Savall, um mestre homeostásico

30 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

OUTUBRO                                     4ª FEIRA                                          13ª Aula

 

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A pedido dos alunos, e de forma muito apropriada, retomámos o nosso trabalho de aproximação à obra musical de Jordi Savall, As Rotas da Escravatura, com o intuito de apreciarmos melhor algumas das canções que eram interpretadas, dando particular atenção às suas letras. Disponibilizadas as mesmas em tempo útil,

seleccionámos La Negrina / Gugurumbé, Los Negritos e Canto de Guerreiro. A escolha beneficiou da leitura de alunos, entre eles o Afonso Brites, que nos deu uma lição de dicção em castelhano.

Verificámos como estas canções e outras propõem um comentário de esperança, por vezes de malícia, mas também de realismo sobre pequenos episódios da vida quotidiana dos negros em África, dos negros em território europeu, dos negros colonizados em terras do continente americano.

A graça destas canções está por vezes associada a uma visão afectiva do que é cantado. Os títulos das duas primeiras canções unidas referenciam com os seus diminutivos nos títulos um sentimento de cumplicidade entre quem canta, quem toca e quem escuta. Este traço de identificação do próprio fraseado vem associado a uma mundividência cristã presente no desejo de visitar Belém e o pequeno Jesus.

Entendemos assim que a dimensão animista de religiões e rituais fundadores da espiritualidade africana dá lugar a várias intersecções entre diversos tipos de fé e crença cujos cruzamentos determinam a permanente função do catolicismo a operar sobre a liberdade de culto de cada um. Catequisar escravos mas também indígenas diversifica-se como estratégia de acompanhamento à transformação de seres humanos em puros objectos a explorar como mercadoria.

Curiosamente encontramos em La Negrina / Gugurumbé e em Los Negritos composta como uma ‘ensalada’ por Mateo Flecha “El viejo” (1481 -1553) ou Mateu Fletxa el Vell (em catalão, sua língua de origem) uma composição que ajuda a alcançar um certo espírito de entendimento entre senhores e escravos. Esta e outras canções não tinham de expressar apenas a realidade do novo continente já que o processo de escravização tem um tempo de estágio na própria Península Ibérica e em outros países europeus. Em Portugal e em Espanha nesta época havia um elevado número de escravos ao serviço das classes mais abastadas, associados naturalmente ao trânsito Atlântico.
La Negrina / Gugurumbé e Los Negritos constituem em linguagem técnica uma ‘ensalada’ ou ‘salada’ em português, nome que se dá a uma composição escrita para várias vozes e línguas.

https://www.youtube.com/watch?v=TZYcY_TmwVs

Ver o poema completo em:

https://es.wikisource.org/wiki/La_negrina

Mas a presença de língua africana na dupla canção, língua que não identificamos porque não a estudamos é, por um lado, sinal de estranheza perante outras culturas, embora, por outro lado, a sua aceitação no espaço da Península Ibérica não passasse de uma trivialidade necessária e que não fazia sentido questionar em termos gerais. Acresce dizer que a dupla canção ensaia diálogo no interior dos versos, propondo assim uma dramaturgia simples que procurava alegrar aqueles a quem se destinava e que assim recebiam entretenimento.

Se transpusermos para o novo continente o mesmo texto e a mesma música, é na presença da distância que encontramos uma resposta para a interpretação a que chegámos. A música, o canto e a dança são as artes primordiais através das quais os escravos suavizavam sofrimento e dor indescritíveis, geração após geração, na esperança de preservarem uma identidade.

Canto de Guerreiro (Caboclinho paraíbano) · Jordi Savall · Tradicional · Maria Juliana Linhares · Erivan Araújo (Brasil) é uma canção para uma só voz que já faz jus à realidade brasileira ancestral, em particular, a dos indígenas que viviam em harmonia com a Natureza antes da chegada dos colonizadores, e a quem uma tempestade causa surpresa, porque põe em causa o que antes fôra inquestionável. A aplicação da relação metafórica do mundo natural como um factor que pode ser tão bondoso quanto desestabilizador permite ler-se na tonalidade e melodia do canto de Juliana Linhares um espanto questionador. O diálogo da cantora com Tupã, o deus da Criação, transforma uma pequena canção num hino de perguntas-afirmações. Todas elas continuam a fazer sentido no nosso tempo.

O DVD visionado oferece inúmeros percursos através de uma observação e escuta de pormenor. A riqueza das relações entre intérpretes, a espontaneidade do movimento adequado à ordenação instrumental, a contra-cena constante sem pôr em risco o lugar de cada um não criam qualquer conflito no conjunto artístico. Nunca está em causa o rigor do espectáculo nem a sua intencionalidade primeira: dar a sentir a cada um de nós como um tempo raivoso e medíocre de exploração do homem pelo homem surpreende no seu modo belo e elevado. Nem o esforço das ciências cognitivas, no nosso caso aplicadas às Humanidades, e este DVD também é isso, conseguem regular os nossos comportamentos e convivialidade.

Os obstáculos não estão no caminho. São o caminho. (Séneca)

 

Obra visionada através de DVD:

SAVALL, Jordi 2015, The Routes of Slavery (1444-1888), K. M. Diabaté, I. García, M. J. Linhares, B. Sangaré, B. Sissoko, LA CAPELLA REAL DE CATALUNYA, HESPÈRION XXI, 3MA, TAMBEMBE ENSAMBLE CONTINUO.

Espectáculo apresentado ao vivo, a 17 de Julho de 2015, na Abadia de Fontfroide, Narbonne, França, no âmbito do X Festival de «Música e História para um Diálogo Intercultural», Aliavox. Tempo de duração: 2h08’30’’