Artes em Goa e no antigo Estado Português da Índia durante a era colonial: miscigenações artísticas.

11 Dezembro 2017, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão


     A cidade de Goa, capital do Estado português da Índia, considerada a Roma do Oriente na descrição de viajantes como Tavernier, Linschotten e Pyrard de Laval, era no fim do século XVI, quando o agostinho Frei Aleixo de Meneses assumiu a direcção do seu Bispado, um centro urbano, cultural e artístico de significativo destaque. A Monarquia Dual, assegurando as prerrogativas da administração portuguesa, contribuiu para criar um clima de favorecimento das artes e estimular a construção de uma notável arquitectura sacra e civil notável, em que se destacam figuras como o engenheiro-mor e arquitecto Júlio Simão ou Simonis, e os recém-identificados escultores canarins mestre Babuxa e mestre Santopa, os pintores Aleixo Godinho e João Peres, o ourives Jerónimo da Costa, os pedreiros Manuel Coelho e João Teixeira, o dourador António da Costa, e outros artistas e artífices, reinóis ou hindus convertidos, identificados na rica documentação do Arquivo Histórico de Pangim.

     Os novos elementos de estudo permitem lançar luz sobre uma fase de grande prestígio da arte luso-indiana, de que restam ainda vários monumentos 'in situ' como a Sé, Santa Mónica e o Bom Jesus em Goa, as ruínas da igreja da Graça, diversas capelas, e os templos da região de Cochim e Kerala erguidos e decorados sob o munus do mesmo prelado no início do século XVII e recém-estudados por Hélder Carita. A actividade de Aleixo Godinho, esquecido pintor nome ao serviço dos agostinhos, dos jesuítas e do Vice-Rei, adquire relevância por se tratar do enigmático «pintor Godinho» elogiado por Diogo do Couto a respeito das pinturas das Armadas da Índia, e que sabemos agora ter trabalhado para as igrejas do 'Monte Santo' de Goa: o Colégio do Pópulo, a igreja da Graça e o Mosteiro de Santa Mónica. Os frescos e pinturas a têmpera deste último (o maior cenóbio feminino no Império, com as suas cem freiras, hoje um instituto de Teologia cristã, tendo-se podido conservar) mostram uma produção maneirista de boa qualidade, e também actualizada, com cenas inspiradas em modelos de gravuras ítalo-flamengas de Roma e Antuérpia, a mostrar o engenho e domínio cenográfico da mão-de-obra artística goesa no início de Seiscentos, sob influência dos modelos maneiristas europeus, fortemente miscigenados com o gosto, a técnica e os referenciais hindus.

     O estudo da arte luso-indiana no espaço do antigo Império português tem de ser assumido nos nossos dias como prioridade nas políticas patrimoniais do Estado português, num tempo em que se esbatem tanto a visão neocolonialista da História como pruridos chauvinistas contra os antigos testemunhos portugueses e se torna possível, por isso, o estudo sério, a conservação preventiva, o restauro integrada e a divulgação em rede turístico-cultural. Importa, pois, investigar a sério, em articulação com o Estado da Índia e outras entidades envolvidas, e com base nos fundos inéditos dos arquivos e nas remanescências da arquitectura e artes ornamentais, no sentido de preservar uma memória de prestígio e um testemunho de linguagens culturais miscigenadas que foi e é significativo nos territórios do antigo Império português onde, a par da língua, persistem testemunhos construídos e de equipamento artístico de significativa qualidade.

     O engrandecimento de Goa no tempo filipino deve-se não só à política da Monarquia Dual sobre as possessões portuguesas no Mundo, cuja administração se manteve, mas à postura intelectual do dinâmico munus de D. Frei Aleixo de Meneses nos anos em que esteve à frente do Arcebispado de Goa, que governou a Diocese entre 1595 e 1612, construindo igrejas, fortalezas e palácios, desenvolvendo-a em termos arquitectónicos e urbanísticos com o seu mestre de obras Júlio Simão, e estendendo a sua autoridade à região de Cochim, e Kerala, onde se deslocou em 1599, em visita pastoral, impondo com o Sínodo de Diampar a integração da comunidade dos cristãos de São Tomé no rito romano e a sujeição do arcebispado de Angalamy ao de Goa. Nessa comitiva, Frei Aleixo fez-se acompanhar por artistas e artífices, o que explica o ‘carácter goês’ de algumas construções e decorações então ordenadas na zona de Cochim e Kerala, como a igreja de Santa Maria de Angamaly, renovada em 1601 (776 da Era de Coulão), incluindo altares e decoração de frescos do Paraíso e Inferno, ou os frescos da igreja de Mar Shabot Mar Afrot, do princípio do século XVII, com óbvia influência de modelos maneiristas europeus. Goa ainda hoje conserva, apesar das perdas inevitáveis, um acervo artístico deste período – pintura, escultura, talha, azulejo, esgrafito, ourivesaria – que é de capital importância para o estudo da arte indo-portuguesa da primeira metade do século XVII, precisamente a fase de maior esplendor das artes em Goa, e para a qual o historiador de arte Rafael Moreira chegou a propor a designação «estilo D. Fr. Aleixo de Meneses» a fim de caracterizar a construção oficial que se promoveu, com especificidades estilísticas e ecos serlianos, fiel à lição do Maneirismo italiano.

