Dos bastidores de Shirin à ribalta de Chicago

19 Novembro 2020, 15:30 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

NOVEMBRO                        5ª FEIRA                               14 Aula

 

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A nossa aula teve como função tentar arrumar a casa que se tem mostrado desordenada devido à necessidade que todos temos de cumprir o modelo misto de ensino-aprendizagem a que estamos sujeitos e que nos tolhe.

 

Fizemos assim o visionamento de Taste of Shirin (2008), o making of do filme Shirin (2008), sob a forma de documentário de trabalho, da autoria de Hamideh Razavi. Através deste conjunto de imagens, elas próprias alvo de uma sequenciação que permite abranger as propostas de Kiarostami sobre como se devem colocar as suas actrizes num espaço que vemos aparentado com uma sala cinema. Ali entre meia dúzia de cadeiras, os rostos devem transmitir o que a alma sente.

Tomamos consciência de como verdadeiramente se constroem as sequências do filme que é tudo menos aquilo que vemos e ouvimos.

Kiarostami organizou estrategicamente o seu filme, criando alguns quiproquós ao espectador que vai ao cinema para se distrair e passar uns bons momentos. Shirin dificilmente poderá ser interpretado por esta pauta e é por isso que há espectadores entediados e a perguntarem-se qual o interesse de passar quase duas horas a olhar para rostos de outros espectadores? A história é contada e representada através de vozes e na versão final com iluminuras, o que não chega para quebrar a eventual monotonia do filme. A nós interessa-nos tudo: a história de amores persas multiseculares; a escuta de uma língua que não compreendemos mas que nos faz chorar e rir como a nossa, independentemente das legendas; uma partitura de sons que cria exactamente o ambiente de que a história precisa; uma plateia de espectadoras e alguns espectadores esparsos cujos rostos contemplamos.

O que terá levado Kiarostami a considerar este filme como o seu último, mesmo continuando a realizar outros, como consta do livrinho que acompanha o DVD? Shirin o filme-testamento. É como se tudo o que constitui a essência de uma película perdesse a importância perante a energia viva dos que a vêem. E isso não faz parte dos códigos a que nos habituámos e continuamos habituados quando vamos ao cinema. A presença real do espectador na sala de cinema não importa ao filme que está a ser projectado.

As actrizes iranianas a meio-corpo são as suas próprias histórias e a de Shirin porque os desgostos de amor são universais. Com elas está Juliette Binoche, de cabeça coberta, mas com alma europeia. Será que a sua alma se confunde com as almas das mulheres iranianas que como ela são actrizes? Este pequeno gesto de colocar a actriz francesa num espaço que lhe não é familiar confere ao filme de Kiarostami um simbolismo único, tão única quanto é a ideia que torna substantiva a amizade profunda que une realizador e actriz. E mais se pode dizer acerca da legitimidade de atribuir à história de Shirin um carácter absoluto que toca de maneira distinta cada uma e todas as mulheres. Espelhamo-nos nos rostos das actrizes, nos seus gestos e movimentos pontuais que nos dão a ver o que elas sentem, mesmo que preparadas para tal.

Ser espectador de espectador filmado pode ser uma forma de espreitarmos por uma fresta sem voyeurismo. Todos, essas espectadoras, pontuais espectadores de rectaguarda e nós, passaremos a conhecer melhor os nossos papéis. Todos procuramos o que não vemos naquilo que vemos. Todos nos interrogamos sobre um filme que não existe como os demais. 

 

Filme visionado:

KIAROSTAMI, Abbas, Shirin, DVD, 2008, em farsi com legendas em inglês, 91 min. acrescido do making of de Hamideh Razavi, 27’.

 

Comentámos ainda de memória o musical Chicago e as suas características espectaculares, decorrentes de desempenho profissional completo. O main stream americano, de onde provém a longa tradição de musicais desde as primeiras décadas do séc. XX só pode ser chamado à comparação com o que Diogo Infante encenou, a partir de uma leitura histórica de apropriação como modelo. E exactamente por isso, valorizarmos o trabalho do encenador português, dos seus artistas e da sua equipa técnica corresponde ao reconhecimento por um trabalho profissional que nos agrada, estimula e com o qual teremos criado empatia. As salvas de palmas no fim de cada quadro expressam o agrado pelo que vemos e sentimos, embora essa reacção se aplique quase exclusivamente ao desempenho artístico em dança e representação teatral, ao enquadramento musical, ao canto, aos figurinos e décors. A questão da empatia atraiçoa-nos porque nos faz aplaudir mulheres assassinas depois de cometidos os crimes. O musical Chicago não é um tribunal, ainda que esse também esteja representado. O espírito do espectáculo corresponde a uma articulação de episódios de vida de uma classe social à margem e que exibe mecanismos de sobrevivência nem sempre lícitos. É justamente essa dimensão ilegal e clandestina que se torna tão apelativa para espectadores que não conhecem nem praticam actos interditos. Existe uma atracção pelos bas fonds que não frequentamos, próprios de todas as sociedades urbanas, que se exibem perante nós como ficção. Entre nós e a realidade atravessa-se um espectáculo que aborda coisas terríveis de uma forma leve e divertida, implodindo e reajustando momentos de faca e alguidar através de coros e coreografias, cenários e luzes ajustadas que nos transportam num vórtice para novas fases da intrincada história em representação. As estratégias do musical são simples e fáceis de seguir. O seu discurso é por todos compreendido. Não são as nossas histórias, mas também poderiam em tese sê-lo. Estamos ali, no Teatro da Trindade, para nos deixarmos encantar pelo brilho das luzes, pela música de John Kander que já teremos escutado no cinema, que talvez tenhamos ouvido na rádio e que músicos competentes tocam para nós. Estamos ali para nos deixarmos seduzir por corpos esbeltos que dançam à nossa frente em sequências que nos fazem mexer nos assentos. Estamos ali para nos deixarmos manipular a todo o vapor. Que interessante pode ser um espectáculo!

 

Deixámos ainda o espectáculo O mundo é redondo de Gertrud Stein pendente e à espera de conversação. A nossa convidada Carolina Campanela, actriz nessa produção, está em quarentena profiláctica.

 

Sugeriram-se dois espectáculos ainda até ao fim do semestre:

A Ratoeira de Agatha Christie no Teatro Armando Cortês e  Só eu escapei de Caryl Churchill no Teatro Aberto.