Repetição, ritualização, emoção subtil

6 Outubro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

É justamente em relação a esta vertente tão singular que o espectáculo de Kathakali pode ser valorizado como potenciação do natural em nós.

Na aprendizagem artística das características e capacidades musculares do rosto de cada um e sua expressividade orgânica são recuperados movimentos e detalhes específicos que resultam de um treinamento de muitos anos e que podem desenvolver e sustentar formas de linguagem pantomímica especialmente adquiridas para fazer falar o rosto. Este torna-se ainda mais evidente através da pintura artística que lhe é aposta. Só por si o rosto conta uma história, comenta-a, exibe-a, propõe interacção com outros rostos.

A complexidade do Kathakali não advém apenas da expressão do rosto dos actores-bailarinos que temos de ler e interpretar, existindo ela também no movimento das suas mãos, que contam a mesma história que o rosto conta, e que são seguidas de perto pelo movimento dos olhos. Através de codificação de linguagem gestual baseada em mudras (24 diferentes posições básicas das mãos), os actores-bailarinos revelam um enorme controlo na articulação corpo-mente. Em boa verdade estamos perante um corpo com identidade orgânica ao qual é pedido que não use capacidades vocais, uma das principais fontes do prazer artístico e de comunicação para um actor.

A duração do trabalho preparatório destes actores na execução dos diferentes tipos de movimento que executam pode durar entre 7 a 9 anos e inicia-se, como disse antes, quando os futuros actores são ainda crianças.

Confrontámo-nos, assim, com a expressão das emoções através de rostos e corpos, ao mesmo tempo naturais e codificados por treinamento, e experimentámos o que isso implica pra o espectador ocidental na separação de movimentos musculares naturais e aprendidos. Este processo terá sido alvo de um jogo mental que exige esforço, embora a composição geral das personagens possa sobre nós exercer fascínio pela sua invulgaridade exterior.

A matéria narrada através de actores que não falam é reduzida ao estritamente necessário para a compreensão da história e é alvo de permanentes repetições como que a justificar hábitos ancestrais de sociedades iletradas. Deste ponto de vista as estratégias próprias da narração oral (narrar e cantar) continuam a sobreviver numa sociedade e numa cultura de elevado desenvolvimento tecnológico.

É favorável a esta representação o facto de as histórias que se mostram serem do conhecimento geracional dos espectadores indianos, uma espécie de Ilíada e Odisseia com que poderíamos estabelecer comparação, ainda que tanto num caso como no outro serem obras não concebidas para imediata representação. A cultura transmitida pelo Kathakali ainda hoje provém do longínquo nascimento da Índia através de lendas e mitos incorporados em obras como o Mahabharata ou o Ramayana, livros sagrados da cultura hindu. Esta vantagem do conhecimento de múltiplos episódios que relacionam deuses e humanos torna-se para os nativos numa abertura de espaço mental para uma mais intensa apreciação dos corpos em movimento, para o acompanhamento com instrumentos de percussão operado pelos músicos, para a mesma história que os cantores-narradores interpretam, para finalmente a exuberância dos figurinos e das máscaras em cena. Tudo é presença potenciada. Uma arte total que pode entediar e deslumbrar ao mesmo tempo.

 

Notas soltas - RELEITURA

Abrimos o nosso programa com um breve estudo de caso que valoriza a tradição, sem pôr em causa a inovação, e que alerta para o progressivo desaparecimento de práticas e comportamentos ritualísticos nas sociedades contemporâneas. Esta será uma linha de investigação que gostaria de ver continuada.

 

O programa oficial publicado em Junho não me deu espaço para explicar o que pretendo fazer convosco.

Era assim que estava escrito esse programa.

O espectáculo artístico enquanto acontecimento agregador de aprendizagem: como, quando, onde e porquê?

Expressa este programa uma dupla vontade reflexiva e afectiva de analisar, problematizar, avaliar e experimentar a condição de espectador enquanto sujeito individual e membro de um colectivo. Esta componente do programa, que nos fará sair para vermos espectáculos e outras manifestações culturais estará sempre dependente do que for possível fazer no actual contexto das nossas existências. Um espectáculo ao vivo pode tecnologicamente dar lugar a uma versão desse mesmo espectáculo que ocorre por mediação, mas não é seguramente a mesma coisa. Assunto a discutir.

