocentes de
Guido Reni
(de 1611), a Caça de Diana (gal. Borghese) do Domenichino e artistas estrangeiros como Poussin e Dusquesnoy. Durante esta viagem encontram-se também
obras de pintores de gosto não classicista -- Caravaggio, Rubens, van Dyck
– que Bellori destaca em atenção ao seu destacado
papel inovador.
A viagem por Roma proposta por Bellori mostra-nos o Hércules de Annibale Carracci (Museo nazionale di Capodimonte), elogio do naturalismo convertido à impressão all’antico romana, com a presença da estatuária e das ruínas, e a presença da virtù que indica a via, as transparências das vestes no Vício e os tecidos vermelhos e celestes da Virtude. O itinerário prossegue com Caravaggio e os caravagescos, e a lição do claro-escuro quase cinematográfico é exaltada, pela descoberta da realidade: "Molti furono quelli che imitarono la sua maniera nel colorire dal naturale, chiamati perciò naturalisti..." Cita a propósito Ribera, Bartolomeo Manfredi (Jesus e os mercadores do Templo), Valentin de Boulogne, Gherardo delle Notti, etc. Mas Bellori prefere o classicismo amaneirado e altamente simbólico de Domenichino. A caça de Diana (Roma, Galleria Borghese) inspira-se num confronto"intelectual" com as fontes antigas, como a ‘Eneida’ de Virgílio. O S. Silvestre e o dragão de Giovanni Lanfranco (Caprarola, Santa Maria degli Zoccolanti), é uma composição escalonada, menos clássica, com retomas rafaelescas e cores ‘pontormescas’, ao contrário do que era usual no ‘lirismo’ desse pintor. Destaca a Madalena levada ao céu por anjos (Napoli, Museo Nazionale di Capodimonte).
Portugal vivia então a era pedrina – os anos de regência e reinado de D. Pedro II (1678-1705) – são tempo de estabilidade após a longa crise aberta com os anos das guerras da Restauração e existem ressonâncias do pensamento de Bellori na renovação das artes que então se desenha. A cultura artística internacionaliza-se: em 1689, o monarca promove um acórdão em favor da liberalidade das artes e dos seus praticantes. A figura de João Antunes (1643-1712) desponta nesse contexto, com o projecto (1681) para aquela que será a primeira igreja barroca em espaço nacional: a Igreja de Santa Engrácia (depois Panteão Nacional).O final do século XVII acompanha, com D. Pedro II, a viragem artística no sentido da adequação ao Barroco romano, ainda que persistam tendências vernáculas. É então que Félix da Costa Meesen (1642-1712), tão crítico do que chama o «mingoante das artes» nacionais, escreve ANTIGUIDADE DA ARTE DA PINTURA (1696), eco das ideias da Academia de Charles le Brun em Paris e do crítico Giovan Pietro Bellori, esteta da arte clássica e do bel composto. Porém, a internacionalização que se desejava faliu, com a nossa arte presa às tradições do tenebrismo e da decoração (brutesco, azulejo de padrão e talha dourada, ainda que o empenho dos mecenas e coleccionistas abra novos caminhos. Todavia, nomes como João Antunes na arquitectura, José Rodrigues Ramalho na obra de talha, António de Oliveira Bernardes e António Pereira Ravasco na pintura de tectos e no azulejo, Claude de Laprade na escultura, vão redimensionar essa viragem da tradição seiscentista e marcar, na passagem para o século XVIII, as novas tendências ‘modernas’ da arte portuguesa.
Artes em Goa e no antigo Estado Português da Índia durante a era colonial: miscigenações artísticas.
11 Dezembro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A cidade de Goa, capital do Estado português da Índia, considerada a Roma do Oriente na descrição de viajantes como Tavernier, Linschotten e Pyrard de Laval, era no fim do século XVI, quando o agostinho Frei Aleixo de Meneses assumiu a direcção do seu Bispado, um centro urbano, cultural e artístico de significativo destaque. A Monarquia Dual, assegurando as prerrogativas da administração portuguesa, contribuiu para criar um clima de favorecimento das artes e estimular a construção de uma notável arquitectura sacra e civil notável, em que se destacam figuras como o engenheiro-mor e arquitecto Júlio Simão ou Simonis, e os recém-identificados escultores canarins mestre Babuxa e mestre Santopa, os pintores Aleixo Godinho e João Peres, o ourives Jerónimo da Costa, os pedreiros Manuel Coelho e João Teixeira, o dourador António da Costa, e outros artistas e artífices, reinóis ou hindus convertidos, identificados na rica documentação do Arquivo Histórico de Pangim.
Os novos elementos de estudo permitem lançar luz sobre uma fase de grande prestígio da arte luso-indiana, de que restam ainda vários monumentos 'in situ' como a Sé, Santa Mónica e o Bom Jesus em Goa, as ruínas da igreja da Graça, diversas capelas, e os templos da região de Cochim e Kerala erguidos e decorados sob o munus do mesmo prelado no início do século XVII e recém-estudados por Hélder Carita. A actividade de Aleixo Godinho, esquecido pintor nome ao serviço dos agostinhos, dos jesuítas e do Vice-Rei, adquire relevância por se tratar do enigmático «pintor Godinho» elogiado por Diogo do Couto a respeito das pinturas das Armadas da Índia, e que sabemos agora ter trabalhado para as igrejas do 'Monte Santo' de Goa: o Colégio do Pópulo, a igreja da Graça e o Mosteiro de Santa Mónica. Os frescos e pinturas a têmpera deste último (o maior cenóbio feminino no Império, com as suas cem freiras, hoje um instituto de Teologia cristã, tendo-se podido conservar) mostram uma produção maneirista de boa qualidade, e também actualizada, com cenas inspiradas em modelos de gravuras ítalo-flamengas de Roma e Antuérpia, a mostrar o engenho e domínio cenográfico da mão-de-obra artística goesa no início de Seiscentos, sob influência dos modelos maneiristas europeus, fortemente miscigenados com o gosto, a técnica e os referenciais hindus.
O estudo da arte luso-indiana no espaço do antigo Império português tem de ser assumido nos nossos dias como prioridade nas políticas patrimoniais do Estado português, num tempo em que se esbatem tanto a visão neocolonialista da História como pruridos chauvinistas contra os antigos testemunhos portugueses e se torna possível, por isso, o estudo sério, a conservação preventiva, o restauro integrada e a divulgação em rede turístico-cultural. Importa, pois, investigar a sério, em articulação com o Estado da Índia e outras entidades envolvidas, e com base nos fundos inéditos dos arquivos e nas remanescências da arquitectura e artes ornamentais, no sentido de preservar uma memória de prestígio e um testemunho de linguagens culturais miscigenadas que foi e é significativo nos territórios do antigo Império português onde, a par da língua, persistem testemunhos construídos e de equipamento artístico de significativa qualidade.
O engrandecimento de Goa no tempo filipino deve-se não só à política da Monarquia Dual sobre as possessões portuguesas no Mundo, cuja administração se manteve, mas à postura intelectual do dinâmico munus de D. Frei Aleixo de Meneses nos anos em que esteve à frente do Arcebispado de Goa, que governou a Diocese entre 1595 e 1612, construindo igrejas, fortalezas e palácios, desenvolvendo-a em termos arquitectónicos e urbanísticos com o seu mestre de obras Júlio Simão, e estendendo a sua autoridade à região de Cochim, e Kerala, onde se deslocou em 1599, em visita pastoral, impondo com o Sínodo de Diampar a integração da comunidade dos cristãos de São Tomé no rito romano e a sujeição do arcebispado de Angalamy ao de Goa. Nessa comitiva, Frei Aleixo fez-se acompanhar por artistas e artífices, o que explica o ‘carácter goês’ de algumas construções e decorações então ordenadas na zona de Cochim e Kerala, como a igreja de Santa Maria de Angamaly, renovada em 1601 (776 da Era de Coulão), incluindo altares e decoração de frescos do Paraíso e Inferno, ou os frescos da igreja de Mar Shabot Mar Afrot, do princípio do século XVII, com óbvia influência de modelos maneiristas europeus. Goa ainda hoje conserva, apesar das perdas inevitáveis, um acervo artístico deste período – pintura, escultura, talha, azulejo, esgrafito, ourivesaria – que é de capital importância para o estudo da arte indo-portuguesa da primeira metade do século XVII, precisamente a fase de maior esplendor das artes em Goa, e para a qual o historiador de arte Rafael Moreira chegou a propor a designação «estilo D. Fr. Aleixo de Meneses» a fim de caracterizar a construção oficial que se promoveu, com especificidades estilísticas e ecos serlianos, fiel à lição do Maneirismo italiano.
