O nosso diário de bordo. As nossas interrogações acerca dos Qualia em Damásio

10 Novembro 2016, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Foi dedicada aos diários de bordo dos alunos a primeira hora de aula.

Comentámos veementemente três espectáculos: o filme O Espectador Espantado de Edgar Pêra, integrado no DOCLisboa no cinema São Jorge na noite de 24 de Outubro entre as 22:00 e as 23:30; O Concerto Atlântico dirigido por Pedro Caldeira Cabral e o seu reportório mariânico na Igreja de São Roque, na noite de 28 de Outubro, entre as 21:00 e as 22:30; Declive e Inclinação de Alexandre Pieroni Calado e João Ferro Martins, no Espaço do Teatro Praga, na noite de 5 de Novembro, entre as 21:30 e as 23:30.

Esta modalidade de preservação da memória de espectáculos, independentemente do género dos mesmos, e não correspondendo àquilo a que vulgarmente se chama uma crítica teatral, parece não estar ainda a colher entre os alunos aquele empenho que seria de esperar. Há honrosas e espantosas excepções. Também é verdade que o número de pessoas disponíveis para participarem nestas saídas de campo tem vindo a diminuir. Constato apenas o facto sem fazer juízos de valor. 

Um diário de bordo é um instrumento de trabalho de natureza pessoal e que reforça a qualidade individual da espectação em relação ao objecto em causa. É suposto que se escreva sobre a intimidade e o sentir de cada um quando houver razões que sustentem que o visionamento do espectáculo beneficiou ou não do estado de espírito e de mente, do equilíbrio ou desequilíbrio corporal do espectador em questão. Compreendermo-nos melhor a partir da atenção que damos àquilo que fazemos no que diz respeito às artes do espectáculo não responde a todas as dúvidas que possamos ter, nem explica integralmente qualquer momento ou intensidade apoteótica que um determinado espectáculo em nós possa causar. Para os que viram Declive e Inclinação muito ficou por esclarecer. Quando detestamos um espectáculo passamos a bloquear a nossa disponibilidade para o seu acompanhamento. Deixamos de ser capazes de nele encontrar a razão para a nossa presença em acto. Estes são os espectáculos mais difíceis porque em nós despertam sentimentos de irritação, incomodidade, exasperação. Inesperadamente vamos ao teatro para nos aborrecermos. De masoquistas já não passamos.

E todavia Declive e Inclinação contava a história dos deuses e dos homens desde a Idade do Bronze, narrada por Apolodoro, Pausânias, Sérvio, a partir da Eneida de Virgílio, Ovídio, Aristófanes, Horácio entre outros, reportada ainda em poema de Nietzsche O maior peso em A Gaia Ciência, de que Alexandre Calado diz alguns versos, e que foi representada perante nós. Sinal é com certeza aquele que informa a questão da repetição e que se toma como o centro do espectáculo. Como nos posicionamos nós perante o fenómeno da repetição? Custa-nos ver o lado direito da cena repetir-se no lado esquerdo da mesma? Ainda que nada seja exactamente igual ao que foi e ao que será? Sentimo-nos a perder tempo?

Ouçamos a voz gráfica de Nietzsche: «Queres tu isto uma vez mais e mais vezes sem conto?», «Como te sentes em relação a ti próprio e à vida para não reclamares mais nada?»

Damásio diz no seu O Livro da Consciência: «(…) os cérebros inteligentes são profundamente preguiçosos. Sempre que possível fazem menos em vez de mais, uma filosofia minimalista que seguem religiosamente.» (Damásio, 2010: 156)

Colocada pelo Tiago Silva foi uma questão que dizia respeito ao conceito de Qualia e que Damásio aborda em O Livro da Consciência. (Damásio, 2010: 313-325)

A vontade de compreender o conceito, ao qual não dera ainda a devida atenção, fez-me apesar de tudo rejeitar num primeiro momento não só o conceito como o termo Qualia. Estaria por certo a ser preguiçosa na acepção de Damásio. A travessia frequente do livro do neurocientista português fazia-me sempre passar adiante daquelas e outras páginas porque o termo Qualia me era desconhecido. Tratava-se de uma resistência que poderia ter sido circunstancial mas que se foi enraizando no tempo.

Chegada a altura de enfrentar por solicitação o problema dei comigo a descobrir afinidades entre alguns aspectos que caracterizam a mónada leibniziana e o Qualia.

Leibniz defende que o ser, neste caso o ser humano (Deus não cabe neste nosso diálogo), é uma força viva e dinâmica. Ele atribui à mónada a característica de ser uma substância simples, sem partes (Teodiceia § 10) e indivisível. Ela é uma espécie de invólucro fechado sobre si mesmo mas não alheado de consciência, como imagem, claro, mas que dentro de si contém todo o universo e a totalidade de cada ser individual. Ela implementa em cada indivíduo a experiência interior que nele se revela como substância também ela una e indivisível.

Quando Damásio afirma em L. C. que «os qualia referem-se aos sentimentos que são parte obrigatória de qualquer experiência subjectiva» e se interroga sobre «como se criam esses estados de sentimento?» (Damásio, 2010: 314) talvez isso queira dizer que a experiência interior de cada indivíduo, de cada espectador, pressupõe uma relação primeira com o que experimentamos através dos sentidos a que se associam estados emocionais que nos alteram e transformam. Este processo pode ser simultâneo ou consecutivo.

Damásio reporta-se aos Qualia como música, talvez um baixo-contínuo barroco que sempre integra a partitura e sobre o qual se improvisava a linha melódica.

Os Qualia parecem ser uma espécie de retaguarda do processo mental, uma estrutura (não sei mesmo se é ou não estrutura) que existe e ocupa espaço e que, à semelhança das mónadas, e segundo Leibniz, compõe as percepções, formando consciência de outras coisas para além delas próprias. Ao contrário dos Qualia, porém, as mónadas não se revelavam capazes de apercepção, isto é, não tinham capacidade de possuírem uma consciência exacta daquilo que lhes era exterior. Elas eram energia, propiciavam a actividade em seu redor, eram representação do universal e do singular, fugiam da dor e aproximavam-se do prazer, como os Qualia.

Quem diria que à distância de quase quatro séculos, uma pergunta viria a aproximar os chamados sentimentos crus, os Qualia, (Charles S. Peirce, Mind and the World Order, 1991: 121) do pensamento monadológico de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1667)!?

 

Leitura recomendada:

- DAMÁSIO, António 2010, O Livro da Consciência. A Construção do Cérebro Consciente, Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores (excertos).

 

http://www.leibnizbrasil.pro.br/leibniz-traducoes/monadologia.htm