Os pelicanos e sua derivações

15 Novembro 2016, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Voltámos a revisitar O Livro da Consciência de António Damásio. Escolhemos desta vez acompanhar o seu relato sobre uns certos pelicanos em vôo oceânico que terão estado na origem de uma dissertação complementar sobre a construção da consciência. Ainda seguimos com curiosidade o processo que relaciona os olhos e o seu aparato muscular e nervoso no acto de espectar, tornámos por empatia esbelto o pescoço que parecia querer perseguir as aves à distância. E tudo isto sob a batuta da imaginação, pois é desse modo que a subsecção se inicia: «Imaginemos o seguinte cenário…» Tão poético e extasiante é o discurso do neurocientista português, tão apelativo nas palavras escolhidas que nos conduziram logo por interpretação acrescentada. E afinal ficámos sem saber se a proposta que nos foi inicialmente lançada, a de imaginarmos, teve ou não lugar na vida de Damásio. Escrevendo na 1ª pessoa e com tal entusiasmo, é provável que o descrito tenha acontecido. A dúvida, porém, tem direito ao seu lugar na involuntária traição do pensamento.

Trago aqui esta breve reflexão porque a expressão de abertura do parágrafo foi para mim uma solicitação: um cenário a imaginar. Ao mencionar os pelicanos, Damásio despertou-me uma memória que imediatamente sobrepus à apresentação carinhosa das suas aves. Todo o primeiro parágrafo passou a ser com flamingos e o cenário aquático deixou de ser oceânico para se transformar numa vasta extensão de água em terras abertas da Tanzânia. Os milhares de flamingos que eu vi, muitos deles revelando o mesmo comportamento dos pelicanos de Damásio, bem como a presença de outros animais selvagens, avivaram-se numa natureza que me fez sentir o mesmo que Damásio: a condição espectacular do avistado só que noutro contexto.

Jamais serei capaz de explicar fenómenos desta natureza com linguagem científica. Não sou neurocientista nem alguma vez descreverei com alento e sabedoria a «azáfama cerebral» que em nós reside (corpo, mente e cérebro ao mesmo tempo) e que move o nosso autor a explicar-nos a simultaneidade de acção em diversas partes do nosso cérebro. Mas comovi-me, isso sim, durante todo o tempo em que tentámos decifrar aquilo que ele escreveu e que acreditamos seja verdadeiro no que diz respeito à perturbação que nos afectou.

Que outras paisagens terão emergido e chegado à consciência em cada um de vocês? Mantiveram-se em íntima ligação com o texto? Que valor pudemos acrescentar à descrição emocionada e ao mesmo tempo cientificamente rigorosa de Damásio?

Quando assistimos a um espectáculo artístico em que algumas das premissas damasianas aqui invocadas possam estar presentes – construir a consciência a partir de percepção e expansão dos sentidos (não apenas o olhar e o ouvir), incorporar a experiência num mais vasto campo de conhecimento próprio e individual, o que inclui a capacidade de associação de memórias, recuperar (por mero acaso) a consciência de um «sentimento primordial do proto-eu» - talvez possamos ter uma perspectiva diferente daquilo a que assistimos.

Recorda Damásio que estes estados de consciências ao serem alvo de uma inesperada interrupção (não acredito que o telefone do texto tivesse interferido na contemplação dos pelicanos), nos conduzem por outros caminhos muitas vezes não os que desejamos. Apesar disso, podemos sempre regressar aos pelicanos, aos flamingos e a tanta outra coisa. Os mecanismos de recompensa sensorial podem devolver-nos as imagens em que fomos ou somos ou seremos felizes.

 

Derivámos a nossa reflexão para uma mais fina compreensão do conceito de empatia, questão a que já tinhamos devotado algum pensamento. (136-137)

A propósito da ideia de inconsciente (331-353) chegámos à ideia de mente. Foram disponibilizadas mais algumas páginas sobre esta matéria a que voltaremos na próxima aula.

 

Leitura recomendada:

- DAMÁSIO, António 2010, O Livro da Consciência. A Construção do Cérebro Consciente, Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores (excertos). 260-262; 136-137; 331-353; 118-123.