A actividade do pintor goês Aleixo Godinho, nome desconhecido de artista ao serviço dos agostinhos, dos jesuítas e do Vice-Rei, adquire agora uma inesperada relevância. Trata-se do enigmático «pintor Godinho» que foi elogiado por Diogo do Couto a respeito das pinturas das Armadas da Índia, e que sabemos agora ter trabalhado no início do século XVII para as igrejas do 'Monte Santo' de Goa: o Colégio do Pópulo, a igreja da Graça e o mosteiro de Santa Mónica. Os frescos e pinturas a têmpera deste último mosteiro (que era o maior cenóbio feminino no Império, com as suas cem freiras e mais de duzentas noviças e criadas), e é hoje um instituto de Teologia cristã, assim se tendo conservado razoavelmente) mostram uma produção maneirista de grande qualidade, e também actualizada, com o seu acervo de cenas bíblicas, alegóricas ou hagiográficas, inspiradas em modelos de gravuras ítalo-flamengas de Roma e Antuérpia.
Foi mentor das obras de Santa Mónica Frei Diogo de Sant'Ana (1572-1644), um agostiniano ao serviço de Frei Aleixo de Meneses, monge de origem transmontana ligado a vários cargos relevantes na sociedade goesa do tempo dos Filipes, mecenas das artes, escritor, teólogo e historiógrafo, autor das mais importantes e esclarecedoras crónicas sobre o Mosteiro de Santa Mónica, responsável pela execução de obras de Santa Mónica entre 1606 e 1627, e em 1637-1639, após o incêndio de Dezembro de 1636 que danificou as alas conventuais dos dormitórios e obrigou a célere reparação. Formado em Teologia na Universidade de Salamanca, professou em 1594 no Mosteiro da Graça em Lisboa, acompanhando Frei Aleixo quando foi designado Arcebispo de Goa e viajou em 1595, com apertada comitiva, para a Roma do Oriente. Mandado para acção missionária na Pérsia, foi prior do Convento de Ispaão, convertendo o patriarca arménio David e centenas de gentios, assumiu o cargo de administrador e confessor do Mosteiro de Santa Mónica, foi membro da Mesa da Consciência e Ordens, Deputado do Santo Ofício, mestre dos noviços, prior do Convento de Nossa Senhora da Graça e Reitor do Colégio de Nª Sª do Pópulo em Goa, cidade onde morre em 6 de Outubro de 1644. Sobre este Frei Diogo de Sant’Ana existe estudo recente do autor e de Maria Adelina Amorim. («Arte e História do Mosteiro de Santa Mónica de Goa, à luz da 'Apologia' de Fr. Diogo de Santa Ana (1633)», em colaboração com Maria Adelina Amorim, in Problematizar a História -- estudos em Homenagem a Maria do Rosário Themudo Barata, ed. Caleidoscópio e Centro de História da Universidade de Lisboa, Lisboa, pp. 677-713).
A arte do tempo de Frei Aleixo de Meneses documenta essa qualidade miscigenada, cenográfica, absolutamente poderosa na sua força comunicacional, que a aparenta – no que toca aos ciclos de pintura, por exemplo – à grande decoração imagética do mundo hispano-americano -- caso do Peru, p. ex., com os murais dos pintores indígenas Luís de Riãno e Diego Cusi Husmán na igreja de San Pedro de Andayuillas, em Cuzco (Peru), de c. 1615-27, ciclo coevo do de Santa Mónica de Goa e se assume bom testemunho miscigenado de modelos imagéticos de influência maneirista europeia (Roma, Antuérpia, Sevilha) com utilização de idênticos modelos europeus contra-reformados, e com elementos decorativos e modelos de figura de sabor tipicamente andino.
A arte luso-indiana no espaço do antigo Império português tem de ser assumido como uma prioridade nas políticas patrimoniais, num tempo em que se vão esbatendo, quer a visão neocolonialista da História, quer os pruridos chauvinistas contra os antigos testemunhos portugueses nesses territórios. Importa, pois, investigar a sério, com base nos fundos inéditos dos arquivos e nas remanescências da arquitectura e artes ornamentais, no sentido de preservar uma memória de prestígio e um testemunho de linguagens culturais miscigenadas que foi e é significativo. Os monumentos e peças artísticas que subsistem do antigo Império luso em terras da Índia testemunham esse processo de miscigenação de culturas e a força criativa da produção luso-indiana durante a Idade Moderna.
É importante definir, antes de mais, a noção epistemológica de Arte do antigo Império Português (ao invés de Arte Colonial, ou Arte Ultramarina), a justificar um significativo reforço de investigações pluri-disciplinares, estudo, inventário, divulgação, salvaguarda, conservação, restauro e debate científico. Os estudos desta arte do antigo Império, explorada com maior ênfase no caso do Brasil mas abarcando também as artes da Índia portuguesa (Goa, Damão, Diu), analisada por Mário Tavares Chico e Carlos de Azevedo, e os do Extremo Oriente, Macau e Timor, bem como os de Marrocos e costa africana, que Pedro Dias divulgou, têm dado origem no último meio século a uma série de estudos que se caracterizam (e continuam a caracterizar) por três vertentes concomitantes:
a) re-valorização do pitoresco (as ‘artes decorativas’, por exemplo o mobiliário e escultura luso-indiana, a arte ‘nam-bam’, os bronzes do Benim, a talha barroca mineira);
b) sub-valorização das expressões locais (sob o estigma de um decadentismo que seria sempre inevitável, como se outra solução criativa não fosse possível, longe da influência do ‘centro’);
c) a contribuição de temas ‘de retorno’ que vêm enriquecer, numa espécie de mais-valia aberta pela Expansão ultramarina, novos repertórios europeus (figuras híbridas, exotismo da fauna e flora, o índio e o selvagem, etc).
Tais perspectivas sobre a arte do Mundo Português, testemunho de determinada visão das artes (redutora, pesem os méritos dos resultados obtidos), têm impedido as comunidades de saber olhar em conjunto para o seu património artístico, desvendar qualidades de produção autóctone e reavaliar em exacta contextualização (por entre as redes de influências díspares que se abriram com o curso da História) as pulsões originais, já intuídas por Chico e Carlos de Azevedo ou Maria Helena Mendes Pinto. Os mais recentes estudos de Hélder Carita, Teotónio R. de Souza, Pedro Dias, Nuno Vassalo, Luís Filipe Reis Thomaz, António Nunes Pereira, Paulo Varela Gomes, Alexandra Curvelo e José Meco, entre outros, abrem caminhos para novas e desejáveis visões de síntese, hoje possíveis de concretizar. Neste campo de pesquisas, impõe-se obviamente estudar o ‘retorno’ e avaliar o ‘pitoresco’, mas em dimensão integrada que, sem absurdas derivas neo-colonialistas ou (no pólo oposto) ultra-chauvinistas, saiba reavaliar os tecidos artísticos -- que são sempre fruto de bravuras e limitações, enriquecimentos e seguidismos, ousadias e retomas anacrónicas, constantes vernáculas e fugas rupturais, etc, e se entrecruzam, por vezes de modo extraordinário, numa mesma obra e num mesmo artista.
