Visita de estudo.
28 Setembro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Visita de estudo à Exposição VERGÍLIO CORREIA -- UM OLHAR FOTOGRÁFICO, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Vergílio Correia Pinto da Fonseca
(1888-1944) é uma das mais extraordinárias personalidades da cultura portuguesa
da primeira metade do século passado. Dotado de qualidades ímpares no campo da
investigação, estudo e análise do património, iluminado por gostos
multifacetados, foi não só o arqueólogo que deu a conhecer o megalitismo do
Alentejo e que revelou o essencial do oppidum romano de Conimbriga, como
também o antropólogo que ajudou a renovar os estudos da Etnografia portuguesa
e, ainda, um notável historiador de arte, museólogo e professor universitário.
Muito conhecido como o mais importante dos arqueólogos descobridores da cidade romana de Conimbriga e um dos seus principais investigadores, foi também empenhado antropólogo e, sobretudo, notabilíssimo historiador de arte, uma disciplina cujos princípios e metodologias ajudou a renovar. A revelação recente do inestimável conjunto de fotografias em chapa de vidro da autoria de Vergílio Correia, dadas a conhecer por Miguel Pessoa e Lino Rodrigo (Centro de Estudos Vergílio Correia, de Condeixa-a-Nova, que conserva esse acervo), veio revelar, ademais, a sua sensibilidade de fotógrafo e a grande sensibilidade com que se dedicava a testemunhar, como antropólogo esclarecido, as vivências populares. Parte desse acervo será tema de exposição no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a partir de 9 de Junho próximo. Também o fundo documental, com a sua correspondência e notas de viagem, conservado no ANTT e só em data recente disponibilizado à investigação, permite esclarecer e completar inúmeros aspectos da vida e obra de Vergílio Correia.
Professor da Universidade de Coimbra, formou gerações de alunos na sensibilização pelo património histórico-artístico nacional, dentro de uma nova perspectiva de análise comparatista e globalizadora dos monumentos e obras de arte. Estudioso apaixonado dos achados de Conímbriga, sobre a qual muito escreveu desde 1909, dedicou-se a investigá-los de modo profícuo; porém, como diz Jorge Alarcão, «a morte prematura sobrevinda aos 55 anos não lhe deu tempo de escrever sobre este oppidum a monografia que por força havia de trazer em mente». Já no campo da História da Arte deixou vasta bibliografia de referência ainda hoje incontornável, sobre temas como a tumulária gótica, a arte manuelina, a pintura do Renascimento, a talha barroca, o azulejo, e a museologia, entre muitos outros temas em que foi observador pioneiro, e legou-nos ainda os grandes Inventários Artísticos da Cidade e Distrito de Coimbra (edição da Academia Nacional de Belas Artes), completados após a sua morte por António Nogueira Gonçalves e que são, também, inovadores nos critérios de recenseamento e descrição de peças. Os seus estudos de História da Arte tornaram-se incontornáveis para a investigação em muitos campos da cultura dos nossos. É o caso da observação estilística das obras ou do estudo da relação entre comitentes e artistas no processo criativo. Também na Etnografia os seus interesses se manifestaram, fruto do convívio com José Leite de Vasconcelos, gerando artigos na Águia ou a síntese Arte Popular Portuguesa, primeira sistematização no âmbito da nossa Antropologia antes dos discursos de folclorização e descaracterização associados à propaganda oficial do Estado Novo. Etnógrafo, Arqueólogo e Historiador de Arte, além de museólogo, fotógrafo, ensaísta, pedagogo e professor universitário, grangeou renome internacional e obra imensa que a morte prematura incompletou: Vergílio é uma das figuras máximas da cultura portuguesa do século passado. Em fidelidade ao seu «ardente anelo da justiça e da igualdade perante a lei e as condições gerais da existência, que lhe alentou o ideal de cidadania», diz Joaquim de Carvalho em 1946 no prefácio às Obras (vol. I), «as três disciplinas conviveram fraternalmente no seu espírito, tanto mais que as considerava metodologicamente da mesma maneira e com idêntico sentido de objectividade: se a exploração do terreno determina o único caminho admissível na Arqueologia, a colheita directa dos factos e dos testemunhos documentais, auxiliada pela comparação de visu, pareceu-lhe ser também o método idóneo da Etnografia e da História da Arte» (Joaquim de Carvalho, idem, 1946).
No campo da História da Arte, foi à luz dos princípios teóricos e metodológicos de Vergílio que essa disciplina em boa verdade se iniciou em Portugal, sem aquela teia formalista e visão redutora que era então dominante. Os seus interesses de estudo não se limitavam a Alcobaça, à Batalha, aos Jerónimos e aos grandes monumentos e ‘nomes’, mas a uma visão patrimonialista globalizante, com atenção às artes decorativas, como o azulejo e a talha, o fresco e o estuque, o esgrafito e a terracota, o embrechado e o brutesco, entre outras modalidades artísticas até então sempre menorizadas. Era, ademais, um homem de causas, educado nos princípios republicanos e defensor das liberdades cívicas. Detinha uma visão intelectual formada nos princípios cívicos de cidadania republicana, a que sempre manteve fidelidade e se atestam em fases ainda pouco esclarecidas, como a filiação maçónica na loja A Revolta, de Coimbra, ou as ‘amizades perigosas’ com o grupo democrático do comandante Aragão e Melo, que levariam à sua breve prisão no Aljube, em 1932. O reconhecimento das suas altíssimas capacidades permitiu, porém, que em tempos difíceis pudesse prosseguir a sua carreira universitária e museológica. Avulta em toda a sua vasta obra uma personalidade extraordinária, com múltiplos interesses, muitas vezes esquecida pela desmemória e ingratidão dos homens mas que guarda plena actualidade e urge, por isso, voltar a conhecer.