     A actividade do pintor goês Aleixo Godinho, nome desconhecido de artista ao serviço dos agostinhos, dos jesuítas e do Vice-Rei, adquire agora uma inesperada relevância. Trata-se do enigmático «pintor Godinho» que foi elogiado por Diogo do Couto a respeito das pinturas das Armadas da Índia, e que sabemos agora ter trabalhado no início do século XVII para as igrejas do 'Monte Santo' de Goa: o Colégio do Pópulo, a igreja da Graça e o mosteiro de Santa Mónica. Os frescos e pinturas a têmpera deste último mosteiro (que era o maior cenóbio feminino no Império, com as suas cem freiras e mais de duzentas noviças e criadas), e é hoje um instituto de Teologia cristã, assim se tendo conservado razoavelmente) mostram uma produção maneirista de grande qualidade, e também actualizada, com o seu acervo de cenas bíblicas, alegóricas ou hagiográficas, inspiradas em modelos de gravuras ítalo-flamengas de Roma e Antuérpia.

     Foi mentor das obras de Santa Mónica Frei Diogo de Sant'Ana (1572-1644), um agostiniano ao serviço de Frei Aleixo de Meneses, monge de origem transmontana ligado a vários cargos relevantes na sociedade goesa do tempo dos Filipes, mecenas das artes, escritor, teólogo e historiógrafo, autor das mais importantes e esclarecedoras crónicas sobre o Mosteiro de Santa Mónica, responsável pela execução de obras de Santa Mónica entre 1606 e 1627, e em 1637-1639, após o incêndio de Dezembro de 1636 que danificou as alas conventuais dos dormitórios e obrigou a célere reparação. Formado em Teologia na Universidade de Salamanca, professou em 1594 no Mosteiro da Graça em Lisboa, acompanhando Frei Aleixo quando foi designado Arcebispo de Goa e viajou em 1595, com apertada comitiva, para a Roma do Oriente. Mandado para acção missionária na Pérsia, foi prior do Convento de Ispaão, convertendo o patriarca arménio David e centenas de gentios, assumiu o cargo de administrador e confessor do Mosteiro de Santa Mónica, foi membro da Mesa da Consciência e Ordens, Deputado do Santo Ofício, mestre dos noviços, prior do Convento de Nossa Senhora da Graça e Reitor do Colégio de Nª Sª do Pópulo em Goa, cidade onde morre em 6 de Outubro de 1644. Sobre este Frei Diogo de Sant’Ana existe estudo recente do autor e de Maria Adelina Amorim. («Arte e História do Mosteiro de Santa Mónica de Goa, à luz da 'Apologia' de Fr. Diogo de Santa Ana (1633)», em colaboração com Maria Adelina Amorim, in Problematizar a História -- estudos em Homenagem a Maria do Rosário Themudo Barata, ed. Caleidoscópio e Centro de História da Universidade de Lisboa, Lisboa, pp. 677-713).

     A arte do tempo de Frei Aleixo de Meneses documenta essa qualidade miscigenada, cenográfica, absolutamente poderosa na sua força comunicacional, que a aparenta – no que toca aos ciclos de pintura, por exemplo – à grande decoração imagética do mundo hispano-americano -- caso do Peru, p. ex., com os murais dos pintores indígenas Luís de Riãno e Diego Cusi Husmán na igreja de San Pedro de Andayuillas, em Cuzco (Peru), de c. 1615-27, ciclo coevo do de Santa Mónica de Goa e se assume bom testemunho miscigenado de modelos imagéticos de influência maneirista europeia (Roma, Antuérpia, Sevilha) com utilização de idênticos modelos europeus contra-reformados, e com elementos decorativos e modelos de figura de sabor tipicamente andino.

     A arte luso-indiana no espaço do antigo Império português tem de ser assumido como uma prioridade nas políticas patrimoniais, num tempo em que se vão esbatendo, quer a visão neocolonialista da História, quer os pruridos chauvinistas contra os antigos testemunhos portugueses nesses territórios. Importa, pois, investigar a sério, com base nos fundos inéditos dos arquivos e nas remanescências da arquitectura e artes ornamentais, no sentido de preservar uma memória de prestígio e um testemunho de linguagens culturais miscigenadas que foi e é significativo. Os monumentos e peças artísticas que subsistem do antigo Império luso em terras da Índia testemunham esse processo de miscigenação de culturas e a força criativa da produção luso-indiana durante a Idade Moderna.