Numa visão sobre as valências artísticas do denominado Maneirismo de Goa -- um dos monumentos emblemáticos que importa destacar e que enobrece o património da velha ‘Goa do Oriente’, antiga capital portuguesa das chamadas Índias Orientais – a conferência destaca o acervo do Mosteiro de Santa Mónica, fundado em 1606 pelo Arcebispo D. Frei Aleixo de Meneses (1559-1617) e erigido entre 1611 e 1627, que conserva, apesar das vicissitudes um acervo artístico de capital importância para o estudo do que se convenciona chamar arte indo-portuguesa. É «um dos maiores edifícios levantados pelos portugueses no ultramar», como escreveu o historiador de arte Carlos de Azevedo, que integrou, com Mário Chicó, o arquitecto Humberto Reis e o fotógrafo José Carvalho Henriques, a brigada de estudo do património mandada à Índia em 1951.Os artistas que intervêm na construção por Frei Diogo de Sant’Ana, mentor da obra, foram os mesmos das obras do Mosteiro de Nossa Senhora da Graça e do Colégio do Pópulo, no chamado Monte Santo de Goa, colina privilegiada dos agostinhos: o engenheiro-mor Júlio Simão ou Simonis, que actua em Goa de 1596 a 1632 e foi o arquitecto, os pedreiros Manuel Coelho e João Teixeira, o escultor mestre Babuxa, o entalhador Santopa, o dourador António da Costa, e alguns pintores der muito mérito e vasta actividade, com destaque para Aleixo Godinho e João Peres. A casa, destinada a cem «donzelas e viuvas virtuosas», recebeu bula de Paulo V (1613) e breve de Gregório XV (1622) e foi do Padroado Real (1636). Ainda conserva, apesar das perdas, um acervo de pintura, escultura, talha, esgrafito, azulejo e pratas de capital importância para estudo da arte indo-portuguesa nesta fase de esplendor de Goa.
O estudo histórico-artístico sistematizado (e contextualizado) destas realidades artísticas ainda mal pressentidas pelos historiadores de arte revalorizará o conhecimento sobre o Património dos espaços lusófonos, prioridade das prioridades nas políticas de conservação, restauro, investigação e re-conhecimento do Estado português e ponte privilegiada para o diálogo e o alargamento de relações com outros povos e culturas que, no melhor e no pior da História, estiveram e continuam ligados por profundas marcas de miscigenação e de longa experiência vivencial, que merece ser estudada e devidamente preservada enquanto identidade comum.
A nobre arte da Caligrafia.
7 Dezembro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A Nobre Arte da Caligrafia desde o Renascimento.
O primeiro autor de um tratado de Caligrafia em Portugal foi Giraldo Fernandes de Prado (c. 1530-1592). Nasceu em Guimarães, na nobreza rural ligada aos Prados, senhores de Farelões, serviu o condado de Barcelos, trabalhou para a Casa de Bragança em Vila Viçosa ao serviço de D. Teodósio II, viveu em Almada ligado a círculos da corte, foi pintor, iluminador, calígrafo e cavaleiro fidalgo e era tido, segundo diz o padre lóio Jorge de S. Paulo, «homem de admiravel pincel na arte da pintura». A obra que tem sido identificada em data recente confirma esse qualificativo: foi nome relevante da geração de Luís de Camões, dos pintores Campelo e Venegas, do iluminador António Fernandes, do tratadista e arquitecto Francisco de Holanda. A Giraldo Fernandes de Prado se deve em 1560-61 o primeiro tratado português de Caligrafia, mss. que identificámos num arquivo nova-iorquino. Terá sido concebido para o ensino do filho de D. Teodósio I, D. João, conde de Barcelos e futuro 6º Duque de Bragança. O interesse histórico-artístico deste Tratado de Letra Latina (Columbia University, Rare Book & Manuscripts LIbrary, Cód. Plimpton, MS 297) e bem assim de outro mss. desse fundo (Manual para Copistas, Códice Plimpton, MS 296), também do português, e ainda inédito, impõe estudo integral e edição facsimilada. Os manuscritos procedem do fundo Georg Plimpton: em 1798 estavam em Mayence, em 1865 entram na posse do conde de Renessee Breidbach, em 1903 na de George Plimpton, cuja biblioteca é doada em 1932 ao actual arquivo. O tratado elogia a letra canceleresca à luz do humanismo cristão de Luca Pacioli (De Divina Proportione Veneza), Geoffrey Tory (Champ Fleury) e Aldo Manucio (De Aeta de P. Bembo) e a forma geométrica do alfabeto na grelha quadrada (relação 1:9). Tais tratados eram conhecidos de Francisco de Holanda e outros, e explicam as referências literárias e os círculos em que se movia Giraldo. Embora não tivesse sido publicado (por razões obscuras), o tratado de New York constitui testemunho valioso da Caligrafia portuguesa, e o seu primeiro manifesto. Em 1887-89, John William Bradley escreveu a seu respeito: «Giraldo de Prado. Calligrapher. s. XVI. Wrote at Lisbon, in 1560-1, a book of pictorial alphabets, with his signature frequently ocurring. Paper, 4to, 51 ff. The execution and ingenuity of design are said to be far superior to those of Palatino. Formerly in possession of Mr. Bragge, of Sheffield. Sold in 1876, at Sotheby's, Catalogue 23, n. 122».
Apesar do que já se vai sabendo, Giraldo de Prado é ainda um nome esquecido da História da Arte. Todavia, foi artista de mérito, serviu na casa de D. Teodósio II e os seus talentos eram reconhecidos. Contemporâneo do escritor Fernão Mendes Pinto, do cronista Francisco de Andrada, de D. João de Portugal e outros ilustres, Giraldo foi homem da confiança de Manuel de Sousa Coutinho (o célebre Fr. Luís de Sousa), o que atesta personalidade culta com sólida educação italianizante e neoplatónica. Nesse contexto, assume papel pioneiro ao escrever um tratado de Caligrafia com valores pedagógicos e doutrinários e tipos caligráficos de «letra cancelleresca».
A arte da Caligrafia e as artes afins passaram a constituir um sub-domínio importante no contexto da História da Arte. No Renascimento, muitos humanistas, desde Erasmo a Juan Luís Vives e João de Barros, se preocuparam pela educação dos jovens da nobreza, os filhos-família a quem se destinavam lugares nas esferas do aparelho de Estado, razão acrescida para lhes fornecer bases de escrita e caligrafia harmoniosa segundo os valores do humanismo cristão e da doutrina neoplatónica. Os primeiros calígrafos portugueses de que se tem registo foram Frei Heliodoro de Paiva, filho do estadista Bartolomeu de Paiva e monge da livraria de Santa Cruz de Coimbra, falecido em 1552, e João de Barros, que em 1539 deu à estampa uma Grammatica da Lingoa Portugueza. Quanto ao primeiro, porém, não resta obra, e o livro de Barros, embora incluindo xilogravuras com letras acompanhando a cartilha, não é propriamente um manual de caligrafia. O ensino dos filhos da nobreza uma prioridade na escala de investimentos da Dinastia de Avis. O humanista Clenardo, ao chegar em 1535 a Évora, onde a corte estadeava, fazia notar como floresciam os estudos dos príncipes, bom augúrio para a projecção do Reino português.
A infanta D. Maria de Portugal (1538-77), princesa de Parma e Plasência, filha de D. Isabel de Bragança e do Infante D. Duarte, quando casou com Alessandro Farnese, Duque de Parma, fazia alarde de esmerada educação, com ensino das letras, da Matemática (por Domingos Peres) e conhecimentos de astrologia, filosofia e língua grega. Estas matérias eram ensinadas no Paço de Vila Viçosa nos anos dourados da corte do 5º Duque D. Teodósio I e dos sucessores. Campo nobilitante, a Caligrafia cresceu e não admira que tanto Giraldo de Prado e Manuel Barata, calígrafos de primeiríssima linha, fossem cavaleiros-funcionários da casa brigantina.O facto de se tratar de uma actividade algo descurada nos estudos dos historiadores de arte, como se o seu desenvolvimento se situasse à margem da prática artística e não no plano mais fundo da sua essência, impõe que se destaque a sua presença nos círculos quinhentistas nacionais.
Tudo começa no século XV e com a introdução da tipografia. Os humanistas do Norte de Itália, como intelectuais progressistas que eram, aspiram a ver impressas as suas obras com tipos desenhados com régua e compasso, numa harmonia assente em ‘proporções ideais’ capazes de reflectir a dignitas, a liberalitas e a virtú do homem do Renascimento. Os primeiros tipógrafos italianos usam as belas letras romanas, moldam os tipos de chumbo com formas derivadas de construções geométricas seguindo os padrões dos humanistas. O modo geométrico foi o processo ideal para conceber a arte do tempo, e também a Caligrafia se adequou às ‘proporções ideais’. Desenham-se de more geometrico caracteres que reflectem o antropocentismo e a harmonia do mundo, as belas proporções à luz dos princípios matemático-lógicos.
