As fronteiras expugnáveis

29 Novembro 2016, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Enquanto aguardamos a actualização das leituras recomendadas, dedicadas a Jacques Rancière, optámos por mostrar um CD com material diverso sobre Teatro e Comunidade, da autoria de Eugen van Erven. Este professor de teatro na Universidade de Utrecht realizou, em 2001, uma longa viagem localmente programada por alguns países (Filipinas, Holanda, EUA, Costa Rica, Quénia e Austrália), a fim de conceber um estudo comparado sobre como em cada um dos lugares escolhidos e em função dos problemas encontrados nessas comunidades, o teatro propunha uma intervenção artística com benefício para as populações envolvidas.

Saliente-se que em muitos dos exemplos visionados foi possível acompanhar o processo de preparação de cada espectáculo e o resultado do mesmo junto dos espectadores locais. Constatou-se ainda que na maioria das observações os pequenos grupos de teatro trabalhavam com profissionais, professores de teatro, dramaturgos, encenadores que não só procuravam responder às questões colocadas pelas pessoas e que se projectavam de imediato na construção do espectáculo, como estes eram também solicitados a oferecerem algum enquadramento psicológico e afectivo em casos mais delicados que a preparação do espectáculo suscitava.

Em todas as comunidades até agora observadas tornou-se perceptível que a função do teatro não era exibir-se como uma estrutura montada e regularmente visitada, mas antes proporcionar enquadramento às diversas questões que perturbavam as pessoas que, como actores amadores, procuravam no teatro uma resposta, uma clarificação, uma sugestão de mudança face aos problemas que as afectavam, quer maioritariamente de natureza colectiva (PETA nas Filipinas), quer de âmbito individual e colectivo (STU, Holanda, Teatro de la Realidad, USA, Aguamarina, Costa Rica, Ngûgî wa Thiong’o, Quénia).

É dentro desta perspectiva que a proposta filosófica de Jacques Rancière sobre como se deverão relacionar os fazedores de teatro e os seus observadores me parece ter aqui exacto cabimento. Para já através do método de Jacotot, que nestes exemplos tem uma leitura mais diversificada e de maior proximidade através da construção de um objecto artístico, do que acontece em relação ao descrito sobre o trabalho dos estudantes com o Telémaco de Fénelon. Não sabemos por Rancière se a aprendizagem da língua francesa pelos estudantes de Lovaina se traduziu num exercício apenas individual do uso da inteligência ou se entre colegas houve interajuda. Ao contrário do que se terá passado na universidade de Lovaina, as comunidades que observámos na preparação dos seus espectáculos funcionaram sempre como um colectivo.

Tal constatação não inviabiliza, porém, que não possamos aplicar a estes casos, considerados por van Erven, o princípio da igualdade das inteligências associado à rejeição da «ordem explicadora». Verificamos com os vários testemunhos apresentados em Community Theatre, e ainda não chegámos ao fim, que eles conferem às metodologias utilizadas uma particular relevância que se manifesta num trabalho de campo junto dos elementos de cada comunidade e que é posteriormente integrado no espectáculo a realizar. Esta pesquisa é também uma forma de criar proximidade com as pessoas que irão posteriormente assistir ao espectáculo. Quem se ocupa desta pesquisa são os actores que assim recolhem informação a partir da qual se escrevem textos dramatúrgicos e se prepara a representação.

Qualquer distância entre fazedores e observadores é claramente ultrapassada pela vontade de cada um contribuir para um bem comum. E este ganha consistência pela criação artística que existe porque é de todos, ou, pelo menos, de uma grande maioria. A autenticidade deste comportamento nasce da necessidade que é originada na própria comunidade e à qual o Teatro procura responder como modo de autonomização das inteligências.

 

Leituras recomendadas:

- RANCIÈRE Jacques 2010, O espectador emancipado, tradução de José Miranda Justo, Lisboa: Orfeu Negro.

- RANCIÈRE, Jacques 2010, O Mestre Ignorante – Cinco lições sobre a emancipação intelectual, Ramada: Edições Pedago, pp. 7-24.

- ERVEN, Eugene van, Community Theatre – Global Perspectives, London and New York: Routledge, 2001, pp. 1-13 e 243-260.

 

Filme em visionamento:

ERVEN, Eugene van, Community Theatre – Global Perspectives, London and New York: Routledge, 2002, CD, 90’ narrado em inglês