As Histórias da Arte «de género»: o feminismo.

30 Novembro 2017, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 ARTE NO FEMININO - CASOS DE ESTUDO 

     Olhemos o Cartaz We Can Do It !, de J. Howard Miller (1943), primeiro grande ícone da luta das feministas nos EUA, e na Europa. Esta imagem de uma trabalhadora com lenço na cabeça, que arregaça as mangas e assume a força necessária para as actividades convencionadas como sendo exclusivas dos homens, nasce ironicamente no contexto da última Grande Guerra, no seio da fábrica Westinghouse Electric Corporation, com o fito de incentivar as mulheres americanas a colaborarem no esforço militar. Só muito mais tarde, nos anos 80, se tornou, descontextualizada, um ícone do Feminismo. Pensemos, também, no papel de Mary Wollstonecraft (1759-1797), notável escritora, filósofa e militante dos direitos das mulheres, defensora incompreendida e contestada do voto universal e da igualdade de géneros. E vejamos como a História da Arte bem pensante, académica, fechada na sua torre de marfim, parece ter esquecido as suas protagonistas mulheres, erradicando-as dos museus e das páginas dos seus livros…

     Ou seja, existe ainda uma arte sem História que precisa de ser reescrita, de ser pesquisada a sério: aquela que foi produzida por artistas mulheres, e que a História tradicional tem sempre colocado num plano subalterno e negligenciado. Vejamos a arte portuguesa. Que se sabe de Ináci da Costa de Almeia, escultora em madeira, barro e cera, autora de um bom Senhor da Cana Verde em terracota policromada, assinado e datado de 1654, que existe no antigo Dormitório do Convento de Cristo em Tomar, e que foi, à época, considerada «exímia» ? Que se sabe da freira pintora Soror Joana Baptista, autora de miniaturas sacras, activa na segunda metade do século XVII, que gozou de certa consideração ? Que se sabe a nobre Maria de Guadalupe de Lencastre e Cardenas (1630-1715), de Aveiro, Maqueda y de Arcos, letrada e pintora, que chegou a ser juíz da Irmandade de São Lucas em 1658 ? Que se sabe de algumas dezenas de mulheres que, desde o século XVII, praticaram desenho, caligrafia, debuxo, douramento ou mesmo pintura de pincel, chegando a estar inscritas na Irmandade de São Lucas ou, já no XIX, tiveram aprendizado parisiense, como a infeliz Josefa Greno (1850-1901) ? Na verdade, sabemos muito pouco.

     Duas historiadoras de arte tiveram papel de maior relevo na afirmação de uma História da Arte recente em que as mulheres artistas passaram a contar em plano de paridade com os seus colegas homens. Trata-se de Griselda Pollock (1949-), docente da University of Leeds, especialista em estudos de género e em arte feminista, autora de Old Mistresses: Women, Art and Ideology (1985), e de Linda Nochlin (1931-2017), professora do Institute of Fine Arts (University de New York), reputada como curadora das célebres exposições Women Artists: 1550-1950, que decorreu em Los Angeles County Museum of Art, em 1976, e Global Feminisms, no Brooklyn Museum, de 2007. Ambas contribuíram para mudar o curso da História da Arte com as perguntas ‘porque é que não existem grandes mulheres artistas ?’ e ‘se existem, porque não têm o devido destaque ?’  Nochlin respondeu-lhes em Janeiro de 1971 no ensaio ‘Why have there been no great women artists ?’ (Artnews), em que, percorrendo a História, registou as convenções sociais que sempre impediram as mulheres de terem destaque nas artes, e contrariou a ideia da genialidade artística como um talento inato exclusivo dos homens. A sua crítica incisiva obrigou a História da Arte a reformular as suas próprias regras: redefiniram-se conceitos de genialidade e reconheceu-se o talento de artistas mulheres que só o preconceito de género fizera esquecer. A força legitimadora do saber exposto em programas de ensino, museus e exposições tornara ‘natural’ a ausência de mulheres artistas; ora, se elas não estavam lá, se não líamos sobre elas nem as víamos nas paredes dos museus, é porque não existiam, ou não tinham ‘qualidade’ para lá estarem…

     A visão feminista, irónica e provocadora, do livro de Nochlin Women, Art and Power and Other Essays, 1991), revolucionou a História da Arte, até aí assente no preconceito de que só os homens podiam ser artistas destacados. Esta nova História da Arte mostrou que, afinal, ‘elas’ existiam, e eram muitas mais do que se imaginaria. Ficaram expostos os mecanismos que tinham criado a sua histórica invisibilidade; e inverteu-se a questão posta – pois o que era extraordinário é que, apesar das resistências e obstáculos, as mulheres tivessem tido brilhantes carreiras artísticas, e fossem tantas! Assim se desconstruíram as bases ideológicas de uma História de raíz homofóbica e xenófoba, num contexto histórico de anos 70 em que o pensamento feminista estava a transformar os paradigmas e linguagens das ciências humanas, inserindo a perspectiva feminista em todas as vertentes: porque é que as mulheres artistas não tinham sido estudadas, coleccionadas, expostas, restauradas, valorizada ? História da Arte começava finalmente a falar da arte feita por mulheres, contribuindo para que passe a ser, como diz Filipa Lowndes Vicente, uma arte com história. As abordagens feministas contribuíram decisivamente para uma consciência crítica dos mecanismos ideológicos de inscrição da História da Arte e para refutar os processos de segregação de género na produção artística, tão bem ilustrada pelo famoso poster do grupo feminista Guerrilla Girls: «Terão as mulheres que estar nuas para entrar no Metropolitan Museum? Menos de 5% dos artistas expostos na secção de arte moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos»...