Para os scriptores e calígrafos italianos, a famosa inscrição da lápide gravada na base da Coluna de Trajano por Apolodoro de Damasco, artista grego ao serviço dos romanos, foi a fonte inspiradora dos calígrafos, que viam nessas letras latinas a base-legitimação do rigor, legibilidade e beleza que se pretendia recuperar na arte de editar e escrever. O interesse pela epigrafia da Antiguidade greco-romana, e os estudos das proporções ideais (‘divinas’) do corpo em Leonardo da Vinci ou Albrecht Durer, levam à edição de tratados sobre a estética e proporções das letras versais romanas. Comum a todos é a inserção das letras no quadrado, a forma geométrica considerada pura. A qualificação da Caligrafia como verdadeira arte do Humanismo, apta a destacar valências estéticas e morais, vai ter enorme fortuna nos séculos seguintes, dando corpo às diversificadas formas de escrita, em nome da harmonia, ordem e sentido ontológico do mundo... Quando Aldo Manuccio discorreu sobre a forma geométrica das letras do alfabeto segundo a grelha quadrada (relação 1:9) e fez elogio da letra canceleresca (letra humanística) está consumada a ruptura com os scriptores medievais, que traçavam as letras à medida do olho, seguindo os cânones da ortodoxia monástica, enquanto que os calígrafos da Renascença reivindicam uma qualidade estética superior, em nome do antigo, usando a régua e o compasso para construir as letras. Para estes humanistas a perfeição e harmonia das artes baseava-se no estudo da perspectiva e da ciência das proporções numéricas e traduzia-se em figuras geométricas elementares (corte áureo). Estadistas, filósofos, cientistas, poetas, matemáticos, arquitectos, artistas recriam o pensamento dos filósofos greco-romanos, pesquisam os ideais estéticos, rejeitam as letras góticas (vistas como «bárbaras») e recriaram o uso da letra romana.
A época de ouro da Caligrafia inclui livros famosos como o Champ Fleury de Geoffroy Tory (Paris, 1524), os de Luca Pacioli (Summa di Arithmetica Geometria Proportione e Proportionalita, 1494), Aldo Manuccio (ed. De Aeta de Pietro Bembo, 1495), Ugo da Carpi (Thesauro de scrittori de 1535), Ludovico Arrighi Vicentino (La Operina, 1522, e Il modo de Temperare le Penne, 1525), Giovantonio Andrea Tagliente (La vera arte de lo Excellente scrivere de diverse varie sorti di Litere, Veneza, 1524), Giovanbattista Palatino (Libro nuovo d'imparare a scrivere Tutte Sorte Lettere antiche et moderne di tutte nationi, con nuove regole, misure et essempi, Roma, 1540, e Compendio del gran volume, 1566), e outros calígrafos italianos, bem como Gerardus Mercator (Literarum Latinarum, quas Italicas cursoriasque vocant, scribendarum ratio, 1540), o biscaínho Juan de Yçiar (Arte Subtilissima por la qual se enseña a escrevir perfectamente, Zaragoza, 1546, com várias edições), e ainda o calígrafo e secretário do Imperador Fernando I, Georg Bocskay (Mira Calligraphicae Monumenta, 1561-62), obras estas, muitas delas, patentes nas bibliotecas portuguesas e que puderam assim constituir fonte para os tratados de Giraldo de Prado e de Manuel Barata. Dos citados, um dos mais popularizados é o tratado de Giovannantonio Tagliente (1468-1527), mestre-calígrafo de Veneza que cria a letra ‘Bembo’, La vera arte de lo Excellente scrivere de diverse varie sorti di Litere. A fonte Bembo foi redesenhada por Stanley Morison (1929) com base no desenho de Tagliente. Existiu em Tagliente talento para aprofundar o modo simples de Arrighi, ao propôr letras floreadas a que chamou cancelleresca pendente (quase ilegível) como a letra Trattizata, a Bollatica e a Imperiale. Manifestamente, a Caligrafia queria renovar-se -- e individualizar-se, ao sabor de novas propostas estéticas. Das letras itálicas leva a palma a lettera cancelleresca (já em uso nas chancelarias das cidades-estado de Roma a Veneza, Florença, Siena, Milão, Pádua). Num outro livro (1531), Tagliente defende a arte da Caligrafia à luz da razão geométrica com propósito de educar o público: con la presente opera ognuno le potra imparare impochi giorni per lo amaistramento, ragione & essempi, como qui seguente vedrai. Também Ugo da Carpi (Thesauro de scrittori, 1535, junto à obra de Sigismondo Fanti Liber elementorum theorica et practica, Veneza, 1514) seguiu nessa linha, compondo uma gravura com utensílios da arte da Caligrafia, depois utilizada no tratado de Palatino e no de Giraldo.
Antes do livro de Manuel Barata (edições em 1590 e 1592 e presumivelmente já em 1572) as questões da arte da Caligrafia eram já patrocinadas e discutidas na Corte dos Duques de Bragança. No Renascimento, muitos são os humanistas, de Erasmo a Juan Luís Vives e ao português João de Barros, que se preocupam pela formação dos jovens da nobreza, os filhos-família de quem se esperam responsabilidades no aparelho de Estado, razão acrescida para lhes fornecer bases de escrita através de cartilhas, princípios pedagógicos e tipos caligráficos «cancellerescos». Os dados que se sabem sobre Giraldo de Prado são reveladores do seu destaque estatutário. É no seio da corte de Lisboa que, em 1560, desenha o Tratado de Letra Latina (Univ. de Columbia, New York), com objectivo de dignificar a Caligrafia e educar os príncipes (acaso D. João I, futuro 6º Duque de Bragança, filho de D. Teodósio I, com dezasseis anos) na letra cancelleresca. Em 1569-71, pinta e desenha as iluminuras do Compromisso da Irmandade das Almas da igreja de São Julião de Setúbal (Biblioteca Municipal de Setúbal), que andou mal atribuído a Francisco de Holanda. Essa Confraria foi fundada em Novembro de 1569, com Estatutos segundo modelo da Irmandade das Almas da igreja da Madalena de Lisboa, e teve Compromisso aprovado em Maio de 1571, pelo que a iluminação do códice tem de ser situada cerca de 1570-71. Em 1581, está estabelecido em Almada, mora no convento domínico de São Paulo e trabalha para o teólogo D. Francisco Foreiro, de seguida está ligado ao cronista régio Francisco de Andrada, em cujas casas passa a morar, e aos Sousas Coutinhos; pinta em 1584 a Bandeira Real da Misericórdia, é confirmado em 1585 cavaleiro da Casa Ducal de Bragança, recebe subsídio para sustento de uma moradia em Vila Viçosa, pinta os frescos da igreja de Santo António nessa vila ducal, em 1589 desloca-se a Braga, a pintar os retábulos do mosteiro de Vilar de Frades e em 1590 pinta as seis tábuas do retábulo da igreja da Misericórdia de Almada. Nesses anos, tem como criado e discípulo André Peres, que o substituirá no cargo de pintor da Casa de Bragança. Em Junho de 1591 recebe o devido pela pintura do retábulo da Misericórdia de Almada, entretanto dourado por Luís Álvares de Andrade e Francisco Rodrigues, dando-se quite da obra. Em 4 de Julho de 1592 falece nas casas de Almada e jaz em São Tiago. A viúva não ficou abonada: em Junho de 1604, Catarina Nunes nomeia procurador o padre Manuel das Chagas para receber da confraria de Nª Sª do Rosário de Montemor-o-Novo certa dívida (acaso de obra do marido), sendo testemunha o moço Luís do Prado, filho do casal, então criado de D. Francisco da Câmara.
