Nós, alguns animais e os sentimentos

11 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Saída de Campo

Assistência ao espectáculo Kiki van Beethoven do dramaturgo belga francês Eric-Emmanuel Schmitt, com encenação de Natália Luisa e representado por Teresa Faria. Teatro Meridional, 21:30-23:00.

 

Tal como previsto dedicámos algum do nosso tempo à leitura das páginas finais do livro de António Damásio (pp. 322-332) que merecera particular atenção no que aos capítulos 7 e 8 dissera respeito.

O intuito desta incursão procurou desvendar quais os pontos essenciais que haviam desencadeado investigação e escrita no âmbito da compreensão de vida humana afectiva e intelectual. Tratando-se de melhor enquadrar o justo equilíbrio entre um passado demasiado longínquo - 100 milhões de anos são uma infinita e inalcançável distância - e o comportamento e acção dos seres humanos actuais, e considerando que essa relação é comprovável, Damásio defende que esse inimaginável percurso estabelece associação entre «algumas espécies de insectos» pré-préjurássicas e os seres humanos, atribuindo por isso vida cultural a ambos os pólos (certos insectos e humanos), se bem que nos primeiros não exista a consciência desses factos. Porém, quando nos recordamos do comportamento de espécies de insectos sociais como as formigas e as abelhas verificamos que para além da capacidade de viver em grupo e de forma hierárquica constituindo sociedades próprias, estes animais revelam comportamentos que informam, por exemplo, sobre destreza arquitectónica e criação de bem-estar. A valorização cultural destes animais, sobretudo em grupo, surpreende-nos sempre. A formiga africana constrói ninhos ao ar livre, autênticas esculturas, com mais de dois e três metros de altura. Olhar para este objecto faz-nos pensar numa escultura feita de terra vermelha por esforço colectivo.

Claramente Damásio entenderia a força deste exemplo e explicaria que não tendo a formiga africana mente e consciência, ela integraria e integra o fluxo primordial do grande empreendimento de culturas a que como seres humanos estamos agregados. E responderia de forma positiva, para o bem e para o mal, ao contributo dos sentimentos para esta «estranha ordem das coisas».

É sobre este diálogo vivo subtil e subreptício, a perder de vista e sem remate que se possa considerar, que Damásio defende que os sentimentos engendram a vida e o nosso modo de a partir dela criarmos conhecimento e cultura. Não nos é fácil o alcance que se orienta entre acção e reacção, entre estímulo, sensação, emoção e sentimento. O tempo de passagem de um grau para os seguintes, escapa-nos por vezes e a articulação entre eles não ocorre sempre da mesma maneira. Talvez seja mais fácil observar nos comportamentos dos outros aquilo que escapa em nós mesmos. As artes performativas podem auxiliar-nos nesta exaustiva demanda.

A peça que fomos ver ao Teatro Meridional, e também por ser um solo, congregou o esforço artístico, as emoções e os sentimentos de Teresa Faria na transferência para Kiki van Beethoven e vice-versa.

Damásio, sem ter ido ver a peça que nós espectámos, refere com um exemplo engraçado como funciona o processo de cooperação: «Todavia, as estratégias cooperativas não esperaram pelo aparecimento de mentes sábias e sensatas. Tais estratégias, que são provavelmente tão antigas como a própria vida, nunca se manifestaram de forma mais brilhante do que no conveniente tratado celebrado entre duas bactérias: uma bactéria arrivista e atrevida que quis dominar uma bactéria maior e já estabelecida. O resultado da batalha foi um empate e a bactéria atrevida tornou-se um satélite cooperativo da bem estabelecida.» (Damásio, 2017: 320)

Verificamos então que os sentimentos criam sinalização permanente nas nossas vidas e colaboram directamente na criação e afirmação da nossa personalidade bem como na construção intelectual (por exemplo: a capacidade de uso da linguagem) que orienta as nossas motivações e realizações. A diversidade tipológica entre os seres humanos sempre resguarda o geral e o particular.

Para Damásio este processo desencadeia-se e prossegue através dos sentimentos e da sua ligação à cultura, às diferentes culturas.

Verificamos que os sentimentos como representação do estado da nossa vida nos permitem receber informação sobre aspectos, funções, momentos específicos que nos esclarecem sobre como está o nosso organismo num determinado momento. Tal acontece porque somos possuidores de mente e consciência. Bactérias, formigas, abelhas, amibas, lulas e chocos, por exemplo, são apenas metabolismo.

Gostaria de arriscar e com toda a humildade que talvez os sentimentos estejam associados ao princípio da consciência sem, no entanto, a ela se sobreporem. Quando pensamos nas bactérias, uma mais «atrevida» do que a outra, o que não impede que tenham finalmente encontrado um equilíbrio entre elas, não estamos sequer a pensar nem em sentimentos nem em consciência. Neste caso funcionou o metabolismo. Relativamente aos seres humanos na cadeia evolutiva este exemplo pode ter, e terá tido, repercussão. No entanto não se tornou o único modelo a considerar. Muito gostariamos (e também com Damásio) que o gesto cooperativo fosse sempre o dominante. Como estamos ainda em evolução, quem sabe se gerações futuras o irão alcançar.

 

Leituras recomendadas:

A obra de Damásio em estudo foi disponibilizada através de E-book. Poderá não coincidir a paginação com o volume em papel.

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água. Leitura orientada em função das sugestões feitas por Didi-Huberman.

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Capítulos 7 e 8, pp. 143-199.

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.