Nós e a linguagem científica

9 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

Estruturámos a nossa aula a partir do interior do cap. 8 – A construção dos sentimentos - do livro de António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas.

Continuávamos a querer saber mais sobre emoções e sentimentos, na sua dimensão adequada ao entendimento do assunto para leigos interessados. Por vezes o tipo de linguagem utilizado, tão necessário à descrição e interpretação dos fenómenos em avaliação, e à sua compreensão entre pares, não tem de nos forçar ou conduzir ao desconforto de uma leitura que nos obrigue a parar palavra atrás de palavra e que instale em nós a preocupação de que nos possamos perder perante vocabulário técnico e científico que naturalmente nos escapa.

Graças à sua sabedoria, Damásio encontra nesta sua obra, mais do que em algumas das anteriores, um desígnio a perseguir e que se adequa à divulgação das suas ideias e teses junto de um público leitor culto e intelectualmente curioso. Nós fazemos parte desses leitores e até somos capazes de discutir alguma matéria desta obra interrogando-nos sobre a sua eventual aplicação ao desempenho de actores e aos espectadores.

Ainda a propósito de linguagem, a ligação da Ciência com o Teatro não é uma novidade. Basta que recordemos o Fausto de Marlow, obra do séc. XV, ou a subsequente obra de Goethe, Fausto – uma tragédia (sécs. XVIII-XIX) em que a alquimia tem papel preponderante. Já no séc XX posso relembrar Os Físicos de Dürrenmatt, estreada em Lisboa em 1971, no Teatro Maria Matos. Posterior e mais recentemente, em 2005, no Teatro de Xabregas, a peça de Dürrenmatt apresenta-se e também em Famalicão, em 2017, voltando a Lisboa em 2018 e sendo representada por alunos da Escola Alemã. Por último, recordo de Michael Frayn, Copenhaga, sobre a teoria quântica e a relação entre os físicos Niels Bohr e Werner Eisenberg. Esta última peça foi levada à cena pelo Teatro Aberto em Abril de 2003.

Tudo isto para dizer que a familiarização com as linguagens das diversas áreas científicas pode ser um desafio tão grande para actores e espectadores, como o é, de certo modo, para nós que nos adentramos de forma ligeira pela neurociência, procurando ajustá-la às Humanidades. O nosso rumo não é laboratorial mas mantém paralelo com o dos cientistas numa vertente de experimentação.

Tomarmos conhecimento de que no nosso corpo funcionam dois sistemas nervosos, e não um (no meu tempo de escola só conhecíamos um), designados respectivamente pelos nomes de central e de entérico (que significa de facto relativo aos intestinos), ainda que o segundo sistema nervoso seja bem mais agigantado do que o primeiro, preencha um território que vai da boca aos órgãos excretores, e mantenha com os neurónios do cérebro uma relação intrínseca. (Damásio, 2017: 189)

Espacialmente falando e tendo em conta as execuções do sistema nervoso entérico no nosso corpo, somos capazes de nos aperceber de muitas das suas manifestações ao longo do trajecto enunciado. A sua longevidade em termos de espécie não nos permite acompanhar a sua história e evolução (não somos biólogos nem neurocientistas) mas permite-nos que tenhamos a consciência da sua presença e acção. Este fenómeno constante ao longo da nossa vida permite-nos ainda pensar que actores (abrevio aqui a lista artística e técnica) e espectadores no seu desempenho humano se confrontem com situações inoportunas que os ultrapassem em pleno desempenho dos seus papéis e que ponham em causa a homeostasia básica. A atenção dada ao corpo, neste específico contexto poderá beneficiar do exacto conhecimento da existência afinal de dois sistemas e não um como acreditámos em épocas não muito longínquas. Ambos os sistemas têm capacidade interactiva sem que seja posta em causa a independência de cada um deles.

É um pouco nesta linha que reforço o princípio de que o pensamento de Damásio também nos diz respeito. Neste livro, em particular, a defesa de que os sentimentos continuam a merecer a maior atenção possível no contexto das motivações e da articulação com a cultura, as culturas, é um referente essencial da sua investigação. Interrogarmo-nos com ele sobre o modo como temos consciência dos sentimentos, como nos emocionamos (ver também Didi-Huberman, passar os olhos por Darwin), como se estrutura a nossa personalidade, como nos desembaraçamos ou não de maus sentimentos, sem sermos capazes de dar atenção aos bons, e nunca de uma forma maniqueísta, como somos construtores de cultura e de arte, como nos confrontamos com sistemas de pensamento, como somos susceptíveis ou não a princípios éticos e morais, enfim, como conduzimos a nossa vida com os outros. Este leque geral tem o aval de Damásio: «As ciências, por si só, não podem iluminar a experiência humana sem a luz que provém das artes e das humanidades.» (Damásio, 2017: 17)

Procurarei na próxima aula dar exemplos do livro em estudo que façam sobressair o lado mais sensível do autor e que nos ajudem a melhor compreendê-lo.

 

 

Leituras recomendadas:

A obra de Damásio em estudo foi disponibilizada através de E-book. Poderá não coincidir a paginação com o volume em papel.

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água. Leitura orientada em função das sugestões feitas por Didi-Huberman.

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Capítulos 7 e 8, pp. 143-199.

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.