Paralelamente a esta proposta de trabalho aqui avançada salientaremos o princípio da sensibilização do acto de espectar como manifestação cívica e cultural, fruição estética e compreensão política do espectáculo. Acima de tudo desejamos descobrir como o espectador age e reage enquanto ser individual e como ele descobre ou não merecimento em ser membro de uma comunidade artística através da espectação.

Recorreremos para tal a pensadores de várias áreas do conhecimento que nos ajudem a elaborar discurso conceptual sobre as questões que forem surgindo da nossa prática observacional.

Serão considerados os seguintes tópicos orientadores, entre outros, para o diálogo que viermos a estabelecer:

            Cultura e contra-cultura através de discursividade e imagética artísticas

            Pluralidade e singularidade no cruzamento das Artes

            Memória, tradição e testemunho

            Corpo movente que observa versus corpo que observa e se move

Rosto que se apresenta e representa versus rosto que de si tem pouca consciência

Materialidade de lugares, criação de atmosferas, formas de incorporação e de desincorporação de processos artísticos.

 

 Também é verdade que estamos actualmente condicionados nas nossas saídas de campo. Apesar disso, tentarei trazer algumas propostas sempre que tal seja possível.

Gostaria de ver convosco dois espectáculos, um em cartaz, no Teatro da Trindade, Chicago, com encenação de Diogo Infante (até dia 1 de Novembro) e um outro, Ned Kelly, que estreia a 17 de Novembro, com encenação de Pedro Alves. Este segundo espectáculo acontecerá no Auditório Municipal António Silva em Agualva-Cacém.

Introduziremos para esta rubrica – saídas de campo e visionamentos cá dentro – o uso do diário de bordo, um instrumento de trabalho que serve de registo e ampliação do pensamento. Até de emoções e sentimentos que vamos experimentando enquanto nos ocupamos do espectáculo artístico, mas também de outros materiais.

Bibliografia

CRARY, Jonathan 2017. Técnicas do Observador – Visão e Modernidade no Século XIX. Lisboa: Orfeu Negro.

CRARY, Jonathan 2001. Suspensions of Perception – Attention, Spectacle and Modern Culture. Massachusetts: MIT Press.

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A Vida, Os Sentimentos e as Culturas Humanas, Lisboa: Temas e Debates, Círculo de Leitores.

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção? tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como sentimos – O Que a Neurociência nos Pode – ou não – Dizer, Tradução de Pedro Carvalho, Lisboa: Bertrand Editora.

HAN, Byung-Chul 2007/2016, O Aroma do Tempo – Um Ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora, Tradução de Miguel Serras Pereira, Antropos, Lisboa: Relógio D’Água.

HAN, Byung-Chul 2020. Do Desaparecimento dos Rituais – Uma Topologia do Presente, Lisboa: Relógio D’Água.

 

MODALIDADES CONVERGENTES DE AVALIAÇÃO:

1. Modalidade de escrita em presença

Escrita presencial (60%)

2 Testes com consulta, de duração máxima de 1h e 20 m.

2. Modalidade oral em presença (20%):

 Participação espontânea na aula;

 Participação individual ou em grupo, solicitada e com preparação prévia, em data a combinar e sempre que possível, sobre uma pequena unidade do programa (cerca de 10 minutos por pessoa);

 Participação solicitada no âmbito de toda e qualquer discussão relacionada com a matéria no espaço da aula.

3. Interesse e participação em actividades extra-curriculares (20%)

Mais do que a simbólica percentagem na avaliação, o que importa mesmo é que se possa implementar um espírito de grupo e se crie uma boa relação de cultura e partilha de opinião crítica, a propósito de objectos artísticos e culturais disponíveis na comunidade. Estas modalidades podem vir a ser revistas como forma de adequação às directrizes em vigor para toda a Faculdade.

 

·         Data de realização do 1º teste de avaliação: dia 12 de Novembro de 2020  Duração da prova com consulta: uma hora e vinte minutos. O resultado e a correcção desta prova serão apresentados no dia 3 de Dezembro de 2020, salvo se houver qualquer imponderável.

·         Data de realização do 2º teste de avaliação: dia 17 de Dezembro de 2020 Duração da prova com consulta: uma hora e vinte minutos.

·         Os resultados do 2º teste, sua correcção e toda a avaliação final de cada aluno serão apresentados e discutidos no dia 4 de Janeiro de 2021 em horário de aula.

 

 

 

A gravação premeditada de aulas retira às mesmas a espontaneidade de participação.