Aprender a aprender

18 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

OUTUBRO                                     6ª FEIRA                                          10ª Aula

 

 

18

Saída de Campo

 

Espectáculo de Teatro KIKI VAN BEETHOVEN de Eric-Emmanuel Schmitt, encenação de Natália Luiza, interpretação de Teresa Faria. Teatro Meridional, 11.10.2019. 90 minutos. 21:30 -23:00.

 

Desde quando ser estudante na Faculdade de Letras se torna causa de abrandamento de alegria, de crescente sentimento geral de incapacidade em gerir prioridades relacionadas com o estudo?

Admito que o perfil dos actuais estudantes traz acrescidas responsabilidades num quadro que em muitos casos demonstra ser de difícil resolução a contento dos mesmos. Um número razoável destes estudantes trabalha, vive longe, e terá vidas privadas complexas. Quem as não tem?

Também eu fui estudante da Faculdade de Letras entre 1968-71. Para chegar às aulas da manhã (a começarem às 8:00) apanhava cinco transportes (camioneta, comboio, autocarro, metro e eléctrico. O último troço, a Alameda da Universidade, era feito a pé. Saía de casa às 6:00. À tarde, e com almoço reduzido, trabalhava como tarefeira no Arquivo de Identificação de Lisboa. Seguia-se o trajecto inverso até chegar de novo a casa, onde jantava. Só conseguia estudar aos fins-de-semana quando conseguia. Não deixei nunca de me divertir e muito, tinha actividade cívica estudantil (Pró-associação) e amigos não me faltavam. Nessa época, ir assistir a espectáculos em sala própria não fazia parte das actividades que os programas leccionados propunham, quanto mais não fosse por razões culturais. Se me perguntarem se fui feliz durante o curso universitário, direi que aprendi a esforçar-me pela vida, a distinguir sobre o que queria mesmo fazer e a relativizar o que podia deixar cair sem problemas de consciência.

Nessa altura, não havia saídas de campo a não ser para os estudantes de Arqueologia, que eram obrigatórias, sobretudo no Verão com as escavações. Os estudantes de História e História de Arte faziam uma saída ou outra, muito raramente. Pouco se trabalhava em museus. Os nossos professores, com honrosas excepções (lembro-me de dois), quando olhavam para nós, nem sabiam em que turma estávamos inscritos. Eram cordiais mas não tiravam dúvidas. Isso era tarefa dos assistentes quando os houvesse. O meu curso não tinha assistentes ao serviço de catedráticos. Quem nos dava as aulas era um só professor por disciplina. Eram cumpridores e exigentes mas sem grande proximidade. Formei-me em Germânicas. A minha ligação às Artes Cénicas nasceu por ter querido ser actriz amadora, e fui-o por poucos anos. Depois experimentei tudo o que as Artes Cénicas permitiam desde a tradução, à crítica teatral, à dramaturgia, à assistência de encenação, à encenação, à operação técnica com meios não sofisticados, à concepção de figurinos, à escrita de programas-livro para espectáculos, à escrita de peças, ao ensaio, ao ensino, à arguição de teses, à participação em júris internacionais de premiação e, recentemente, como membro do júri do concurso para o biénio de 2020-2021 para companhias profissionais da dgARTES. Aprendi a observar o trabalho de outros em quem muito confiava e que elegi como meus Mestres. A experiência ficou para a vida.

Em abono da verdade pergunto-me agora se aos actuais estudantes da Faculdade de Letras, e aos de Artes do Espectáculo em particular, basta que directores de curso e outros professores tudo façam para que nada lhes falte, celebrem protocolos com casas de espectáculos, proporcionem entradas gratuitas ou bilhetes de baixo custo, organizem workshops e tantas outras actividades? Por tudo isto a Faculdade de Letras merece reconhecimento porque nela trabalham pessoas que se interessam verdadeiramente pelos seus alunos. Mas quando o cenário não é de facto apenas este e se espera que da parte dos alunos haja contrapartida face às realizações e às propostas de participação apresentadas, confrontamo-nos com um role de dificuldades que chegam a pôr em risco um programa.