Resta dizer que -- embora ainda seja campo insuficientemente estudado -- a obra de Giraldo Fernandes de Prado para a Casa de Bragança deve ter incluído a direcção de projectos decorativos como os revestimentos a stucco e esgrafito maneiristas, caso de uma capela centralizada no Paço de Vila Viçosa, onde o ornamento estucado recorda o estilo de Giraldo. Além das tábuas do retábulo da Misericórdia de Almada, Giraldo deixou outras na Capela de Nª Sª da Luz da Sé de Portalegre, uma encomenda do Bispo D. Fr. Amador Arraes de que ainda restam três quadros do artista. Também são suas duas tábuas em Sesimbra e uma no Convento de São Francisco de Alenquer. Em Vila Viçosa há frescos seus na câmara-oratório de D. Teodósio I, recém-restauradas. Todas estas obras revelam as altas qualidades do cavaleiro-pintor dos Braganças. No Cap. 12 do Breve Tractado de lluminaçam, mss. anónimo de c. 1630 (Arquivo da Universidade de Coimbra), elogia-se o Prado pela qualidade das matérias-primas e técnicas que utilizava com sucesso na arte de dourar, policromar e iluminar.
O códice manuscrito Plimpton MS 297 Tratado da Letra Latina por Giraldo Fernandes de Prado, de 1560-1561 (Columbia University, New York) é o mais antigo testemunho da arte da Caligrafia que se documenta em Portugal. A obra é anterior em doze anos, pelo menos, à edição do manual de Manuel Barata. Giraldo Fernandes de Prado mostra-se aqui homem de sólida cultura humanística. Revela domínio da Geometria e da Perspectiva e o gosto pela decoração de grotesco que depois perpassará nas suas obras a fresco. Os 51 fls. mostram originalidade, ainda que com citações de fls. de Içiar, Palatino e Tagliente: o fólio que representa objectos de calígrafo inspira-se num fólio de Sigismondo Fanti, Thesauro de scrittori (1535), mas ignora-se se alguma edição estava nas bibliotecas portuguesas ao tempo do Tratado de Letra Latina. As afinidades dos desenhos de Giraldo de 1560-61 são flagrantes quando cotejadas com os que ilustram o livrinho Exemplares de Diversas Sortes de Letras tirados da Polygraphia de Manuel Baratta, escriptor português, edição de João de Ocanha, Lisboa, tip. de Alexandre de Sequeira, 1592. Deste livro restam pouquíssimos exemplares: da edição de 1572, nenhum; da de 1590, quatro; e cinco da edição de 1592, um dos quais integra a Biblioteca Pública de Braga..
A obra de Barata mereceu encómio por ser considerada a primeira em que aparecem «os originais de Letras abertas em chapa» e a excelente letra chancelerescaa, bastarda itálica e romana». Tal como na edição de 1590, também a de 1592 contém dezoito folhas com modelos caligráficos (segundo chapas abertas em metal e madeira) de Manuel Barata. A obra foi publicada postumamente, junto com duas outras obras reunidas numa só: Tratado de Arismetica com mvyta diligencia, de Gaspar Nicolás (Lisboa, ed. Germão Galharde, 1519), e Regras qve ensinam a maneira de screver a orthographia da lingva Portuguesa, de Pero de Magalhães de Gândavo. Não se sabe com que objectivo João de Ocanha, livreiro do Duque de Bragança, propôs um livro-compêndio de pedagogia como este. Barata, de cuja vida pouco sabemos, morrera pouco antes; nascera na Pampilhosa, veio cedo para Lisboa onde se tornou calígrafo de renome, mestre de escrita do malogrado príncipe D. João, filho de D. João III, pai de D. Sebastião, e entrando (tal como Giraldo) ao serviço de D. Teodósio I na corte de Vila Viçosa. Se uma das matérias nobilitantes que recebeu maior estímulo da parte dos Duques de Bragança foi a arte da Caligrafia; não admira que tanto Manuel Barata como Giraldo Fernandes de Prado, calígrafos de primeiríssima linha, tivessem sido cavaleiros-funcionários dessa Casa e figuras prestigidas. O elogio de Camões, num belo soneto que acompanha as ed. de 1590 e 1592 (e já deveria constar da de 1572) e é um verdadeiro elogio à arte da Caligrafia, diz o seguinte sobre Barata:
«Ditosa pena, como a mão que a guia, / Com tantas perfeyçõens da sutil Arte, / Que quãdo com razão venho a louvarte, / Em teus louvores perco a fantasia. / Porém Amor, que effeitos vários cria, / De ti cantar me manda em toda parte, / Não em plectro belígero de Marte, / Mas em suave & branda melodia. / Teu nome Emmanuel, de hum noutro Pólo, / Voando se levanta, & te pregoa, / Agora que ninguém te levantava. / E porque immortal sejas; eys Apolo / Te offerece de flores a Coroa /Que já de longo tempo te guardava».
É certo que os livros de Arrighi, Palatino, Ludovico Vicentino e António Tagliente, e o Champ Fleury, deviam integrar as bibliotecas de Évora, Lisboa e Vila Viçosa e foram bases para Giraldo e Barata. Além dessas fontes de que ambos se serviram, é de referir a 5ª edição do Libro Subtilíssimo por el qual se ensenã a escrevir y contar perfectamente (Ortographia Practica), do calígrafo biscaínho Juan de Içiar, que Giraldo utilizou quando desenhava o seu tratado em 1560. Giraldo conheceu decerto essa quinta edição saída em 1559 (prelos por Miguel de Zapila) e nela se inspirou não só para a sequência de letras cancelerescas, mas ainda para o tipo de desenho de cinco ou seis dos fólios do seu Tratado de Caligrafia, que são similares aos de Içiar e prova cabal de que compulsou com demora o exemplar da edição de 1559, aliás integrado, ao que parece, na livraria do Arcebispo de Braga D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Esse ex. da Biblioteca Pública de Braga, que inclui no final um desenho colorido ao estilo de Giraldo, indica que foi esse mesmo exemplar de que o artista português se serviu.
BIBLIOGRAFIA:
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BARATA, Manuel, Exemplares de Diversas Sortes de Letras, ed. fascsimilada com introdução de Ana Lúcia Duque, Centro de Estudos Lusíadas da Universidade do Minho e Biblioteca Pública de Braga, 2010.
BARJONA DE FREITAS, Maria Brak-Lamy, «Os livreiros da Lisboa quinhentista», Revista Municipal, ano XIII, nº 54, 1952, pp. 5-25.
BOUZA ALVARES, Fernando, Del escribano a la biblioteca. La civilización escrita europea en la alta Edad Moderna, Madrid, ed. Síntesis, 1992.
BRADLEY, John William, A Dictionary of miniaturists, illuminators, calligraphers, and copysts, with references to their works and notices of their patrons, from the establishment of Christianity to the eighteenth century, London, Bernard Quaritsch, 1887-89, vol. 1, p. 329.
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DESWARTE-ROSA, Sylvie, Ideias e Imagens em Portugal na época dos Descobrimentos. Francisco de Holanda e a teoria da arte, ed. Difel, trad. de Maria Alice Chico, Lisboa, 1992.
Idem, «Sentenças para a Ensinança e Doutrina do Príncipe D. Sebastião», exp. A Pintura Maneirista em Portugal – arte no tempo de Camões, CNCDP, 1995, pp. 426-427.
Idem, «Le Rameau d’Or et de Science. F. Ollandivs Apolini Dicavit», Pegasus, 7, 2005, p. 9-47.
GRINEVALD, Paul-Marie (éd.), Champ Fleury. Art et Science de la Vraie Proportion des Lettres Bibliothèque de l’Image, Paris, 1988.
HEITLINGER, Paulo, Tipografia: origens, formas e uso das letras, Dinalivro, Lisboa, 2006.
MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana, Lisboa, 1741-1759, vol. III, pp. 190-1901.
PEREIRA, Ana Martínez, «El Arte de escrever de Manuel Barata en el âmbito pedagógico de la segunda mitad del siglo XVI», Península. Revista de Estúdios Ibéricos, nº 1, 2004, pp. 235-249.
SERRÃO, Vitor, «Maniera, peinture murale et calligraphie: Giraldo Fernandes de Prado (c. 1535-1592), un grand peintre, écrivain et noble enlumineur méconnu», Out of the Stream: new perspectives in the study of Medieval and Early Modern mural painting, coord. de Luís U. Afonso e Vitor Serrão, Manchester, 2007, pp. 116-140.
