Sentimentos e emoções: pássaros-cantores, nós e os culpados por um acaso

16 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

OUTUBRO                                     4ª FEIRA                                          9ª Aula

 

 

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Concluímos em modo provisório o trabalho realizado sobre pensamento de Damásio. A ele voltaremos ainda, a propósito da homeostasia básica e da homeostasia cultural, quando nos concentrarmos num pequeno estudo dedicado à etnia Bijagó que habita o Arquipélago com o mesmo nome e que integra o território da Guiné-Bissau. As suas formas de vida, usos e costumes, bem como crenças e celebrações religiosas e artísticas conferem a este povo um estatuto, talvez único no planeta, e que se configura a partir de uma relação de equilíbrio entre ancestralidade e contemporaneidade, sem que o específico padrão entre colaboração e conflituação, que a todos nos caracteriza, seja posto em causa.

Mas este será um tempo a chegar e ainda não faz parte dos nossos actuais trabalhos. Foi por isso que entendi que fecharíamos simbolicamente esta parte do nosso programa com a leitura de um pequeno texto, incluído no catálogo da exposição mais vasto que o céu – Cérebro, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Março-Junho deste ano e que nos permitiria tomar conhecimento do comportamento vocal e de sociabilização de alguns pássaros. Essa particular característica que algumas aves possuem de usarem a voz para comunicarem entre si socialmente, estende-se ainda a outras situações que dão conta, por exemplo, da presença de predadores que devem ser afastados, mas também o canto pode contribuir para a demarcação de território. A actividade vocal existe ainda e sobretudo para estabelecer relação de «amor» entre machos e fêmeas genericamente. Se nos casos anteriores estes animais elegem a voz e o canto como formas de interacção social, o acasalamento tem particular interesse por invocar experiência emocional e de sentimento associada à procriação. A atracção física e afectiva entre dois seres destas espécies e subespécies protagoniza qualquer coisa que a nós, humanos, também diz respeito. Em todo e qualquer destes casos entendemos que se trata primordialmente de instinto de sobrevivência, como aliás acontece connosco. No entanto, o acasalamento pressupõe a continuidade da espécie e nessa medida ganha uma distinção própria no contexto do uso da voz e das canções.

Este fenómeno observável entre as aves pressupõe que haja vários tipos de canções e pressupõe ainda que o entendimento entre os pássaros se faça por aprendizagem das canções de outros pássaros de quem se avizinhem, o que significa que existe um sentimento de sociabilização e partilha usado por todos os que têm estas capacidades. O pequeno texto que vos li vai ainda mais longe admitindo que há pássaros, como o periquito Tuim-santo, que assinam o seu repertório de canções de forma individualizada, permitindo que certos pássaros aprendam a cantar uns com os outros, uma vez mais dando origem a uma relação de sociabilização notável. Afirma-se na Parte 3 deste catálogo (Oliveira, 2019: 87) que a individualização do canto corresponde à atribuição entre os humanos de um nome próprio, aquele que recebemos por baptismo e registo notarial. Entre os pássaros quem tem essa tarefa é quem passa testemunho de geração em geração. Amorosamente falando, a distinção através da voz e do canto estabelece a individualização de cada pássaro-infante. Este aprenderá a autonomia, treinando o vôo, a procura de alimento e a identidade através de um processo empático a que se acrescenta, nestes pássaros-cantores, a criação de musicalidade com nome.

Assim dito, penso que nos reconhecemos em alguns traços característicos de certos destes pássaros. Como acontece com todas as espécies, incluindo mamíferos e primatas, a sobrevivência de cada espécie terá traçado o seu destino como defendeu Charles Darwin.

Em modo de aproximação a Damásio e ao capítulo 7 – Os afectos - do seu livro A estranha ordem das coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, verificámos que a probabilidade de referenciar uma vida afectiva entre os pássaros não só é real como constitui aprendizagem para os seres humanos. Também os pássaros se abrem ao processo de regulação que sobre eles impende como forma de criar constância num viver equilibrado. Falo da homeostasia. Terão eles disso consciência? Não sabemos. Em princípio não. Mas quem sabe se daqui a um tempo mais ou menos dilatado viremos a mudar de opinião.

