Das emoções aos sentimentos um caso paradigmático

2 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

Ocorreu uma aula muito participativa, o que me fez pensar que havia perguntas a requerem esclarecimento. O estudo dos capítulos 7 e 8 da obra de António Damásio A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas contém alguma dificuldade quando, por exemplo, tentamos compreender o que distingue a experiência de emoção da experiência de sentimento. Já antes tinhamos visto um curto vídeo que mostrava o encontro de Marina Abramovic com Ulay, seu anterior e antigo companheiro de vida, no MOMA de Nova Iorque, em 2010. Esse encontro teve lugar durante uma performance da artista que tinha por objectivo o confronto de olhares entre voluntários anónimos e ela própria durante uns breves instantes. As diferentes expressões dos rostos dos anónimos que protagonizavam o exercício performativo demonstravam reacções diversas (medo, desafio, comoção) que a artista conseguia controlar fechando os olhos e assim dando por terminado o encontro. É nessa postura, concentrada para receber o anónimo seguinte, que Abramovic é alvo de descontrole numa sucessiva sequência de emoções várias (o seu rosto e movimento são disso prova). A chegada de Ulay cria uma espécie de curto-circuito no plano das emoções e dos sentimentos que Abramovic não consegue compreender nem controlar. Nesse momento a performance artística terminara. Que reacções pudemos nós observar no processo de transformação da artista? Espanto, confusão, emoção, estranheza, alegria, suspensão de si mesma por confusão de sentimentos, transformação do espaço físico em espaço mental e total esquecimento do lugar onde se encontrava, de tal modo que o contacto físico com Ulay (o dar das mãos) é o mais explícito sinal da quebra de regras que orientava a performance. Referimos aqui a presença de sentimento. No caso em análise penso que é muito clara a diferença entre emoção e sentimento. A experiência de emoção verifica-se nas diferentes e incontroláveis reacções de Abramovic perante Ulay. Esse espectro é-nos perceptível pela observação do seu comportamento. Tudo se processa no seu corpo e mente e nós testemunhamos esse processo. Sabendo nós que emoção e sentimento não são a mesma coisa (Damásio, 2017: 146), resta-nos procurar algumas hipóteses que nos ajudem a comprovar que esta experiência sequencial entre emoção e sentimento corrobora o estado afectivo de Abramovic.

Sabemos que existe uma história sentimental e artística entre ela e Ulay que data de há muito tempo (viveram juntos 12 anos) e que foi caracterizada por muitos conflitos e reacções fisicamente violentas.

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A separação é sempre uma separação e o tempo que mediou entre a decisão de não continuarem juntos e o reencontro de 2010 (agora retomado em 2017) fermentou em cada um dos dois artistas.

Como afirma Damásio: « (…) o afecto é uma vasta tenda sob a qual coloco não só todos os sentimentos possíveis [e a palavra possíveis é significativa], mas também as situações e os mecanismos que são responsáveis pela sua produção, ou seja, responsáveis pela produção de acções cujas experiências se tornam sentimento.» (Damásio, 2017: 146)

Abramovic no encontro do MOMA recupera num ápice dezenas de anos de vida, o tempo com Ulay e o tempo pós-Ulay, em imagens mentais que lhe chegam pela consciência e é por isso que todo o seu corpo estremece, e os seus olhos se enchem de lágrimas. Não há discurso verbal mas todos nós fomos capazes de compreender que aquela mulher estava em sofrimento e em esfusiante alegria. Neste plano a presença de sentimentos profundos norteava a experiência. Desconhecíamos a essência das suas vivências, mas suspeitámos de que os conteúdos, como refere Damásio, estavam para dar voz ao corpo, coordenados com a valência que orienta o sentimento «e por extensão os afectos.» (Damásio, 2017:149)

Este caso mediático, para além do que representa, é uma longa história de amor e arte mas sobretudo uma incomparável lição de vida.

 

Leituras recomendadas:

A obra de Damásio em estudo foi disponibilizada através de E-book. Poderá não coincidir a paginação com o volume em papel.

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água. Leitura orientada em função das sugestões feitas por Didi-Huberman.

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Capítulos 7 e 8, pp. 143-199.

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

 

Vídeo sugerido

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