O que nos ensinam os rituais

26 Novembro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

NOVEMBRO                        5ª FEIRA                               16Aula

 

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Preparação da próxima saída de campo.

Assistência ao espectáculo Só eu escapei de Caryll Churchill, com encenação de João Lourenço. Teatro Aberto, dia 17 de Dezembro, às 19:00.

 

Tivemos a oportunidade de ver o filme Müdigkeitsgesellschaft (Sociedade do Cansaço) da realizadora alemã Isabella Gesser (2015), 60’. Este filme documental acompanha o trajecto do filósofo sul coreano Byung-Chul Han entre Berlim e Seul. A viagem realizada não é um périplo turístico, mas um processo de deslocação orientada como reflexão interior.

Se é verdade que o filme tem directa inspiração na obra escrita por Han, e já traduzida para português, A Sociedade do Cansaço, 2014, Lisboa: Relógio D’Água, não é despiciendo pensar que as sequências que passamos a acompanhar na peugada do autor são reveladoras das suas motivações afectivas, das suas preferências cinematográficas, dos seus eleitos na filosofia e no contar de histórias, a um tempo reflexo da troca dos Estudos sobre Metalurgia pelos Estudos Filosóficos e Literários. E a outro tempo pela aprendizagem de se enraizar em pequenos espaços que não só favorecem a proximidade e a ritualização da vida, como firmam a reciprocidade de estar-em-casa como se está-no-mundo.

É nesta mundividência que se inspiram os interesses do autor, inserindo no filme de Gesser o imaginário infantil e suas liberdades naturais, como acontece com as sequências de abertura do filme As Asas do Desejo (Wim Wenders/Peter Handke), um filme dentro de um filme por amor e citação e, mais importante ainda, como uma linguagem de que Han se apropria ao saber de cor, isto é, com o coração, como se alcança a estabilidade interior a partir de um tempo usado e vivido com emoção e liberdade.

«Quando a criança era criança e não sabia que era criança e andava com os braços a balançar, e queria que o ribeiro fosse um rio e o rio fosse uma torrente e este charco o mar. Quando a criança era criança e não sabia que era criança, tudo estava cheio de vida e a vida era uma só. Tudo estava cheio de vida e a vida era sem-par. Quando a criança era criança não sabia como opinar. Não tinha hábitos, sentava-se sempre com as pernas cruzadas, saía a correr, sentava-se sempre com as pernas cruzadas, saía a correr, com os cabelos em desalinho e não fazia pose quando era fotografada.» (citação de abertura do filme As asas do desejo, 1987, de Wim Wender e Peter Handke, escrita a tinta sobre papel ao ritmo da própria escrita)

 

https://www.google.com/search?ei=NoPBX7z1LMLWaripg9AD&q=Asas+do+desejo+filme+completo+legendado&oq=as+asas+do+desejo&gs_lcp=CgZwc3ktYWIQARgDMgQIABBHMgQIABBHMgQIABBHMgQIABB

 

O texto de Handke não é um conto maravilhoso/aterrador, como eram e são aqueles que integram as compilações dos Irmãos Grimm. O texto de Handke é uma lengalenga que se escreve porque se diz e nela está presente uma forma de ritualização que equilibra.

Não conhecemos o universo narrativo que terá iluminado a infância de Han. Sabemos do seu gosto adulto. Sabemos ainda da sua aproximação à filosofia taoista que vem através de cerimónias religiosas milenares que Gesser filma como contraponto a uma sociedade global desamparada, despedida de si, onde se morre de exaustão e de sentimento de culpa e onde não cabem mitos nem lendas nem existe imaginário que possa compensar o não-estar-em-casa-no-mundo.

O filme de Gesser espraia-se ainda pelo testemunho de um velho monge taoista que caminha há muito sem destino, sem cansaço. Como a criança de Handke ele sonha e cumpre o caminho que lhe cabe. Canta-o em caracteres que desconhecemos.

A articulação de memórias presentificadas pelo discurso confessional a par da visualização de lugares onde os rituais se cumprem espaçada e lentamente, ao ritmo de passadas, cativam-nos. Descemos na cidade de Seul e enfiamo-nos em pequenos nichos sobreviventes e ainda preservados de épocas em que os rituais eram apelo para toda a população.

Tal como na metrópole alemã, em Seul também há pequenos lugares aconchegados, uma espécie de ilhas, de onde o mundo à volta se aliena porque cegou. Olhar de dentro para fora já não implica que se olhe de fora para dentro. É de dentro para dentro que nasce o para fora do olhar.

A figura do caminhante, que está neste filme associada à caminhada da vida e da morte, entrelaça a discursividade directa do autor ao seu deambular orientado por um desígnio. Talvez não tanto a denúncia – as cidades tornaram-se iguais entre si e as pessoas replicam-se – mas a construção de um puzzle a que estão sempre a faltar peças e a sobrar peças.  Afeiçoamo-nos a uma figura esguia, ténue, tímida, que modula em tom baixo um presente insurrecto cheio de disformidades. A sua tonalidade, por estranho que pareça, cria repouso e torna o tempo demorado.  Este tipo de guia não vem nos manuais turísticos. Ele repete partes dos percursos, destaca outras. Os olhares mudam. Na escolha do caminho, dos caminhos, há repetição e renovação. Os takes à beira do rio que atrai os suicidas espelham a consciência pesada de uma sociedade que muda a orientação informativa com a leviandade com que se entrega a exercícios sobre como treinar a morte.  Repetir um percurso, ritualizá-lo, assim reconhecendo nele por desejo o que já se conhece, não é a mesma coisa do que ter um percurso que se nos anexa dia após dia, por toda uma vida, e porque a ele nos deixamos obrigar.

Sendo este filme um diagnóstico muito atento e lapidar sobre A sociedade do cansaço, ele é também uma manifestação de sobrevivência de formas de ritualização sobreviventes.

Encontramo-nos com quotidianos ritualizados que se expõem em objectos antigos, em ruínas, em lápides memoriais, em danças e brincadeiras, em canções, em música de outros tempos (o pequeno agrupamento rock à maneira de Elvis Presley), em pacíficas conversas em templos, ao som de um gong que termina o serviço religioso. Tudo isto exprime o que a sociedade cansada não consegue engolir.

No final do filme voltamos à figura do caminhante, um motivo central, diria mesmo recorrente.

Ao atravessar a pé o espaço vazio do antigo aeroporto de Berlim - Tempelhof, Han atravessa o nacional-socialismo, a História alemã e a II Guerra Mundial. Nada existe hoje dessa época e desse lugar que foi uma estrutura fundamental da Blitzkrieg, da preparação de aviões e que no final da guerra serviu de abrigo aos berlinenses. Esse lugar é hoje o maior parque da cidade desde 2008.

É no espaço vazio e na amplitude do lugar que o filósofo concentra o seu discurso. O vazio é necessário para se alcançar o pleno. E vice-versa.

 

Leitura recomendada

HAN, Byung-Chul, 2020. Do desaparecimento dos Rituais – Uma Topologia do Presente, Lisboa: Relógio D’Água.

 

Filme visionado

 

Isabella Gesser, Müdigkeitsgesellschaft in Seoul/Berlin (2012-2015), 60’ 16