As saídas de campo de Sociologia das Artes do Espectáculo, anunciadas como iniciativa geral, desde o primeiro dia de aulas, decorrem de uma programação que não implica apenas a ida a um espectáculo ou a vários, mas que tem como princípio a integração e compreensão de comportamentos individuais à luz de uma ideia – Quem a arte especta, especta-se a si mesmo. Foi, por exemplo, isto que aconteceu quando cinco das vossas seis colegas falaram livremente sobre o espectáculo Kiki van Beethoven. A peça de Eric-Emmanuel Schmitt que vimos em conjunto e em pequeno grupo permitiu que nos manifestássemos sobre a qualidade e tipo de texto (monólogo), sobre a criação da actriz em palco, sobre a encenação, cenografia, desenho de luz, partitura sonora e sobre as nossas emoções e sentimentos. Não nos obrigámos a nenhuma grelha de trabalho (o diário de bordo deveria funcionar como um instrumento de trabalho individual que orientasse a discussão no colectivo). Verificámos que após a discussão, poderíamos vir a incorporar o que tinhamos vindo a aprender sobre Didi-Huberman, Damásio, Frazzetto e tantos outros autores previstos que pudessem corroborar a ideia central de programa.

As saídas de campo são factor de alargamento de um trabalho escolar feito em aula e fora dela e contribuem para que a sua intersecção na realidade e experiência de vida de cada um (a individualização do exercício de espectação, por exemplo), possa permitir diálogo, defesa de pontos de vista próprios e fundamentados, aprendizagem. Conseguirmos conferir como somos biologicamente próximos uns dos outros e ao mesmo tempo nos apresentamos como construtores de uma cultura (por vezes subculturas) que se orienta por gradações, cujas respostas nos inquietam e nem sempre nos satisfazem, é, a meu ver, um modo democrático, ainda que exigente, de crescimento interior.

Até ao final do semestre e a par de propostas de carácter mais teórico, veremos em aula vídeos e outros materiais sempre que se justificar. As saídas de campo terminaram.

 

Breve reflexão sobre a peça O Horácio de Heiner Müller

 

Eramos seis. Dois depois. Nenhum ficou. Quantos mais haverá?

“Ah, nós

Nós os que queríamos preparar o terreno para a amizade

Não fomos sequer capazes de ser amáveis.

 

Mas quando tudo tiver ido longe bastante

Que leve o homem a ajudar outro homem

Pensem em nós

Com tolerância.”

Bertolt Brecht, Aos que hão-de vir

 

1.

Houve em tempos dois exércitos em contenda, porque um monarca ambicionava expandir o seu reino através da força das armas. No seio dessas hostes combatiam de cada lado dois trios de trigémeos. Por Roma lutavam os três filhos de Horácio, por Alba Longa, a cidade que gerara Roma, pelejavam os irmãos Curiácios. Túlio Hostílio, o terceiro rei de Roma, mostrava-se inflexível aos apelos dos seus conselheiros para que se pusesse fim a uma tal guerra fratricida. Até que a voz sentida e inconformada de Meto Fufécio se fez ouvir no meio dos pelejadores: “Qual o sentido desta desgraça tão sangrenta e ruinosa para os nossos povos? Não continuamos a ser próximos? Não existem entre nós interesses que nos irmanam? Será que queremos ser gáudio dos nossos inimigos comuns?”

O sábio Meto Fufécio aplacou a sede do conquistador Túlio Hostílio e obteve assim o consenso de ambas as partes. Foi então decidido que os três Horácios e os três Curiácios, geminados entre si pela diferença de comum sangue, se batessem em armas por um único vencedor. O acordo ficou abençoado por um sacerdote e houve celebrações com o sacrifício de animais, à vista de todos.

Alimentada por feroz e mútua coragem retomou-se a contenda, reduzida agora a seis combatentes. Caiu o primeiro Horácio e a seguir o segundo. Os Curiácios resistiam cobertos de golpes e os Albanos rejubilavam com o quase-triunfo dos seus lutadores. Já dilacerado pela derrota iminente e sofrendo na carne as feridas suas e as de seus irmãos perdidos, o último Horácio pôs-se em fuga. No seu encalce foram de imediato os três Curiácios, tão céleres quanto os seus fracos corpos o permitiam. Mas o Horácio quisera apenas pôr os seus adversários à prova, ao fazer uso de uma velha táctica romana de dissimulação. Sobre os três Curiácios caiu então o último Horácio e, implacável, um a um os três gémeos por terra deitou, despojando-os do sangue que os unira. A vitória dos romanos sobre os albanos festejou-se com júbilo triunfante e o derradeiro Horácio foi aplaudido por romanos e albanos. Túlio Hostílio tornou-se monarca de dois povos, unidos agora por uma mesma voz.

Mas a irmã do Horácio que se tornara herói irrompe subitamente no lugar onde os festejos decorriam. Dentro dela confunde-se o anseio de louvar o vencedor com o receio de funesto pressentir. Os seus olhos fixam-se na túnica ao ombro do vitoriado Horácio, aquela que suas mãos haviam tecido e que ofertara em paixão a um dos jazentes Curiácios. O nome do querido ser foi então gritado pela irmã de Horácio, enquanto seus próprios cabelos soltava e arrancava, despedaçando-se em dor pungente pela irreparável perda. E sobre o seu coração ferido de amor desceu a mortífera e gloriosa espada de Horácio que, em fúria, sua irmã invectivou: “Banida sejas por esse amor funesto! Esqueceste os irmãos mortos e a mim que estou vivo! Esqueceste a pátria! Que a morte caia sobre ti e sobre todas as romanas que ousarem chorar o inimigo!”