SERRÃO, Vitor, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Fundação da Casa de Bragança, 2008.
SILVA DIAS, José Sebastião, A política cultural da época de D. João III, tomo II, Coimbra, 1969, pp. 701-715.
TAVARES, Pedro Vilas Boas, «Domingos Peres: professor de matemática da Princesa Maria de Portugal, na fundação de um beatério bracarense», actas do Congresso D. Maria de Portugal, Princesa de Parma (1565-1577) e o seu tempo. As relações culturais entre Portugal e Itália na segunda metade de Quinhentos, Porto, 1999, pp. 7-28.
Revisão dos testes e comentários críticos.
4 Dezembro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
CLASSIFICAÇÕES PROVISÓRIAS DO TESTE
Ana Almeida – TP O ‘Nascimento de São João Baptista’ de Diogo de Contreiras. T faltou
Ana Carolina Carranca Madeira – TP ‘Pintura Habitada’ de Helena Almeida. T 16
Ana Catarina Rodrigues – TP ‘Telhados de Paris’, de Federico Aguilena Alenaz. T 14+
Ana Catarina da Costa César – TP ‘Tametomo resgatado por Tengu enviado por Xanuki-in’ (1850) por Utagawa, Kuniyoshi. T 16
Ana Nunes – TP ‘Les tréteaux de Diodora’, de Capacci Bruno. T 14
Ana Pedro Custódio Almeida – TP O ‘Nascimento de São João Baptista’ de Diogo de Contreiras. T 14
Ana Rita Cavalheiro – TP A ‘hall church’ de São Tiago, actual Sé de Beja. T 15
Ana Rita Nunes – TP ‘Les Trétaux de Diadora’, Bruno Capacci. T 15+
Ana Teresa Leal Mota – TP O retábulo da igreja do Colégio dos jesuítas de Ponta Delgada. T 16
André Cascalheira – TP ‘Cramped by Hunger’, 1945, por Marcelino Vespeira. T 15+
Bárbara Santos – TP Imagem da igreja de Nª Sª da Luz, atribuída a Machado de Castro. T 14
Beatriz Abrantes – TP ‘As Coroas dos Reis’, no Palácio das Necessidades (Sala de El Rey), por António Manuel da Fonseca. T 16+
Beatriz Pereira Henrique de Carvalho – TP Azulejo ‘Esponsais de D. João I e D. Filipa de Lencastre’. T 15+
Bianca Pimentel Pereira – TP Hotel Mont Palace, em São Miguel, Açores. T 14
Bruna Raquel Lopes dos Santos – TP ‘Le Metro’ de M. H. Vieira da Silva. T 14
Carlos Henrique Andrade Ferreira do Souto – Meios de comunicação escrita destinada aos jovens em regime ditatorial. Aspectos estéticos. T 13+
Carlota Figueiroa Rego – TP A escultura ‘O Desterrado’ de Soares dos Reis.
Carlota da Silva Cortesão – TP A pintura do tecto da nave da igreja de São Paulo em Lisboa. T 16
Carolina Fernandes – TP livro de HA em análise (escolher…) T faltou
Carolina Malheiro Coelho – TP Comparação entre duas peças arquitectónicas em Cascais: a Casa Sommer e o Estoril Sol Residence. T 14+
Catarina Filipa Lima – TP Azulejos portuenses da igreja do Carmo. T faltou
Catarina dos Santos Madeira – TP Mosaicos das ruínas de Milreu, Estoi. T 15
Cátia Marisa Santos Sobral – TP ‘São Jerónimo’ de Albrecht Durer, MNAA. T 13+
Décio Bruno Pereira Coelho – TP Casa das Mudas, de Paulo David. T 14+
David Filipe Yala Rodrigues – TP por definir. T 10
Diana Verónica Santos Nogueira – TP Prato chinês Dinastia Qing, de início do séc. XVIII. T 14
Diogo Maria Domingos Cigarro – TP O mural de Felipe Pantone na Quinta das Conchas. T 13+
Francisco Veiga – TP Simão da Veiga: análise de ‘Retrato de minha mulher’. T 15+
Ionela Rotari – TP ‘Quadro sem nome’ de Oleg Retaci. T faltou
Irina Passuco – TP ‘Vénus adormecida’, de Paul Delvaux. T 14+
Jennifer Bettencourt Vieira – TP Emanuel Santos: homenagem aos pescadores do Caniçal. T 15
Jéssica Alexandra Adriana Santos – TP Mosteiro de Santa Maria de Cós (…aspecto a escolher). T 13+
Joana Marisa Brochado Teixeira Bessa – TP órgão da igreja de São Gonçalo de Amarante. T 16
Joana de Almeida Mendes Pinto – TP ‘Maus’ de Arts Spiegelman. T 15+
Joana van Esveld – TP Forte de Santo António da Barra, no Estoril. T faltou
João Bruno Borges Lisboa – TP Cruz de D. Sancho I, de autor desconhecido (MNAA). T 13
Lara Galveia Lourenço – TP ‘Amor e Psyché’ de José Veloso Salgado. T 13+
Margarida Capelo – TP A igreja matriz de Alhos Vedros (um aspecto a escolher). T 14
Margarida Pereira Vasconcelos – TP ‘A Virgem e o Menino’ do círculo Jan Gossaert, o Mabuse. T 15
Maria Beatriz Brito Campos – TP não comunicado. T 14
Maria Carlota Figueiroa Rego Andrade Rebelo – TP ‘O Desterrado’ de Soares dos Reis e o Neoclassicismo dinamarquês de Thorvaldsen. T 14
Maria Matilde de Sepúlveda Velloso – TP ‘Wings of Desire’ de Wim Wenders. T 15
Maria Rosa Madalena Machado – TP O ‘São Jerónimo num gabinete de trabalho’ de José do Avelar Rebelo no mosteiro dos Jerónimos. T 14
Mariana Sofia Rosa Cerejo – A imagem de Nª Sª dos Anjos em São Lourenço de Alhos Vedros. T 14
Marine Gil Soares – TP ‘O baloiço’ de Jean Honoré Fragonard. T 15
Mariana Cerejo – TP Uma escultura (…) na igreja de São Lourenço em Alhos Vedros. T faltou
Mariana Cruz – TP O Livro de Fotografia de Victor Palla: ‘Lisboa, Cidade triste e Alegre’, em parceria com Costa Martins. T faltou
Mariana Real Mota – TP A Ermida de Nossa Senhora de Alcamé, V. F. Xira. T 15
Mariana dos Santos Teixeira – TP ‘O Beijo’, de Auguste Rodin. T 15
Marta Marques – TP As Metamorfoses de Ovídio: análise de uma das edições críticas. T faltou
Marta Raquel de Passos Sanches – TP O Arco de São Bento (na Praça de Espanha). T 15
Marta Seixas Parente – TP ‘Symphony in white nº 2: the little white Girl, de James Abbott. T 13+
Melissa Alexandra Mascarenhas Cunha – TP ‘O Inferno’ de mestre desconhecido (MNAA). T 14+
Miguel Ângelo Campos Santos – TP ‘Julgamento das Almas’ (MNAA) atribuído a Gregório Lopes. T14+
Nadine Correia Saize – TP ‘Open your mind’ da pintora Rita Melo. T 14+
Nélia Margarida Gonçalves Manaça – TP ‘Being forced INTO something else’ de Julião Sarmento. T15+
Nuno André Salema Pinto – TP O Concerto para piano nº 2 em dó menor, opus 18, de Sergei Rachmaninoff: análise de composição no contexto histórico russo do seu tempo. T 14+
Patrícia Alexandra Rodrigues – TP Monumento a José Afonso, de Lagoa Henriques. T 15+
Patrícia Bértolo Guimarães – TP ‘Deposição no túmulo’ de…? T 14+
Pedro David de Almeida Pinto – TP Ito Jakuchu, ‘Phoenix and Sun’. T 15
Raquel Ribeiro dos Santos – TP ‘Attero, a exposição a solo de Bordalo II. T 15+
Raquel Alexandra Antunes Vicente – TP Fotografia de Joel Santos. T 13+
Ricardo Miguel Milagre Fernandes – TP tema por definir T 13+
Rita Manuela Cardoso Gonçalves – TP A Muralha do Centro Histórico de Guimarães. T 15
Rodrigo Costa – TP Ficha de ‘Le pouvoir des images’ de David Freedberg. T faltou
Rodrigo Neves – TP A igreja matriz de Bucelas (aapecto a definir). T 13+
Sara da Costa Fonseca – TP As esquecidas estátuas do Sifão de Sacavém. T 14
Sara Isabel Vieira Santos – TP A Igreja de São Domingos de Lisboa, no Rossio, à luz das suas transformações após o incêndio de 13 de Agosto de 1959. T 14+
Sara Filipa Teixeira – TP Torre do Tombo (aspecto a definir…). T 13+
Teresa Cristina Ramos Carvalheira – ‘Bozzetto’ para a ‘Deposição no túmulo’ de Tiepolo, MNAA. T 15
Tiago Maria Abrantes Lopes Nunes – TP ‘Nu’ de José de Almada-Negreiros. T 15
Tiago Alexandre da Silva Vigário – TP Mosteiro de Alcobaça (aspecto a definir…). T 11+
Valéria Patrícia Batista Brites – TP O Monumento a Eça de Queiroz, de Teixeira Lopes. T 13+
Vanessa Côrte Real – TP «Fernando Pessoa com Natália Correia», de autor desconhecido. T 13+
As Histórias da Arte «de género»: o feminismo.