     É importante definir, antes de mais, a noção epistemológica de Arte do antigo Império Português (ao invés de Arte Colonial, ou Arte Ultramarina), a justificar um significativo reforço de investigações pluri-disciplinares, estudo, inventário, divulgação, salvaguarda, conservação, restauro e debate científico. Os estudos desta arte do antigo Império, explorada com maior ênfase no caso do Brasil mas abarcando também as artes da Índia portuguesa (Goa, Damão, Diu), analisada por Mário Tavares Chico e Carlos de Azevedo, e os do Extremo Oriente, Macau e Timor, bem como os de Marrocos e costa africana, que Pedro Dias divulgou, têm dado origem no último meio século a uma série de estudos que se caracterizam (e continuam a caracterizar) por três vertentes concomitantes:

     a) re-valorização do pitoresco (as ‘artes decorativas’, por exemplo o mobiliário e escultura luso-indiana, a arte ‘nam-bam’, os bronzes do Benim, a talha barroca mineira); 

     b) sub-valorização das expressões locais (sob o estigma de um decadentismo que seria sempre inevitável, como se outra solução criativa não fosse possível, longe da influência do ‘centro’);

     c) a contribuição de temas ‘de retorno’ que vêm enriquecer, numa espécie de mais-valia aberta pela Expansão ultramarina, novos repertórios europeus (figuras híbridas, exotismo da fauna e flora, o índio e o selvagem, etc).

     Tais perspectivas sobre a arte do Mundo Português, testemunho de determinada visão das artes (redutora, pesem os méritos dos resultados obtidos), têm impedido as comunidades de saber olhar em conjunto para o seu património artístico, desvendar qualidades de produção autóctone e reavaliar em exacta contextualização (por entre as redes de influências díspares que se abriram com o curso da História) as pulsões originais, já intuídas por Chico e Carlos de Azevedo ou Maria Helena Mendes Pinto. Os mais recentes estudos de Hélder Carita, Teotónio R. de Souza, Pedro Dias, Nuno Vassalo, Luís Filipe Reis Thomaz, António Nunes Pereira, Paulo Varela Gomes, Alexandra Curvelo e José Meco, entre outros, abrem caminhos para novas e desejáveis visões de síntese, hoje possíveis de concretizar. Neste campo de pesquisas, impõe-se obviamente estudar o ‘retorno’ e avaliar o ‘pitoresco’, mas em dimensão integrada que, sem absurdas derivas neo-colonialistas ou (no pólo oposto) ultra-chauvinistas, saiba reavaliar os tecidos artísticos -- que são sempre fruto de bravuras e limitações, enriquecimentos e seguidismos, ousadias e retomas anacrónicas, constantes vernáculas e fugas rupturais, etc, e se entrecruzam, por vezes de modo extraordinário, numa mesma obra e num mesmo artista.

     Numa visão sobre as valências artísticas do denominado Maneirismo de Goa -- um dos monumentos emblemáticos que importa destacar e que enobrece o património da velha ‘Goa do Oriente’, antiga capital portuguesa das chamadas Índias Orientais – a conferência destaca o acervo do Mosteiro de Santa Mónica, fundado em 1606 pelo Arcebispo D. Frei Aleixo de Meneses (1559-1617) e erigido entre 1611 e 1627, que conserva, apesar das vicissitudes um acervo artístico de capital importância para o estudo do que se convenciona chamar arte indo-portuguesa. É «um dos maiores edifícios levantados pelos portugueses no ultramar», como escreveu o historiador de arte Carlos de Azevedo, que integrou, com Mário Chicó, o arquitecto Humberto Reis e o fotógrafo José Carvalho Henriques, a brigada de estudo do património mandada à Índia em 1951.Os artistas que intervêm na construção por Frei Diogo de Sant’Ana, mentor da obra, foram os mesmos das obras do Mosteiro de Nossa Senhora da Graça e do Colégio do Pópulo, no chamado Monte Santo de Goa, colina privilegiada dos agostinhos: o engenheiro-mor Júlio Simão ou Simonis, que actua em Goa de 1596 a 1632 e foi o arquitecto, os pedreiros Manuel Coelho e João Teixeira, o escultor mestre Babuxa, o entalhador Santopa, o dourador António da Costa, e alguns pintores der muito mérito e vasta actividade, com destaque para Aleixo Godinho e João Peres. A casa, destinada a cem «donzelas e viuvas virtuosas», recebeu bula de Paulo V (1613) e breve de Gregório XV (1622) e foi do Padroado Real (1636). Ainda conserva, apesar das perdas, um acervo de pintura, escultura, talha, esgrafito, azulejo e pratas de capital importância para estudo da arte indo-portuguesa nesta fase de esplendor de Goa.

     O estudo histórico-artístico sistematizado (e contextualizado) destas realidades artísticas ainda mal pressentidas pelos historiadores de arte revalorizará o conhecimento sobre o Património dos espaços lusófonos, prioridade das prioridades nas políticas de conservação, restauro, investigação e re-conhecimento do Estado português e ponte privilegiada para o diálogo e o alargamento de relações com outros povos e culturas que, no melhor e no pior da História, estiveram e continuam ligados por profundas marcas de miscigenação e de longa experiência vivencial, que merece ser estudada e devidamente preservada enquanto identidade comum.