A cor das emoções

5 Novembro 2020, 15:30 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

NOVEMBRO                        5ª FEIRA                               10ª Aula

 

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Aulas presenciais TP1A/TP1B

 

Voltámos à expressão particular do rosto no contexto também particular do filme Shirin de Abbas Kiarostami. O espectáculo que contemplámos joga às escondidas com sentimentos e emoções. E nós colaborámos nesse jogo por ignorância e desatenção. Manifestámo-nos solidários, diria mesmo empáticos, com rostos colaborativos de mulheres e só de mulheres que aceitaram sentar-se numa primeira fila de um cinema improvisado, onde havia em fundo homens e outras mulheres. Destes os rostos eram fugazmente iluminados em travellings de mão sempre da esquerda para a direita. Importava que nós como espectadores de espectadoras concentrássemos a nossa atenção nas suas reacções à narração de uma história.

E afinal o que viam essas mulheres que tanto as comovia? Nada.

Nós e elas escutávamos uma história muito antiga da tradição iraniana que era representada como se fosse uma peça radiofónica. Tornava-se esta história tão real, não só por ser uma trágica história de amor, mas também porque havia um cenário acústico, uma sonoplastia que tornava os acontecimentos, os pensamentos e as interpelações num fio consequente de desgraça credível a que nos afeiçoámos.

Qual era então a linha de fronteira entre reagir de forma natural ou representacional?

Para além de possível resposta a esta questão, o acesso ao making of do filme ajudará à compreensão de como uma obra de arte oscila entre uma realidade que lhe é intrínseca e a sustentação dos meios de que dispõe. Até ao visionamento do making of Taste of Shirin (21’) de Hamideh Razavi não teremos acesso aos bastidores do trabalho de Kiarostami e das suas equipas artística e técnica que aceitaram fazer um filme sobre o antigo e o contemporâneo do Irão a partir do ponto de vista de mulheres. E esse ponto de vista dissemina-se, apenas e tão só, na expressividade de rostos e em vozes, através dos quais são captadas as emoções. Cada mulher, diz Kiarostami, “deverá ser ela mesma.”

Poderemos então explorar com Kiarostami muitas das possibilidades de querermos tornar visível, palpável, o que é invisível e se nos escapa. Assim nos manteremos atentos a uma narrativa que nos acompanha do princípio até ao fim do filme, ao mesmo tempo que nos devolve reacções de espectadoras que acorrem às suas próprias histórias numa simbiose com o que escutam.

Dito em farsi, com legendas em inglês, o filme conta-nos a epopeia antiga iraniana do amor da princesa Shirin da Arménia e do seu amado Khusraw do Irão, acrescido do amor profundo e desinteressado de Fahrad, o escultor, por Shirin. Esta cadeia relacional está ferida de morte desde o seu início. Pesadelos e sonhos de Shirin, a sua natureza sensível e sentimental são anúncio de uma tragédia que se repercute no desenvolvimento dos acontecimentos. Que amor é este que mata todos os directamente implicados?

É a esta narrativa poética e perturbadora que damos nós corpo através de imaginação despertada por audição. É uma das nossas formas de apropriação. Este é o processo afecto à ideia de peça radiofónica de que muito poucos já terão memória. Partilhamos assim um mesmo universo com as actrizes presentes na sala de cinema que se sujeitam ao mesmo desafio que nos é proposto sem que nos demos conta disso.

Os rostos que contemplamos não são rostos naturo-artísticos como os que vimos no espectáculo de Kathakali e que requerem longo treino de domínio muscular e concentração mental. Os rostos que não nos olham nos olhos porque observam uma história que não vêem, adquirem uma consciência artística sendo naturais.

 

Filme visionado:

KIAROSTAMI, Abbas, Shirin, DVD, 2008, em farsi com legendas em inglês, 91 min.