30 Novembro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
ARTE NO FEMININO - CASOS DE ESTUDO
Olhemos o Cartaz We Can Do It !, de J. Howard Miller (1943), primeiro grande ícone da luta das feministas nos EUA, e na Europa. Esta imagem de uma trabalhadora com lenço na cabeça, que arregaça as mangas e assume a força necessária para as actividades convencionadas como sendo exclusivas dos homens, nasce ironicamente no contexto da última Grande Guerra, no seio da fábrica Westinghouse Electric Corporation, com o fito de incentivar as mulheres americanas a colaborarem no esforço militar. Só muito mais tarde, nos anos 80, se tornou, descontextualizada, um ícone do Feminismo. Pensemos, também, no papel de Mary Wollstonecraft (1759-1797), notável escritora, filósofa e militante dos direitos das mulheres, defensora incompreendida e contestada do voto universal e da igualdade de géneros. E vejamos como a História da Arte bem pensante, académica, fechada na sua torre de marfim, parece ter esquecido as suas protagonistas mulheres, erradicando-as dos museus e das páginas dos seus livros…
Ou seja, existe ainda uma arte sem História que precisa de ser reescrita, de ser pesquisada a sério: aquela que foi produzida por artistas mulheres, e que a História tradicional tem sempre colocado num plano subalterno e negligenciado. Vejamos a arte portuguesa. Que se sabe de Ináci da Costa de Almeia, escultora em madeira, barro e cera, autora de um bom Senhor da Cana Verde em terracota policromada, assinado e datado de 1654, que existe no antigo Dormitório do Convento de Cristo em Tomar, e que foi, à época, considerada «exímia» ? Que se sabe da freira pintora Soror Joana Baptista, autora de miniaturas sacras, activa na segunda metade do século XVII, que gozou de certa consideração ? Que se sabe a nobre Maria de Guadalupe de Lencastre e Cardenas (1630-1715), de Aveiro, Maqueda y de Arcos, letrada e pintora, que chegou a ser juíz da Irmandade de São Lucas em 1658 ? Que se sabe de algumas dezenas de mulheres que, desde o século XVII, praticaram desenho, caligrafia, debuxo, douramento ou mesmo pintura de pincel, chegando a estar inscritas na Irmandade de São Lucas ou, já no XIX, tiveram aprendizado parisiense, como a infeliz Josefa Greno (1850-1901) ? Na verdade, sabemos muito pouco.
Duas historiadoras de arte tiveram papel de maior relevo na afirmação de uma História da Arte recente em que as mulheres artistas passaram a contar em plano de paridade com os seus colegas homens. Trata-se de Griselda Pollock (1949-), docente da University of Leeds, especialista em estudos de género e em arte feminista, autora de Old Mistresses: Women, Art and Ideology (1985), e de Linda Nochlin (1931-2017), professora do Institute of Fine Arts (University de New York), reputada como curadora das célebres exposições Women Artists: 1550-1950, que decorreu em Los Angeles County Museum of Art, em 1976, e Global Feminisms, no Brooklyn Museum, de 2007. Ambas contribuíram para mudar o curso da História da Arte com as perguntas ‘porque é que não existem grandes mulheres artistas ?’ e ‘se existem, porque não têm o devido destaque ?’ Nochlin respondeu-lhes em Janeiro de 1971 no ensaio ‘Why have there been no great women artists ?’ (Artnews), em que, percorrendo a História, registou as convenções sociais que sempre impediram as mulheres de terem destaque nas artes, e contrariou a ideia da genialidade artística como um talento inato exclusivo dos homens. A sua crítica incisiva obrigou a História da Arte a reformular as suas próprias regras: redefiniram-se conceitos de genialidade e reconheceu-se o talento de artistas mulheres que só o preconceito de género fizera esquecer. A força legitimadora do saber exposto em programas de ensino, museus e exposições tornara ‘natural’ a ausência de mulheres artistas; ora, se elas não estavam lá, se não líamos sobre elas nem as víamos nas paredes dos museus, é porque não existiam, ou não tinham ‘qualidade’ para lá estarem…
A visão feminista, irónica e provocadora, do livro de Nochlin Women, Art and Power and Other Essays, 1991), revolucionou a História da Arte, até aí assente no preconceito de que só os homens podiam ser artistas destacados. Esta nova História da Arte mostrou que, afinal, ‘elas’ existiam, e eram muitas mais do que se imaginaria. Ficaram expostos os mecanismos que tinham criado a sua histórica invisibilidade; e inverteu-se a questão posta – pois o que era extraordinário é que, apesar das resistências e obstáculos, as mulheres tivessem tido brilhantes carreiras artísticas, e fossem tantas! Assim se desconstruíram as bases ideológicas de uma História de raíz homofóbica e xenófoba, num contexto histórico de anos 70 em que o pensamento feminista estava a transformar os paradigmas e linguagens das ciências humanas, inserindo a perspectiva feminista em todas as vertentes: porque é que as mulheres artistas não tinham sido estudadas, coleccionadas, expostas, restauradas, valorizada ? História da Arte começava finalmente a falar da arte feita por mulheres, contribuindo para que passe a ser, como diz Filipa Lowndes Vicente, uma arte com história. As abordagens feministas contribuíram decisivamente para uma consciência crítica dos mecanismos ideológicos de inscrição da História da Arte e para refutar os processos de segregação de género na produção artística, tão bem ilustrada pelo famoso poster do grupo feminista Guerrilla Girls: «Terão as mulheres que estar nuas para entrar no Metropolitan Museum? Menos de 5% dos artistas expostos na secção de arte moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos»...
Todavia, neste campo de resgate da arte no feminino, antes muito desconsiderada pela História, existe a maior dificuldade em encontrar documentos, escritos ou visuais, sobre o trabalho de mulheres artistas, permanecendo muitas “páginas em branco” sobre as suas obras. A este respeito, dar voz plena às mulheres silenciadas é tarefa difícil, restando a possibilidade de questionar criticamente os mecanismos (re)produtores destes silêncios, caso a caso, e a forma como o saber é elaborado, validado e instituído pela História. O livro Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, de Ana Vicente, e o excelente ensaio de Filipa Lowndes Vicente Fora dos cânones: mulheres artistas e escritoras no Portugal de príncipios do séc. XX, questionaram as possibilidades que podiam ter as mulheres portuguesa em se dedicarem profissionalmente à pintura ou à escrita. Pintar e escrever eram práticas femininas aceites e até encorajadas entre as elites, já nos séculos XVI ou XVII, se dentro do recato do lar, mas existiam fronteiras entre fazê-lo no espaço privado da domesticidade ou no espaço público, expondo ou publicando. Quando o sufragismo e o feminismo eram ideias que circulavam a nível transnacional, como é que as portuguesas que tinham acesso à escrita, ou à pintura, se posicionavam face a esses debates ? Ora nem sempre o acesso à publicação e à exposição se traduzia numa consciência feminista.
