Kathakali- Um desafio a Darwin

11 Outubro 2016, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

3ª Saída de Campo, desta vez conjunta e anunciada de modo atempado.

Espectação de Música e Censura de Frank Wedekind e de A Hora do Amor de Ödon von Horváth, Teatro da Cornucópia (20:30-00:30) a 7.10.2016.

 

Solicitação de continuidade ao Diário de Bordo a partir de presença em cada espectáculo. Os testemunhos individuais serão sempre apresentados e discutidos em aula quando oportuno.

 

Recuperação dos primeiros 7 minutos de visionamento de um espectáculo de Kathakali e prossecução integrada dessa espectação com o propósito de sensibilizar os alunos para a complexidade destas representações face ao despojamento e ordenação no espaço do que vemos.

O nosso interesse primeiro foi despoletado pela relação entre a expressão das emoções de que fala Charles Darwin no seu livro A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais como um processo evolutivo, hereditário e comum ao ser humano e a várias espécies animais, mas também como processo cultural.

É justamente em relação a esta última vertente que o espectáculo de Kathakali pode ser integrado como potenciação do natural em nós.

Na aprendizagem artística das características e capacidades musculares do rosto de cada um e sua expressividade orgânica são integrados movimentos e detalhes específicos que resultam de um treinamento de muitos anos e que podem desenvolver e sustentar formas de linguagem pantomímica especialmente adquiridas para fazer falar o rosto. Este torna-se ainda mais evidente através da pintura artística que lhe é aposta. Só por si o rosto conta uma história, comenta-a, exibe-a, propõe interacção com outros rostos.

A complexidade do Kathakali não advém apenas da expressão do rosto dos actores-bailarinos que temos de ler, existindo ela também no movimento das suas mãos, que contam a mesma história que o rosto conta, e que são seguidas de perto pelo movimento dos olhos. Através de codificação de linguagem gestual baseada em mudras (24 diferentes posições básicas das mãos), os actores-bailarinos revelam um enorme controlo na articulação corpo-mente. Em boa verdade estamos perante um corpo com identidade orgânica ao qual é pedido que não use capacidades vocais, uma das principais fontes do prazer artístico e de comunicação para um actor.

A duração do trabalho preparatório de actores na execução dos diferentes tipos de movimento que executam pode durar entre 7 a 9 anos e inicia-se quando os futuros actores são ainda crianças.

Confrontámo-nos, assim, com a expressão das emoções através de rostos e corpos, ao mesmo tempo naturais e codificados por treinamento, e experimentámos o que isso implica pra o espectador ocidental na separação de movimentos musculares naturais e aprendidos. Este processo terá sido alvo de um jogo mental que exige esforço, embora a composição geral das personagens possa sobre nós exercer fascínio pela sua invulgaridade exterior.

A matéria narrada através de actores que não falam é reduzida ao estritamente necessário para a compreensão da história e é alvo de permanentes repetições como que a justificar hábitos ancestrais de sociedades iletradas. Deste ponto de vista as estratégias próprias da narração oral (narrar e cantar) continuam a sobreviver numa sociedade e numa cultura de elevado desenvolvimento tecnológico.

É favorável a esta representação o facto de as histórias que se mostram serem do conhecimento geracional dos espectadores indianos. A cultura transmitida provém do longínquo nascimento da Índia através de lendas e mitos incorporados em obras como o Mahabharata ou o Ramayana, livros sagrados da cultura hindu. Esta vantagem para os nativos abre o espaço para uma mais intensa apreciação dos corpos em movimento, para o acompanhamento com instrumentos de percussão operado pelos músicos, para a mesma história que os cantores-narradores interpretam, para finalmente a exuberância dos figurinos e das máscaras em cena. Uma arte total que pode entediar e deslumbrar ao mesmo tempo.

 

Esta experiência artística conduziu-nos a seguir à reflexão sobre a expressão das emoções em Darwin. A sua proposta foi definida em três teses principais no livro em consulta: 1. A força do hábito conduz à automatização do processo de integração e reconhecimento das emoções e sua expressão; 2. O carácter antitético na execução de movimentos que exprimem reacções contrárias prevalece ao longo da vida e mantém relação com o primeiro princípio; 3. A acção do sistema nervoso central interfere no nosso quadro de expressão emocional independentemente da nossa vontade ou do próprio processo de aquisição e incorporação dessas expressões.

 

O espectáculo de Kathakali visionado comprovou que os princípios darwinianos são verdadeiros embora ultrapassáveis enquanto expressão artística.

 

Darwin admitiu algumas particularidades no comportamento humano expressivo decorrentes de influência cultural. Na p. 325 da obra em consulta refere o autor alguns exemplos de manifestações afectivas humanas: como se ora, como se beija, como se acena em sinal de concordância ou discordância.

O povo Maori ainda hoje se beija unindo os narizes. Os indianos manifestam concordância e discordância exactamente ao contrário dos ocidentais. O que é inato? O que é adquirido?

 

Leituras recomendadas:

- DARWIN, Charles 2006, A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, trad. José Miguel Silva, Lisboa: Relógio D’Água, 163-179, 217-231, 233-257, 321-337.

- MENDES, Anabela, Notas para uma sociologia das artes do espectáculo – Reflexão sobre a utilização de parâmetros cognitivos aplicados a públicos de teatro e outras artes in: Maria Helena Serôdio (dir.), Sinais de Cena 17, Junho de 2012, 60-69.