Sobre a arte da demora e da repetição

1 Outubro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

SOCIOLOGIA DAS ARTES DO ESPECTÁCULO

 

Calendarização lectiva – VERSÃO sempre em actualização

 

Horário: 3ªs ZOOM das 14:00 às 15:30, 5ªs das 14:00 às 15:30 (TP1A) e das 15:30 às 17:00 (TP1B)

Sala –7.1

Recepção de alunos – 2ª feira das 13:00 às 14:00 (marcação prévia) na sala 2.2. ou em lugar a combinar.

 

OUTUBRO                                    5ª FEIRA                              1ª Aula

 

 

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Notas soltas

Abrimos o nosso programa com algumas considerações sobre o comportamento do espectador em espaço cénico ao vivo; reflectimos sobre os factores tradição e ritualização na compreensão e realização de espectáculos, considerando a componente biológica, mas também a histórica. Iniciámos o acompanhamento de um breve estudo de caso associado ao teatro-dança Kathakali que valoriza a tradição, sem pôr em causa a inovação, e que alerta para o progressivo desaparecimento de práticas e comportamentos ritualísticos nas sociedades contemporâneas. Esta será uma linha de investigação que gostaria de ver continuada com outros estudos de caso.

 

O programa oficial publicado em Junho não me deu espaço para explicar o que pretendo fazer convosco.

Era assim que estava escrito esse programa.

O espectáculo artístico enquanto acontecimento agregador de aprendizagem: como, quando, onde e porquê?

Expressa este programa uma dupla vontade reflexiva e afectiva de analisar, problematizar, avaliar e experimentar a condição de espectador enquanto sujeito individual e membro de um colectivo. Esta componente do programa, que nos fará sair para vermos espectáculos e outras manifestações culturais estará sempre dependente do que for possível fazer no actual contexto das nossas existências. Um espectáculo ao vivo pode tecnologicamente dar lugar a uma versão desse mesmo espectáculo que ocorre por mediação, mas não é seguramente a mesma coisa. Assunto a discutir.

Paralelamente a esta proposta de trabalho aqui avançada salientaremos o princípio da sensibilização do acto de espectar como manifestação cívica e cultural, fruição estética e compreensão política do espectáculo. Acima de tudo desejamos descobrir como o espectador age e reage enquanto ser individual e como ele descobre ou não merecimento em ser membro de uma comunidade artística através da espectação.

Recorreremos para tal a pensadores de várias áreas do conhecimento que nos ajudem a elaborar discurso conceptual sobre as questões que forem surgindo da nossa prática observacional.

Serão considerados os seguintes tópicos orientadores, entre outros, para o diálogo que viermos a estabelecer:

            Cultura e contra-cultura através de discursividade e imagética artísticas

            Pluralidade e singularidade no cruzamento das Artes

            Memória, tradição e testemunho

            Corpo movente que observa versus corpo que observa e se move

Rosto que se apresenta e representa versus rosto que de si tem pouca consciência

Materialidade de lugares, criação de atmosferas, formas de incorporação e de desincorporação de processos artísticos.

 

 Também é verdade que estamos actualmente condicionados nas nossas saídas de campo. Apesar disso, tentarei trazer algumas propostas sempre que tal seja possível.

Gostaria de ver convosco dois espectáculos, um em cartaz, no Teatro da Trindade, Chicago, com encenação de Diogo Infante (até dia 1 de Novembro) e um outro, Ned Kelly, que estreia a 17 de Novembro, com encenação de Pedro Alves. Este segundo espectáculo acontecerá no Auditório Municipal António Silva em Agualva-Cacém.

Introduziremos para esta rubrica – saídas de campo e visionamentos cá dentro – o uso do diário de bordo, um instrumento de trabalho que serve de registo e ampliação do pensamento. Até de emoções e sentimentos que vamos experimentando enquanto nos ocupamos do espectáculo artístico, mas também de outros materiais.

 

Bibliografia

CRARY, Jonathan 2017. Técnicas do Observador – Visão e Modernidade no Século XIX. Lisboa: Orfeu Negro.

CRARY, Jonathan 2001. Suspensions of Perception – Attention, Spectacle and Modern Culture. Massachusetts: MIT Press.

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A Vida, Os Sentimentos e as Culturas Humanas, Lisboa: Temas e Debates, Círculo de Leitores.