2.

Sob o desígnio de claros relatos fabulares, escritos por Tito Lívio e Plutarco, se construiu o percurso-memória da História de Roma Antiga, de que faz parte o episódio Os Horácios e os Curiácios. Constituindo-se como ínfima parcela configuradora do itinerário de um país em busca da sua identidade, esta narrativa expõe, na articulação dialéctica interna, a impossibilidade de conciliar o genuíno princípio de fidelidade e amor pela Pátria com o princípio, tão genuíno quanto o primeiro, de preservar os laços afectivos da consanguinidade.

A força dramática deste assunto histórico-mitológico pré-anunciou, desde logo, o reconhecimento e a perscrutação das suas inúmeras potencialidades para se transformar em matéria de representação teatral. Foi na Itália renascentista, desejosa de recuperar as referências e as raízes da Cultura Clássica, que se escreveu e produziu o primeiro drama horaciano. Pietro Aretino fez subir à cena, perante um dos seus mecenas mais dilectos, o papa Clemente VII, a sua tragédia L’ Orazia (1546). Cerca de um século depois, seria a vez de Lope de Vega criar para o almoxarife de Sevilha, Juan Munoz de Escobar, uma “tragicomédia famosa”, El honrado hermano (1623), texto de elaborada linguagem, novas façanhas e um rol de peripécias, que já não fazia jus à austera saga romana, apesar de satisfazer plenamente o gosto barroquizante do público do seu tempo.

O original discurso narrativo, inspirado em acontecimentos, a um tempo públicos e privados, e que eram expressão de uma incompatível e simultânea lealdade à cidade-Estado e à vital força dos afectos, foi sendo contaminado por sucessivas concepções estético-ideológicas que rescreveram, neste caso como em muitos outros, um processo de apropriação e de recriação de uma clássica herança comum à Europa.

A ideia de definição e fixação de uma matriz escrita, produzida a partir de uma reduzida sucessão de acontecimentos num certo tempo e lugar, adquire o valor de memória e de exemplo. É por isso que a velha história de Os Horácios e Curiácios está há muito diluída em cada um e em todo o recriar que a partir dela existe ou venha a existir. Tal facto não impede, porém, que a sua natureza matricial possa sempre ser identificada e dessa forma perdure como representação singular.

3.

A proposta de tratamento dramático criada por Heiner Müller para O Horácio (1968) recupera o essencial da narrativa de Tito Lívio. A sobriedade da construção dramática da peça mülleriana faz justiça a um processo de sintetização da fábula e dos respectivos intervenientes que nela agem. Para o dramaturgo alemão a história inicia-se com dois opositores: um horácio e um curiácio. O episódio romano fundamenta a acção, absorvendo ao mesmo tempo outros conturbados cenários de exercício político despótico na História da Europa do século XX, contemporâneos ou um pouco anteriores à escrita da peça. O exemplo mais evidente retirado dessa realidade terá sido a malograda revolta de Praga na Primavera de 1968.

Acontece, porém, que O Horácio de Heiner Müller não se esgota no historicismo da sua época, nem pretende apenas responder, de forma artística, a questões relacionadas com a prática ideológica marxista-leninista, associada ao socialismo real que vigorou durante décadas nos países de Leste.

Mais amplo terá, sem dúvida, de ser o nosso entendimento deste curto texto dramático. Se, por um lado, ele é concebido como uma peça didáctica, e nessa qualidade escrito para exercício de actores, hipoteticamente de todos os actores de todos os tempos que hão-de vir e de todos os lugares, por outro lado, O Horácio transporta em si um sentido de captura e simultânea devolução, presente na sua própria génese (o texto claramente matriciado em outros textos), que antecipa e projecta em direcção ao futuro um conjunto de questões de natureza universal e que, exactamente por isso, a todos nós dizem respeito.

Mais importante do que salientar a embora necessária filiação de O Horácio à obra que dramaturgicamente o antecedeu, Os Horácios e os Curiácios (1935) de Bertolt Brecht, faz sentido que se refira o espírito distinto com que cada uma das obras foi escrita. Assim sendo, vale a pena assinalar que a relação de parentesco criada entre os dois textos nasce de uma estratégia de desafio, sob a forma de resposta-comentário, à qual Heiner Müller devia corresponder, tendo a peça anterior como fonte inspiradora. Os dois dramaturgos partiam de Tito Lívio, donde a matéria ficcional e o aproveitamento da especificidade dramática serem similares. E, no entanto, à visão politicamente eufórica de Bertolt Brecht, sobrepunha-se o olhar crepuscular do então jovem dramaturgo Heiner Müller.