Citam-se sem dificuldade, percorrendo serenamente a evolução das artes ao longo da Idade Moderna e Contemporânea, casos de inquestionável e superioridade artística de mulheres pintoras como Artemisia Gentileschi (1593-c. 1653), ‘caravagesca’ de méritos reconhecidos no seu tempo, tal como sucedeu com Barbara Longhi (1552-1638), Catharina van Hemessen (c.1527-1560), Levina Teerlinc (c. 1520–1576), Lavinia Fontana (1552-1614), Clara Peeters (1594-1657), Louise Moillon (1610–1696), Judith Leyster (1609–1660), Elizabetta Sirani (1638-1665), e podemos alargar o rol de nomes até ao caso icónico da mexicana Frida Kahlo (1907-1954). Mas temos também, no plano oposto, o caso da escultora Camille Claudel (1864-1943), grande artista francesa, discípula e amante de Rodin, que apesar do incontestável mérito faleceu na obscuridade, e cuja obra só veio ganhar reconhecimento décadas após a morte.
Em Portugal, o caso mais mediático e notável, na época barroca, é o de Josefa de Ayala e Cabrera, a famosa Josefa de Óbidos (Sevilha, 1630-Óbidos,1684), filha e discípula do grande pintor Baltazar Gomes Figueira (1604-1674), já louvada por Damião de Froes Perym, no Theatro Heroino (1734), não pelas qualidades artísticas propriamente ditas mas pelas ‘virtudes morais’ e ‘decoro’ de ‘mulher emancipada que nunca casou’…. Caso aparte é o de Aurélia de Souza (1866-1922), pintora notabilíssima, com formação parisiense, destacada entre os onze nomes que Sandra Leandro e Raquel Henriques da Silva reuniram no livro Mulheres Pintoras (2014). Quanto à infeliz Josefa Greno (1850-1902), pintora de grande talento, o facto de ter sido casada com o pintor Adolfo Greno, bolseiro em Paris, que lhe tomou as obras como suas, originou a tragédia que levaria a artista ao internamento no hospital de Rilhafoles. Em 1879, Josefa viu-se obrigada a suportar a família e a usar a pintura, em 1881 convive com Artur Loureiro e Columbano, estreia-se com sucesso na XIII Exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes (1884) (tendo de se apresentar como «discípula de Adolfo Greno») e foi elogiada como «a surpresa Greno». Em 1886 participou na 6ª exposição do Grupo do Leão e nos certames do Grémio Artístico. Vendia bem, recebia encomendas, foi distinguida com prémios, teve discípulas. O facto de ser mulher reprimida conduziu à tragédia de 1901 e à sua prisão e internamento.
O livro de Filipa Lowndes Vicente A Arte Sem História. Mulheres e cultura artística (Sécs XVI-XX) (Athena, 2012) mostrou como a perspectiva feminista veio «descobrir novos objectos de estudo que até então tinham permanecido invisíveis», colocando perguntas diferentes para obter novas respostas inclusivas do feminino, rejeitando a ideia de que as mulheres artistas desconhecidas do passado não existem e questionando os processos de construção da memória histórica a partir dos mecanismos de (re)produção das discriminações de género. Afinal, qual o nível de oportunidades de acesso ao universo, à carreira e ao cânone artísticos que tiveram as mulheres artistas ? Tendo como marco histórico a já referida exposição pioneira Women Artists: 1550‑1950 (Los Angeles, 1976), este livro é o contributo maior para a História da Arte Feminista que surgiu entre nós, numa construção que equaciona os múltiplos processos através dos quais os registos do trabalho das mulheres artistas foram sendo submersos pela própria História... Merece uma última referência, neste temário, a exposição Wack! Arte e a Revolução Feminista, com curadoria de Connie Butler (MOCA, Los Angeles, 2007), a primeira exposição abrangente a tratar a arte feminista internacional, centrada no período 1965-1980, anos em que ocorreu um forte activismo feminista, com obras de 120 artistas dos Estados Unidos, Europa, América Latina, Ásia, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
A História da Arte no feminino reforçou o poder de saber olhar e ver estas mulheres observadas, estas mulheres observadoras que criam arte. A abordagem feminista da arte busca, por um lado, a vertente das mulheres enquanto objecto de observação e criação masculino (uma das tipologias persistentes ao longo da história da pintura ocidental) e por outro o lado das mulheres enquanto observadoras. Esta dimensão, que engloba os temas da hegemonia do olhar masculino e as possibilidades do desejo, as fronteiras da nudez e a ‘colonização’ do corpo feminino, alarga sem dúvida o campo a História da Arte.
Afinal, tudo começa no corpo e no preconceito que lhe subjaz. O desejo e o tacto, os sentidos, o teatro, a pose, as motivações narcisistas, a força do imaginário estético. O corpo é luz espelhada, festa, luxo, etiqueta, revolta, graça, retórica, afirmação insubmissa, liberdade, pecado, ícone religioso, maternidade, retrato de aparato, simbolismo, sensualidade, amor, fé ardorosa, alegoria, espiritualização, fonte de prazer – e assim foi, desde sempre, objecto de criação artística, exaltante apego a formas palpitantes. Nele existe grazia e repulsa, obsessão saturniana e euforia, schize melancólica e venustà imaginizada, antropocentismo e ambiguidade, fé e descrença, indizível e efémero. De tudo isto nos fala o Corpo, na pena dos poetas, na descrição dos escritores, no escopro dos escultores, no pincel dos pintores... Mas quando o corpo se torna matéria de arte por parte das mulheres-artistas, a linguagem é ou não distinta – ou melhor, a visão que dele temos é ou não distinta ? A verdade é que o monopólio de uma História da Arte grandiosa, ocidentalizada, masculina, cristã, branca, rácica, imperialista, marcada pelo preconceito e a exclusão, ainda não se finou e ainda faz sentir a sua força…
Um contributo para uma tipologia neste campo permite-nos assumir: -- O corpo como alegoria moral (como testemunho de fé, símbolo explícito, reflexo de estados comportamentais); O corpo como magia de Eros (a magia do corpo, o inconformismo, o fascínio contra os cânones estabelecidos, o comprazimento e o deleite das formas); O corpo como equívoco (testemunho de ambiguidades e volúpia, retórica de caprichos e obsessões recalcadas, e confrontos irresolúveis entre a pureza ideal e o fragor de Eros); O corpo como pecado (a marca da ignomínia, a vanitas inútil, a brevidade). O corpo como pretexto, sempre... (tudo começa e acaba no corpo, esse desconhecido, deslumbrante pretexto para os artistas desbravarem paixões arrebatadas, em desencantos, obsessões, dores, exacerbações, ardores espirituais, sentir físico). Erotismo e sensualidade, fé e religião, paragona dos amores profano e divino, Eros e Anteros, tacto carnal e arrebatamento místico, pureza e volúpia, luz divina e sensorialidade sexual, um caminho de linhas comuns e opostas, de cruzamentos e conjuras heterogéneas. Em Jacopo Tintoretto (1519-1594), genial pintor veneziano, católico mas nem por isso conservador, que se toma como exemplo com Susana e os Velhos, fé e sensualidade coabitam, sempre, na representação do nu feminino.
Mas falar do corpo feminino é também falar de censura, actos iconoclásticos, repressão directa ou interposta através de actos de iconoclasma. Reportamo-nos ao caso da figura da mulher-diabo desnuda no painel renascentista O arcanjo São Miguel combatendo o demónio da igreja monacal de São Francisco de Évora pintado por Garcia Fernandes, cerca de 1530. Como se sabe, poucos anos depois, já em contexto de Contra-Reforma, o quadro foi alvo de polémica e o diabo-mulher mandado cobrir por uma nuvem espessa. Tal constitui sintomático exemplo de uma atitude censória homofóbica em que, através da ocultação de uma imagem, se visou anular os efeitos incontroláveis da beleza do corpo, facto que tornava essa obra de arte tão incómoda e subversiva...