     Todavia, neste campo de resgate da arte no feminino, antes muito desconsiderada pela História, existe a maior dificuldade em encontrar documentos, escritos ou visuais, sobre o trabalho de mulheres artistas, permanecendo muitas “páginas em branco” sobre as suas obras. A este respeito, dar voz plena às mulheres silenciadas é tarefa difícil, restando a possibilidade de questionar criticamente os mecanismos (re)produtores destes silêncios, caso a caso, e a forma como o saber é elaborado, validado e instituído pela História. O livro Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, de Ana Vicente, e o excelente ensaio de Filipa Lowndes Vicente Fora dos cânones: mulheres artistas e escritoras no Portugal de príncipios do séc. XX, questionaram as possibilidades que podiam ter as mulheres portuguesa em se dedicarem profissionalmente à pintura ou à escrita. Pintar e escrever eram práticas femininas aceites e até encorajadas entre as elites, já nos séculos XVI ou XVII, se dentro do recato do lar, mas existiam fronteiras entre fazê-lo no espaço privado da domesticidade ou no espaço público, expondo ou publicando. Quando o sufragismo e o feminismo eram ideias que circulavam a nível transnacional, como é que as portuguesas que tinham acesso à escrita, ou à pintura, se posicionavam face a esses debates ? Ora nem sempre o acesso à publicação e à exposição se traduzia numa consciência feminista.

     Citam-se sem dificuldade, percorrendo serenamente a evolução das artes ao longo da Idade Moderna e Contemporânea, casos de inquestionável e superioridade artística de mulheres pintoras como  Artemisia Gentileschi (1593-c. 1653), ‘caravagesca’ de méritos reconhecidos no seu tempo, tal como sucedeu com Barbara Longhi (1552-1638), Catharina van Hemessen (c.1527-1560), Levina Teerlinc (c. 1520–1576), Lavinia Fontana (1552-1614), Clara Peeters (1594-1657), Louise Moillon (1610–1696), Judith Leyster (1609–1660), Elizabetta Sirani (1638-1665), e podemos alargar o rol de nomes até ao caso icónico da mexicana Frida Kahlo (1907-1954). Mas temos também, no plano oposto, o caso da escultora Camille Claudel (1864-1943), grande artista francesa, discípula e amante de Rodin, que apesar do incontestável mérito faleceu na obscuridade, e cuja obra só veio ganhar reconhecimento décadas após a morte.

     Em Portugal, o caso mais mediático e notável, na época barroca, é o de Josefa de Ayala e Cabrera, a famosa Josefa de Óbidos (Sevilha, 1630-Óbidos,1684), filha e discípula do grande pintor Baltazar Gomes Figueira (1604-1674), já louvada por Damião de Froes Perym, no Theatro Heroino (1734), não pelas qualidades artísticas propriamente ditas mas pelas ‘virtudes morais’ e ‘decoro’ de ‘mulher emancipada que nunca casou’…. Caso aparte é o de Aurélia de Souza (1866-1922), pintora notabilíssima, com formação parisiense, destacada entre os onze nomes que Sandra Leandro e Raquel Henriques da Silva reuniram no livro Mulheres Pintoras (2014). Quanto à infeliz Josefa Greno (1850-1902), pintora de grande talento, o facto de ter sido casada com o pintor Adolfo Greno, bolseiro em Paris, que lhe tomou as obras como suas, originou a tragédia que levaria a artista ao internamento no hospital de Rilhafoles. Em 1879, Josefa viu-se obrigada a suportar a família e a usar a pintura, em 1881 convive com Artur Loureiro e Columbano, estreia-se com sucesso na XIII Exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes (1884) (tendo de se apresentar como «discípula de Adolfo Greno») e foi elogiada como «a surpresa Greno». Em 1886 participou na 6ª exposição do Grupo do Leão e nos certames do Grémio Artístico. Vendia bem, recebia encomendas, foi distinguida com prémios, teve discípulas. O facto de ser mulher reprimida conduziu à tragédia de 1901 e à sua prisão e internamento.

