Emoções limpadoras entre «pathos» e «logos»

13 Outubro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

 

OUTUBRO                                       3ª FEIRA                                          4ª Aula

 

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Iniciámos a leitura orientada da pequena conferência de Georges Didi-Huberman, Que emoção! Que emoção?, a que  já antes acedêramos de forma breve como objecto de estudo. Recordamos agora o que então dissemos acerca do ponto de vista fundamentado do seu autor, Georges Didi-Huberman, de que o estudo das emoções ao longo dos tempos foi sendo relegado para um lugar existente e prevalecente, embora obscuro e secundário, em benefício de um discurso argumentativo, estruturado, comprovativo de que, segundo o historiador de arte e filósofo, se privilegiara o logos sobre o pathos. 

O assunto da conferência, apresentado em 2013 e publicado dois anos depois, era por isso sobre emoções. O próprio título desse escrito - Que emoção! Que emoção? - anunciava-se já como um instrumento de trabalho curioso. Através da expressão: Que emoção! consagrávamos a nossa capacidade de espanto, enquanto Que emoção? abria-nos o campo das perguntas. Afinal de contas ambas as formulações pretendem justificar que logos e pathos são uma unidade integradora. Esta sinalização torna-se portadora de um efeito directo que considera a capacidade de nos interrogarmos sobre o que é difícil de responder enquanto nos emocionamos. Qualquer coisa de parecido acontece quando nos apaixonamos. Escrever sobre a paixão só se torna possível quando o nosso estado emocional deixou de nos fazer transbordar de nós mesmos.

E porque as emoções, ainda que estudadas e trabalhadas desde a Antiguidade Clássica, nunca foram o campo especulativo mais apetecível do pensamento ocidental até meados do séc. XVIII, e porque, como dizia Darwin, segundo Didi-Huberman, «a emoção é considerada um estado primitivo» (Didi-Huberman, 2015: 15), daí decorrendo talvez o fraco interesse por elas, não deixa de ser verdade que, por exemplo, as lágrimas propiciam um directo benefício a todos nós e que o seu primitivismo continua, e certamente continuará, a integrar-nos como seres individualizados e como espécie. Tal é o caso que vem na sequência de observação e análise da expressão emocional em animais e seres humanos, levado a cabo por Darwin, e que fizeram o biólogo e naturalista escrever: «a secreção de lágrimas serve para aliviar o sofrimento. E quanto mais forte e histérico for o pranto, maior é o alívio que proporciona – de acordo com aquele mesmo princípio que nos diz que a contorção do corpo, a emissão de gritos penetrantes e o ranger dos dentes são acções que produzem alívio quando se está sob o efeito de uma dor muito forte.» (Darwin, 2006: 161) Não devemos descurar como é óbvio as lágrimas por alegria.

Aqui nos podemos recordar de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), o dramaturgo alemão e estudioso do Teatro, que na sua Dramaturgia de Hamburgo (1767-1769) defende um princípio que atribui ao efeito de catarse no espectador, uma condição de alívio fisiológico semelhante ao de uma purga. O corpo reage na sua manifestação de dor interior através da expressão de emoções que nos habitam (os fluidos lacrimais, os suspiros, a intensidade da voz, os movimentos corporais mais intensos e, por vezes, descontrolados) e que resultam em acto de libertação perante aquilo a que assiste. E é neste contexto que Lessing, a propósito da tragédia afirma o seguinte: «[…] Como os adversários de Aristóteles se não aperceberam de quais as paixões que ele pretendia ver purificadas em nós através da piedade e do temor na tragédia, erraram, naturalmente no que se refere a essa purificação.» (78ª Secção, 29 de Janeiro de 1768) O termo alemão usado neste caso é Reinigung que significa originalmente limpeza.

Verificamos assim que o carácter terapêutico das lágrimas não deixa por isso de manifestar uma outra componente comportamental associada a estados emocionais e a sentimentos. E é talvez por isso que a pequena conferência de Didi-Huberman nos pode interessar.

No final do seu livro aqui citado, Darwin diz o seguinte: «Vimos também que em si própria a expressão, ou a linguagem das emoções, como há quem lhe chame, é sem dúvida importante para o bem-estar da humanidade. Compreender, na medida do possível, a fonte ou origem das várias expressões que a todo o momento presenciamos no rosto dos homens que nos rodeiam, ou até nos animais domésticos, há-de ter necessariamente grande interesse para nós. Por todas estas razões, podemos concluir que a filosofia desta questão merece toda a atenção que lhe tem sido dedicada por alguns excelentes observadores, e que o seu estudo merece ser aprofundado, especialmente por algum fisiólogo competente.» Darwin escreveu estas frases em 1872, no fim de um belíssimo livro, com uma segunda edição em 1889. Talvez hoje o lugar do fisiólogo, a que Darwin se referia, seja ocupado pelos neurocientistas e antes deles pelos psicólogos, psicanalistas e outros estudiosos do comportamento humano.

Mas não sendo nós neurocientistas nem desempenhando quaisquer outras profissões que se ocupam do estudo do cérebro, não estamos tolhidos da capacidade de observar, muito distinta da capacidade de olhar e de ver.

De certo modo o que Didi-Huberman procura demonstrar na sua pequena palestra é justamente qualquer coisa de que talvez não nos apercebêssemos assim com tanta facilidade: nos pratos da balança da reflexão europeia e ocidental, as emoções não têm, até ao final do séc. XIX, um peso muito expressivo. Poderemos invocar a pujança de um Século das Luzes que se ocupou em defender o pensamento ordenado e sistemático que tinha por princípio autonomizar o ser humano na sua dimensão prática, política e espiritual. Estamos de acordo em termos gerais com esta perspectiva de criar condições e incentivar a saída do ser humano «de um estado de menoridade», como dizia Kant. Mas entendemos que a saída desse «estado de menoridade e servilismo» só se alcança na plenitude das capacidades de cada um. É por isso que dar particular atenção à expressão das emoções, e cada vez mais neste nosso século, deveria ser uma prioridade, tal como preconizava Darwin, a propósito do insuspeito bem-estar para o qual «a linguagem das emoções» poderia contribuir.

As emoções, os estados emocionais vários que nos habitam, na sua condição simples ou mais complexa, são o fundamento primeiro das artes, da ciência, da filosofia.

E é por isso que Didi-Huberman escolhe exemplos das artes plásticas, da fotografia e do cinema para demonstrar a sua presença em objectos que ele nos ajuda a descobrir. Tal exercício poderá ser sempre feito por nós em relação às Artes Performativas, área em que talvez sejamos mais experientes do que o próprio historiador de arte francês.

Esta conferência destina-se a abrir-nos horizontes sobre a história geral do conceito emoção e sobre a capacidade de observarmos o mundo sensível, de nele participarmos e de o interpretarmos. Naturalmente que o próprio estado observacional pressupõe que façamos juízos de valor enquanto apreciamos o que nos é dado observar.

 

Leituras recomendadas:

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água.

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

 

A gravação premeditada de aulas retira às mesmas a espontaneidade de participação.