Certo, certo é que neste caso, determinados pássaros mas também outros animais, que vocês tão bem conhecem, demonstram possuir um mundo emocional e artístico invejável.

Para todos os casos em geral e igualmente entre os humanos existe a consistente vontade de pugnar pelo equilíbrio entre a expressão do nosso sentimento pessoal (adiante falaremos de sentimentos) que é extensível à família que integramos, aos amigos que temos e à sociedade de que fazemos parte, podendo esta ser alargada a outros agregados humanos pelo mundo fora. Este processo de entrecruzamento é teoricamente compreensível mas de difícil execução. Todos sabemos como os conflitos entre humanos estão sempre a recrudescer. E se em termos lógicos esta realidade preceptiva de reconhecimento afectivo evolui do mais pequeno e mais próximo para o mais distante e desconhecido, embora em casos específicos e excepcionais - guerras, fenómenos de extermínio que determinam movimentos migratórios com desestabilização familiar e de proximidade -, este modelo deixa de ter aplicação por excepção. A verdade é que o nosso percurso afectivo se orienta desde a pré-natalidade, natalidade e infância, em famílias estruturadas, um pouco à semelhança dos pássaros, dos chimpanzés, dos golfinhos, entre outros.

Aquilo que pudémos apurar acerca do cap. 7 mas também do cap. 8 do livro em estudo resulta de reflexão de Damásio sobre emoções e sentimentos. Ele próprio tem a convicção de que estas manifestações na mente e no nosso corpo não são confundíveis mas são sequenciais. Apesar disso, ambos derivam das relações entre o interior e o exterior de cada organismo que determinam o estado de individuação de cada um.

As relações estabelecidas nestes dois circuitos afectivos agem através de imagens em função do presente de cada indivíduo mas também a partir dos fragmentos de memória individual e colectiva.

Refere Damásio que é no «mundo paralelo dos afectos», a especificação de funcionamento da nossa mente em relação directa com o nosso corpo, que se encontram os sentimentos de cuja presença estamos alheados por condição.

Operam em consonância ou alternância na nossa mente:

a) Sentimentos espontâneos ou homeostáticos, aqueles que são reguladores da nossa vida básica e que influenciam o nosso comportamento. Igualmente são de considerar b) Sentimentos provocados, aqueles que resultam de experiências de emoções decorrentes de múltiplas situações, e recordaria aqui uma longa lista: alegria, tristeza, medo, fúria, inveja, ciúme, desprezo, compaixão, admiração (nomeação de Damásio, 2017: 146), a que acrescentaria a culpa, a ansiedade, o luto, a empatia, o amor (segundo Frazzetto, 2014).

 

Escolhemos para leitura em voz alta e discussão em aula a peça de teatro de Heiner Müller, O Horácio (1968), ainda uma peça didáctica segundo a teoria e a prática brechtianas, com o objectivo de salientarmos nela a complexidade da presença do sentimento de culpa e das suas variantes que são criadas por uma dialéctica entre o que é um vencedor e ao mesmo tempo um vencido. Esta dicotomia percorre toda a peça e determina a simultaneidade da compreensão (ou incompreensão) de como uma só espada pode honrar um vencedor e fazer dele um assassino.

Prosseguiremos a análise desta peça considerando posteriormente o que Giovanni Frazzetto defende no capítulo sobre a culpa, do seu livro Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções

 

 

Leituras recomendadas

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Capítulos 7 e 8, pp. 143-199.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 57-97.

MÜLLER, Heiner 1982, A Missão e outras peças, tradução e posfácio de Anabela Mendes, Ilustrações e capa de José Castanheira, Lisboa: apáginastantas, pp. 9-20. Os alunos receberam versão posterior revista, usada no espectáculo homónimo, Coimbra: Escola da Noite, 2003.

OLIVEIRA, Rui (curador da exposição) 2019. Mais vasto que o céu – Cérebro, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, p. 87. Indicação para efeito de menção.