Formas abstractas com memória humana

6 Novembro 2019, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

NOVEMBRO                                   4ª FEIRA                                           14ª Aula

 

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Regressamos ao experimentalismo no palco da Bauhaus e também aos seus ateliers. A opção de hoje leva-nos a visionar obra de Kurt Schmidt (1901-1991), intitulada Das mechanische Ballett (O ballet mecânico), produzido em 1923 para o Teatro Municipal de Jena.

Kurt Schmidt foi aluno de Kandinsky e criou esta obra para palco com o seu colega e amigo Georg Teltscher. A obra cénica beneficiou de música original composta para piano e violino por Heinz Stuckenschmidt que a executou ao piano enquanto Lonny Ribbentrop a interpretou em violino.

Na versão reconstruída identificamos ainda o som de instrumento de percussão, pequenos tambores que marcam o ritmo do movimento de algumas das “figuras articuladas” que se deslocam em cena. Pareceu-me ainda reconhecer a presença pontual de instrumento de sopro.

Estas “figuras articuladas” concebidas e montadas em cartão, ora coloridas, ora a preto e branco, mantêm em ocultação (através do uso de maillots pretos e sapatilhas da mesma cor) os actores que as manipulam e que com elas se configuram como uma única presença em cena. Esta reflecte a visualização de uma caixa preta.

Nos diversos quadros e suas relações específicas e pontuais são executados movimentos e estabelecidas pequenas acções que indiciam formas de comportamento humano mas também podem derivar para objectos reconhecíveis, por exemplo, um comboio.

Dada a composição coreográfica, a concepção das figuras em cartão, a iluminação utilizada que não procura criar efeitos extraordinários, e sobretudo a elaboração de uma linguagem própria que se revê ao mesmo tempo em várias artes congregadas - teatro, dança, música, figurinos, desenho, pintura e artes aplicadas como o design -, verificamos que o artista Kurt Schmidt nesta obra tão singular para a época defendia um projecto que procurava fazer sobressair de formas abstractas um dinamismo que afinal existe no corpo humano e é próprio dele, apesar de nem sempre o reconhecermos em muitas situações da vida comum.

Esta concepção para cena do Ballet Mecânico, no âmbito da Bauhaus, permite-nos ainda comprovar que existem formas abstractas capazes de imediata leitura concreta transponível para o que conhecemos da realidade de sociabilização entre humanos. Todos nós identificámos as figuras em cena como representações do nosso corpo vivo, ainda que à primeira vista isso pudesse não ter acontecido. Para lá desta constatação, também fomos capazes de seguir com pormenor as acções realizadas em cena e que igualmente exprimiam pequenos apontamentos quotidianos. Não só fomos sensíveis aos efeitos de curtos episódios que eram demonstrativos de relações conflituosas, como pudemos apreciar uma amorosa relação entre dois bonecos de cartão. Finalmente usámos o nosso espaço mental para articular esta composição cénica (jamais lhe chamaríamos peça de teatro) com referências de cada um, vindas de outras artes, nomeadamente do cinema (Chaplin, Walther Ruttmann, Sinfonia de uma grande cidade, cinema Expressionista, cinema de animação nos seus primórdios).

E isto aconteceu não apenas porque respirávamos de alívio por nos termos sentido integrados na proposta de Kurt Schmidt, mas porque esta leitura do mecânico, e ainda que identificasse as transformações produzidas na época no seio de uma sociedade já então cada vez mais industrializada e brutalizada, optava por nos dar a ver “pintura em movimento”, propondo-nos que apreciássemos as formas tal como elas são no seu abstraccionismo e que ao mesmo tempo as humanizássemos. Esta duplicidade não restringe a liberdade de movimento e acção dos actores invisíveis e dos seus bonecos, nem deixa de parte o experimentalismo que caracterizava a Bauhaus. Também nós nos sentimos livres de observar nesta composição cénica os princípios que enformam máquinas e as suas leis através da arte.

 

Num apontamento final refiro o posicionamento dos actores em cena, sempre de perfil e só de perfil.

 

DVD visionado

Bühne und Tanz | Stage and Dance – Kurt Schmidt, Edition Bauhaus, 35 min., excerto de 15 min. Objecto fílmico sem texto dito. Língua alemã, língua inglesa, 2014.