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção? tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como sentimos – O Que a Neurociência nos Pode – ou não – Dizer, Tradução de Pedro Carvalho, Lisboa: Bertrand Editora.

HAN, Byung-Chul 2007/2016, O Aroma do Tempo – Um Ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora, Tradução de Miguel Serras Pereira, Antropos, Lisboa: Relógio D’Água.

HAN, Byung-Chul 2020. Do Desaparecimento dos Rituais – Uma Topologia do Presente, Lisboa: Relógio D’Água.

 

MODALIDADES CONVERGENTES DE AVALIAÇÃO:

1. Modalidade de escrita em presença

Escrita presencial (60%)

2 Testes com consulta, de duração máxima de 1h e 20 m.

2. Modalidade oral em presença (20%):

 Participação espontânea na aula;

 Participação individual ou em grupo, solicitada e com preparação prévia, em data a combinar e sempre que possível, sobre uma pequena unidade do programa (cerca de 10 minutos por pessoa);

 Participação solicitada no âmbito de toda e qualquer discussão relacionada com a matéria no espaço da aula.

3. Interesse e participação em actividades extra-curriculares (20%)

Mais do que a simbólica percentagem na avaliação, o que importa mesmo é que se possa implementar um espírito de grupo e se crie uma boa relação de cultura e partilha de opinião crítica, a propósito de objectos artísticos e culturais disponíveis na comunidade. Estas modalidades podem vir a ser revistas como forma de adequação às directrizes em vigor para toda a Faculdade.

 

·         Data de realização do 1º teste de avaliação: dia 12 de Novembro de 2020  Duração da prova com consulta: uma hora e vinte minutos. O resultado e a correcção desta prova serão apresentados no dia 3 de Dezembro de 2020, salvo se houver qualquer imponderável.

·         Data de realização do 2º teste de avaliação: dia 17 de Dezembro de 2020 Duração da prova com consulta: uma hora e vinte minutos.

·         Os resultados do 2º teste, sua correcção e toda a avaliação final de cada aluno serão apresentados e discutidos no dia 4 de Janeiro de 2021 em horário de aula.

 

 

 

A gravação premeditada de aulas retira às mesmas a espontaneidade de participação.

 

 

Gostar pode ser não gostar

Tenho há muitos anos a convicção de que assistir a um espectáculo artístico é uma particular forma de aprendizagem e fruição a que nos deveríamos entregar de coração aberto. Tal deverá sempre acontecer, mesmo que numa primeira fase, após a assistência à função, esta possa não ser tão compensadora face às nossas expectativas. Não gostarmos de um espectáculo é tão ou mais importante do que idolatrá-lo. A idolatria pode apaziguar-nos, deixando-nos resolvidos com o nosso ego. Questionarmo-nos acerca do que não gostamos empresta a uma segunda fase o fulgor do pensamento. Trata-se, pois, de um ajuste de contas com o que vimos, ouvimos e sentimos e não nos agradou. Somos assim chamados a encontrar razões que só a nós dizem respeito e com as quais poderemos contar para nos defendermos perante um espectáculo que, do nosso ponto de vista, não alcançou o nosso aprazimento.

Estas duas posições antagónicas, que dizem respeito a uma questão de gosto individual, são quase sempre superadas por sucessivas variantes que estabelecem com o objecto artístico uma relação relativizada, e que nos fazem produzir discurso que favorece determinados aspectos do que vimos e ouvimos, rejeitando liminarmente outros.

Através desta postura de espectação crítica e fundamentada oculta-se em cada um de nós o espectador comum que também somos. O que é um espectador comum? Dele não nos devemos apartar, porque é nele que se encontram emoções e sentimentos,  capacidade cognitiva para criar juízos e opinamento, dele é parte a cultura que nos modela e que nós modelamos, a ele pertence o funcionamento orgânico equilibrado, com ele temos o desejo de estar numa determinada sala de espectáculo, ou ao ar livre se for o caso. Um espectador comum à nossa medida?

