O que aprendemos com Jordi Savall e os seus colaboradores-artistas

25 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

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Hoje voltámo-nos a encontrar com Jordi Savall e os seus intérpretes, numa assistência ao concerto que temos em mãos e que nos levou por regiões longínquas do mundo, nomeadamente pelas Américas Central e do Sul, pela África subsariana e naturalmente pela velha Europa. O assunto que domina esta obra e que já é de todos conhecido, atravessa-se em milhares de anos de vivência da espécie humana como uma instituição criada pelo próprio homem a fim de aprisionar e usar muitos em benefício de uns poucos. Sabendo nós, aliás, que o ano de 1888, que criara como oficialização o fim da escravatura no Brasil, e sabendo nós também que ainda em 2007 a Mauritânia entendera oficialmente pôr fim à escravização de seres humanos, não é fácil prever o que está para além da legalidade em cada país, pois a traficância, a manutenção em cativeiro e o aproveitamento económico destas pessoas representa cada vez mais uma trágica realidade que nos assombra e não tem fim à vista.

Esta é a questão central de Rotas da Escravatura que artisticamente procura dar relevo através do canto, da dança, dos ritmos musicais, de uma encenação feliz e libertadora, de uma movimentação em cena organizada mas também aberta à natural irreverência, com que a representação em memória dos milhões de escravos se desencadeia como espectáculo criador daquilo que terá sido o único espaço expressivo e de liberdade interior de cada escravo. A exteriorização de uma limitada alegria transformava a vida destas pessoas naquilo que ninguém podia impedir. Celebrar esta evidência nos nossos tempos faz com que seja no domínio do exercício artístico que se projecta o fenómeno da liberdade individual e colectiva. Inúmeros são os relatos de época que invocam a História da Escravatura. O espectáculo cria uma estrutura narrativa, atribuída a um actor, que vai acompanhando e abrindo cada conjunto de canções e sua execução instrumental e de movimento. É nesta estrutura que podemos ancorar a informação mais detalhada que ajuda a enquadrar cada período, século após século, e que nos oferece uma visão alargada dos acontecimentos no contexto do espectáculo. É demasiado óbvio que o narrador seja negro mas também só assim poderia ser. Ele carregou na voz a tragicidade dos acontecimentos. Na versão portuguesa do espectáculo, em 2016, apresentada na Gulbenkian, foi o actor moçambicano e português, Alberto Magassela, que desempenhou esse papel.

Rotas da Escravatura procura cobrir o fenómeno esclavagista apenas nas regiões do globo que mais directamente estão associadas ao mundo ocidental. Outras paragens não são aqui consideradas, apesar de haver referência actualizada no livro de acompanhamento ao espectáculo (pp. 174-179, versão inglesa) sobre esta questão. Com os seus colaboradores originários de diferentes países e culturas, Savall intuiu a necessidade de fazer despertar consciências a partir da arte instrumental, vocal e de movimento. Acresce dizer, a título de exemplificação, que estar em cena neste espectáculo significava também escolher o que vestir, sabendo que esses trajes não pretendiam criar uniformidade.

Perante nós tocaram-se vários instrumentos europeus e não-europeus, cantou-se em várias línguas, vestiram-se trajes tradicionais de vários países e, no caso de europeus, usou-se o negro tradicionalmente escolhido para palco, nomeadamente para homens neste tipo de espectáculos. Dançou-se com alegria e espontaneidade. Os ritmos contagiantes operaram milagres. Quatro séculos da história da escravatura foram sendo narrados criando a integração necessária para uma ampla apropriação do assunto.

Leitura recomendada

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Pesquisa orientada a partir de índice de conceitos no final da obra. O conceito em estudo é homeostasia. A referência no volume em papel é a p. 374.

 

Obra em visionamento através de DVD:

SAVALL, Jordi 2015, The Routes of Slavery (1444-1888), K. M. Diabaté, I. García, M. J. Linhares, B. Sangaré, B. Sissoko, LA CAPELLA REAL DE CATALUNYA, HESPÈRION XXI, 3MA, TAMBEMBE ENSAMBLE CONTINUO.

Espectáculo apresentado ao vivo, a 17 de Julho de 2015, na Abadia de Fontfroide, Narbonne, França, no âmbito do X Festival de «Música e História para um Diálogo Intercultural», Aliavox. Tempo de duração: 2h08’30’’