A concepção da “peça didáctica sobre dialéctica para jovens” que Bertolt Brecht discute com Walter Benjamin e que é por este considerada a melhor “peça escolar” do amigo, foi escrita sob uma óptica luminosa de legitimação da arte face à extrema racionalidade que abafava o pensamento marxista. Brecht tem uma encomenda do Exército Vermelho, e não só as escolas moscovitas deviam assistir à representação de Os Horácios e Os Curiácios, como também se tornava premente que outros públicos escolares de formação progressista em Inglaterra, França e nos Estados Unidos tivessem idêntica possibilidade.

4.

Heiner Müller escreve contra o seu tempo e contra uma Europa dividida. Ele escreve sobre a cegueira e a obsessão de todos aqueles que num determinado momento, o momento crucial, transformam em pedra o coração para darem corpo e voz a mais um martírio, e outro e outro, e mais outro ainda, a todos aqueles que já não eram necessários. E são esses que sempre fazem a diferença. Afinal quantos são necessários? Quem pode responder? As lições da História deixaram de poder ser apreendidas nos bancos de escola, porque as crianças conhecem as mais terríveis realidades que os livros não contêm. Quem é ainda capaz de convictamente as fazer acreditar que o mundo pode tornar-se num lugar sublime?

Apesar de nos termos de debater com estas verdades controversas mas incontestáveis, pior seria se delas não falássemos ou não pudéssemos falar. Aquilo que o horácio não foi capaz de perceber e por isso foi punido, deve suscitar em nós uma séria e ampla reflexão. Seremos ainda capazes de o fazer? É exactamente esse o ponto de vista que Heiner Müller defende e é em nome desse ponto de vista que a sua linguagem se radicaliza, se depura e as suas personagens se entregam, colectiva e individualmente, a sangrentos rituais de sacrifício da humana natureza. Faz sentido continuarmos a ser tão brutais e selvagens como o eram os povos antigos? Que nos trouxeram séculos de cultura e de civilização?

Em nome de uma justiça compreensivelmente recta mas bárbara, crua e insensível, pretende-se repor uma ordem que não tem mais razão de ser. A exemplaridade daquilo que acontece ao protagonista mülleriano - ser vencedor e simultaneamente assassino – é uma dupla verdade num só homem e, ao mesmo tempo, uma meia-verdade. Em que medida se pode pedir a um assassino autorizado de outros homens que use o discernimento naquele segundo em que a espada (ou qualquer outro artefacto bélico) está pronta para o golpe seguinte? Será que a automatização do gesto executa um movimento ao mesmo ritmo de um coração que pulsa?

Heiner Müller espera que nos sentemos no tribunal da História e assistamos ao julgamento e partilhemos com os actores a consumação do veredicto. O palco-tribunal, antiga proposta do dramaturgo Friedrich Schiller, renasce na peça de Heiner Müller para que nada, ou quase nada, fique esquecido. E nem o apelo do último horácio, o pai, a quem a Pátria deixa sem descendência, é suficientemente forte para demover o povo justiceiro.

Corneille, no seu Horace (1640), poupa o filho, embora sem esquecer que tal decisão é pela harmonia da governação inquestionável de Roma, em que França se deve espelhar. Tal exemplaridade de procedimento oferece ao monarca a razão conciliadora que salva do sacrifício o vencedor-assassino e supera todas as hesitações de um pai dividido entre pugnar pela honra do seu bom nome, através da justiça, e defender o último dos seus quatro descendentes.

Esta opção nunca poderia ser a de Heiner Müller. As vozes da sua peça são comandadas pelo cérebro, são argumentativas, endurecem como pedras, esgrimem-se num cego combate em defesa da própria contradição de vitoriar e condenar, num mesmo homem, a duplicidade da sua natureza. Os gestos e os movimentos dos actores estilizam-se e depuram-se até que se faça silêncio nos seus corpos.

Anabela Mendes

13.11.2003

TNDMII

17.3.2012

SAE

20.10.2019

 

 

Leituras recomendadas

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Capítulos 7 e 8, pp. 143-199.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 57-97.

MÜLLER, Heiner 1982, A Missão e outras peças, tradução e posfácio de Anabela Mendes, Ilustrações e capa de José Castanheira, Lisboa: apáginastantas, pp. 9-20. Os alunos receberam versão posterior revista, usada no espectáculo homónimo, Coimbra: Escola da Noite, 2003.