Na rota do desmando humano

23 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

                                   4ª FEIRA                                          11ª Aula

 

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Demos início à segunda parte do programa criando duas distintas zonas de trabalho: estudo sistemático de um conceito em António Damásio – o de homeostasia – e progressiva aproximação a um povo – os Bijagós – com características próprias que poderão ser interpretadas à luz deste conceito de que nos iremos apropriar.

A proposta de estudo requer organização e tempo diferenciados. O paralelismo das acções pressupõe que em aula possamos desenvolver actividades de observação de materiais visuais e outros que comentaremos sempre em função da conjugação dos objectivos expostos e associados. Ao mesmo tempo os alunos vão desenvolvendo em casa a investigação sobre o conceito proposto. A calendarização das actividades será apresentada progressivamente e à medida das nossas realizações, considerando-se a sugestão de outras leituras relacionadas com o estudo de caso.

 

Abrimos então a nossa aula com o visionamento de um espectáculo dedicado à história da escravatura ao longo de mais de quatrocentos anos.

Esta proposta artística que engloba música, canto e dança apresenta-se-nos como um acto festivo paradoxalmente dedicado a um assunto que despromove a relação entre povos: a escravização do ser humano, seu horror e sofrimento.

Seremos nós espectadores sado-masoquistas quando nos aventuramos por caminhos que nos narram e perante nós exibem Rotas da Escravatura 1444-1888 como espectáculo pluri-racial, pluri-religioso, pluri-cultural, pluri-artístico perante tudo aquilo que se objectiva em tortura, humilhação e desprezo em nome da essência e valores éticos humanos? Serão insolúveis os conflitos entre seres da mesma espécie e que se relacionam com este assunto, nomeadamente como formas de exercício de poder em que o espírito democrático se esboroa perante interesses de natureza económica, social, religiosa e política há tantos séculos? Onde situar verdadeiramente um pós-colonialismo que em muito se dilui em formas de colonialismo que persistem ainda e sempre fazendo de uns escravos e de outros senhores?

A algumas destas perguntas tentaremos responder com Damásio e outros.

Mas Jordi Savall é o eleito para já e com um invulgar espectáculo artístico e colectivo de qualidade suprema.

Seguindo o seu rumo, fomos ao encontro do músico catalão e activista dos direitos humanos, conceituado gambista e estudioso de música antiga de várias paragens do mundo, que entendeu dedicar obra ao assunto da escravatura. Este atravessa os tempos da História desde há milhares de anos e sabemos nós hoje também que o ano de 1888, que criou como oficialização o fim da escravatura, não passou infelizmente de uma espécie de acto politicamente correcto.

Com os seus colaboradores de diversas regiões do globo, Savall intuiu a necessidade de fazer despertar consciências a partir da arte instrumental e vocal, da dança que genuinamente provém de corpos inspirados por raízes matriciais de diversas culturas.

Estamos assim a assistir a um espectáculo em diferido, realizado ao vivo e pela primeira vez, em 2015, na abadia de Fontfroide em Narbonne, França. O lugar escolhido para exibir Rotas da Escravatura ganhou aliás uma conotação simbólica, isto se pensarmos, por exemplo, no processo de cristianização em África e na América do Sul onde algumas ordens religiosas foram colaboracionistas dos regimes coloniais europeus de manutenção de pessoas em situação de escravos.

Leitura recomendada

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Pesquisa orientada a partir de índice de conceitos no final da obra. O conceito em estudo é homeostasia. A referência no volume em papel é a p. 374.

 

Obra em visionamento através de DVD:

SAVALL, Jordi 2015, The Routes of Slavery (1444-1888), K. M. Diabaté, I. García, M. J. Linhares, B. Sangaré, B. Sissoko, LA CAPELLA REAL DE CATALUNYA, HESPÈRION XXI, 3MA, TAMBEMBE ENSAMBLE CONTINUO.

Espectáculo apresentado ao vivo, a 17 de Julho de 2015, na Abadia de Fontfroide, Narbonne, França, no âmbito do X Festival de «Música e História para um Diálogo Intercultural», Aliavox. Tempo de duração: 2h08’30’’