 

Da ritualização e suas variações

Assistirmos a uma representação/apresentação configura um horizonte de comprometimento e respeito pelo trabalho que a arte inspira e a que dá forma. E nessa medida somos parte de um colectivo que se reúne para celebrar um acontecimento que é ele próprio um ritual simbólico desde há milhares de anos. De certa forma, os espectáculos artísticos «transmitem e representam os valores e os regimes que tornam coesa uma comunidade.»[1] Nem todas as comunidades, porém, reflectem coesão. Há regimes que impõem a quem especta uma ideologia que se dissemina de forma tentacular e se exerce como manifestação de poder. (Ex: o percurso da chamada Arte Degenerada durante o nacional-socialismo; o Realismo Socialista na URSS e países satélites; as vibrantes questões que nos dissociam de sociedades contemporâneas em desequilíbrio)

A arte cénica, como outras formas de arte, deriva de um processo de conhecimento que se baseia na repetição, mas também no inesperado. Quantas vezes uma micro-cena nasce de um gesto, de uma palavra, de um movimento não considerados anteriormente. A partitura cénica muda, embora a sua natureza não rejeite que a mudança acontece, porque conhecer uma coisa significa que existe um processo que já nos é biológica e historicamente familiar e que nos orienta.

O processo de representação/apresentação é antiquíssimo e embora possa e seja alvo de permanentes transformações no estilo, na forma, nos materiais, nas técnicas em uso, ele não deixa por isso de ser referência da existência de escolas e núcleos artísticos que ditam a seu tempo o que faz a arte. Este processo, nas suas várias vertentes e combinatórias, pode manter-se associado à criação estética como valor primordial (os formalistas, os construtivistas são disso exemplo), pode operar com diferentes e múltiplos conteúdos, pode assumir posições éticas, ideológicas, religiosas, que configuram o comprometimento artístico, não deixando, por isso, de preservar em si o que terá sido a primeira representação/apresentação. Como terá sido ela? Será que somos capazes de re-conhecer a posteriori o que não foi possível captar na primeira e talvez única vez a que assistimos a um determinado espectáculo? A repetição neste sentido abrange o que de permanente existe como forma de reconhecimento antiquíssimo e talvez ideal em cada exibição performativa. Cada matriz que identificamos enquanto espectadores de arte cénica é fruto de opções simbólicas que nos levam a considerar que o lugar onde estamos quase se parece com aquele que habitamos. Nem sempre é assim. O espaço cenográfico oferece muitas variações como sabemos. E um espaço limpo, como sempre agradou a Peter Brook, será provavelmente o mais rico para um exercício de imaginação.

Ir ao teatro, ver uma exposição, assistir a um concerto tornam para nós o mundo fiável. A ritualização como forma de repetição transpõe para dentro de nós o que a espécie humana vem construindo e continuará a construir como cultura e arte. Ritualizar quer dizer que se constrói o tempo à medida da sua visibilidade e habitabilidade. O tempo que não se habita, que não se materializa em gestos, formas, palavras, acções, que somos capazes de aceitar e compreender, será um tempo que não nos dará estabilidade. O tempo que foge, que nos foge, afasta-nos de estarmos-em-casa quando assistimos a um espectáculo. Na Grécia Antiga, os espectáculos duravam um dia, muitos dias.

 

Um caso de repetição e rito

Ainda hoje há espectáculos que se realizam de um fim de tarde ao nascer do sol sem intervalo. É o caso do Kathakali no sul da Índia (Estado de Kerala). A forte ritualização e codificação destas representações, com episódios narrados, mimados, dançados, cantados e musicados, que são recortados do Mahabahrata ou dos poemas contidos nos Puranas, a sua fonte de inspiração, em sânscrito, e que passam à forma escrita a partir de 400 a. C., constituem um excelente exemplo de uma arte cénica multimodal e quase inalterada nas suas linhas dominantes.

Com o Kathakali a repetição ritualizada é fonte de estabilização da vida de quem o especta e que é conceptualmente expressa pela arte. Quase diria que repetir de geração em geração o que de todos é conhecido, como uma oração que nos pacifica interiormente, devolve-nos a capacidade de não termos de estar sempre a produzir, a realizar coisas para datas previstas, a queixarmo-nos com amargura de nos privarmos do que a vida tem de belo. O Kathakali ocupa-se do mesmo, atrai a nossa atenção para que com ele passemos tempo, tem longevidade e duração.

Pequeno vídeo sobre execução de movimentos no rosto por actor de Kathakali

https://www.youtube.com/watch?v=xGMRmoR7GPk


[1] HAN, Byung-Chul, 2020. Do Desaparecimento dos Rituais – Uma Topologia do Presente, Lisboa: Relógio D’Água, p. 11.