     O livro de Filipa Lowndes Vicente A Arte Sem História. Mulheres e cultura artística (Sécs XVI-XX) (Athena, 2012) mostrou como a perspectiva feminista veio «descobrir novos objectos de estudo que até então tinham permanecido invisíveis», colocando perguntas diferentes para obter novas respostas inclusivas do feminino, rejeitando a ideia de que as mulheres artistas desconhecidas do passado não existem e questionando os processos de construção da memória histórica a partir dos mecanismos de (re)produção das discriminações de género. Afinal, qual o nível de oportunidades de acesso ao universo, à carreira e ao cânone artísticos que tiveram as mulheres artistas ? Tendo como marco histórico a já referida exposição pioneira Women Artists: 1550­‑1950 (Los Angeles, 1976), este livro é o contributo maior para a História da Arte Feminista que surgiu entre nós, numa construção que equaciona os múltiplos processos através dos quais os registos do trabalho das mulheres artistas foram sendo submersos pela própria História... Merece uma última referência, neste temário, a exposição Wack! Arte e a Revolução Feminista, com curadoria de Connie Butler (MOCA, Los Angeles, 2007), a primeira exposição abrangente a tratar a arte feminista internacional, centrada no período 1965-1980, anos em que ocorreu um forte activismo feminista, com obras de 120 artistas dos Estados Unidos, Europa, América Latina, Ásia, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.

     A História da Arte no feminino reforçou o poder de saber olhar e ver estas mulheres observadas, estas mulheres observadoras que criam arte. A abordagem feminista da arte busca, por um lado, a vertente das mulheres enquanto objecto de observação e criação masculino (uma das tipologias persistentes ao longo da história da pintura ocidental) e por outro o lado das mulheres enquanto observadoras. Esta dimensão, que engloba os temas da hegemonia do olhar masculino e as possibilidades do desejo, as fronteiras da nudez e a ‘colonização’ do corpo feminino, alarga sem dúvida o campo a História da Arte.

     Afinal, tudo começa no corpo e no preconceito que lhe subjaz. O desejo e o tacto, os sentidos, o teatro, a pose, as motivações narcisistas, a força do imaginário estético. O corpo é luz espelhada, festa, luxo, etiqueta, revolta, graça, retórica, afirmação insubmissa, liberdade, pecado, ícone religioso, maternidade, retrato de aparato, simbolismo, sensualidade, amor, fé ardorosa, alegoria, espiritualização, fonte de prazer – e assim foi, desde sempre, objecto de criação artística, exaltante apego a formas palpitantes. Nele existe grazia e repulsa, obsessão saturniana e euforia, schize melancólica e venustà imaginizada, antropocentismo e ambiguidade, fé e descrença, indizível e efémero. De tudo isto nos fala o Corpo, na pena dos poetas, na descrição dos escritores, no escopro dos escultores, no pincel dos pintores... Mas quando o corpo se torna matéria de arte por parte das mulheres-artistas, a linguagem é ou não distinta – ou melhor, a visão que dele temos é ou não distinta ? A verdade é que o monopólio de uma História da Arte grandiosa, ocidentalizada, masculina, cristã, branca, rácica, imperialista, marcada pelo preconceito e a exclusão, ainda não se finou e ainda faz sentir a sua força…

     Um contributo para uma tipologia neste campo permite-nos assumir: -- O corpo como alegoria moral (como testemunho de fé, símbolo explícito, reflexo de estados comportamentais); O corpo como magia de Eros (a magia do corpo, o inconformismo, o fascínio contra os cânones estabelecidos, o comprazimento e o deleite das formas); O corpo como equívoco (testemunho de ambiguidades e volúpia, retórica de caprichos e obsessões recalcadas, e confrontos irresolúveis entre a pureza ideal e o fragor de Eros); O corpo como pecado (a marca da ignomínia, a vanitas inútil, a brevidade). O corpo como pretexto, sempre... (tudo começa e acaba no corpo, esse desconhecido, deslumbrante pretexto para os artistas desbravarem paixões arrebatadas, em desencantos, obsessões, dores, exacerbações, ardores espirituais, sentir físico). Erotismo e sensualidade, fé e religião, paragona dos amores profano e divino, Eros e Anteros, tacto carnal e arrebatamento místico, pureza e volúpia, luz divina e sensorialidade sexual, um caminho de linhas comuns e opostas, de cruzamentos e conjuras heterogéneas. Em Jacopo Tintoretto (1519-1594), genial pintor veneziano, católico mas nem por isso conservador, que se toma como exemplo com Susana e os Velhos, fé e sensualidade coabitam, sempre, na representação do nu feminino.

     Mas falar do corpo feminino é também falar de censura, actos iconoclásticos, repressão directa ou interposta através de actos de iconoclasma. Reportamo-nos ao caso da figura da mulher-diabo desnuda no painel renascentista O arcanjo São Miguel combatendo o demónio da igreja monacal de São Francisco de Évora pintado por Garcia Fernandes, cerca de 1530. Como se sabe, poucos anos depois, já em contexto de Contra-Reforma, o quadro foi alvo de polémica e o diabo-mulher mandado cobrir por uma nuvem espessa. Tal constitui sintomático exemplo de uma atitude censória homofóbica em que, através da ocultação de uma imagem, se visou anular os efeitos incontroláveis da beleza do corpo, facto que tornava essa obra de arte tão incómoda e subversiva...