Será que existe a questão da forma em Kandinsky?

11 Outubro 2019, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Iniciámos a aula com o propósito de nos ocuparmos do ensaio de Wassily Kandinsky Sobre a questão da forma (1912), pela primeira vez publicado no Almanaque O Cavaleiro Azul. Já nos debruçáramos sobre esta publicação para apreciarmos exemplos de pintura, aguarela, gravura, desenho, partituras musicais, estatuária, ensaio, uma composição para palco de Kandinsky, poesia. Um Picasso ao lado de um Rousseau, mais adiante pintura infantil, Van Gogh, Gauguin e Matisse, tudo o que pudesse ser representativo de diversas épocas artísticas, de diversificadas correntes artísticas e estéticas agradava aos dois amigos, Franz Marc e Wassily Kandinsky, que consideravam incluir nesta publicação desde a arte egípcia, à arte oriental, à expressão modernista das vanguardas, entre outras, como se não houvesse barreiras entre elas, e se calhar não havia, e partindo do princípio de que o gesto artístico na sua diferenciação é o que produz a singularidade da obra em si mas também pode estabelecer correspondência com outras obras de forma infinita segundo o espírito de um almanaque que traça pontes entre várias áreas do conhecimento tal como era o objectivo desta obra publicada, associada a várias exposições em Munique e em Berlim.

Os elevados custos de O Cavaleiro Azul em grande formato e a cores, assim como o prejuízo editorial puseram termo ao juvenil empolgamento de Marc e Kandinsky virem a publicar um segundo exemplar do Almanaque. Um terceiro factor de impedimento adveio com o início da Primeira Guerra Mundial.

 

Anteriormente tinhamos optado por passar da leitura de carácter mais teórico, com que se inicia o ensaio, à exemplificação kandinskiana sobre a letra, o travessão e o fósforo queimado. Através destes exemplos seriamos conduzidos de forma mais acessível à linguagem simbólica do pintor russo e aos objectivos através dos quais pretendia defender que «em princípio a questão da forma não existe». A sua noção de que o conteúdo de uma obra de arte se torna presente independentemente dos seus meios de expressão, e o facto de o criador afirmar que a forma, que é correcta do ponto de vista externo, pode estar errada do ponto de vista interno, isto é, a sua motivação pode não corresponder à «necessidade interior» que move o artista. É ainda de referir que a unidade interior que supostamente deriva da dissemelhança externa entre os elementos constituintes de uma obra de arte, em particular, de uma obra de arte «monumental», ou se nos aproximarmos do conceito de «obra de arte total», muito caro a Richard Wagner, da articulação entre os vários elementos que constituem uma ópera sem que haja a supremacia da música sobre o drama cantado ou outras componentes do espectáculo.  Estas premissas para além de se reverem em alguns dos códigos românticos das poéticas e estéticas do séc. XIX alemão (Friedrich Schlegel, Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling ou Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, conhecido como Novalis) ambicionam refundar um percurso que desde os Gregos Antigos mantinha ligação entre disciplinas artísticas (poesia, retórica, filosofia, teatro, música) e disciplinas científicas (matemática, física, astronomia) nascidas de um tronco comum como origem do conhecimento.

É neste contexto que se posiciona Kandinsky, neste seu ensaio, quando é favorável à simultaneidade e alternância da forma que figura e da forma que abstraíza. Ambas adquirem equivalência ainda que com distintos propósitos. E é por isso que Kandinsky defende a seguinte equação em ambas as direcções. (Kandinsky: 1998: 24)

Realismo = abstracção

Abstracção = realismo

À primeira vista esta proposta parece absurda e foi sobre ela que os alunos se interrogaram. Na verdade, a arte figurativa mantém perante nós uma relação de equilíbrio entre exterior e interior que somos capazes de identificar através dos mecanismos de funcionamento da empatia. A arte abstracta abre caminho para ultrapassar o circunstancial, a pequena ou a grande história da imagem, e também para recriar aquilo que constitui a sua exterioridade. Deste modo a arte abstracta torna-se mais exigente perante o observador suscitando a sua directa participação na formulação de sentido /de sentidos que a obra apresenta através de novas linguagens, novos posicionamentos que suscitam um «olhar inabitual».

Quando nos referimos ao exemplo da letra foi isso que procurámos desenvolver. Um lugar cativo da letra r na palavra “árvore” pode por deslocamento criar diferentes hipóteses de posicionamento. Os elementos alteram-se entre si e novas possibilidades surgem no horizonte da observação, recriação e activa relação com a obra de arte.

A imagem que observámos de Henry Rousseau Retrato de Mulher (Almanaque) e a que comentámos também durante a visita ao site respectivo da Internet, Retrato da Senhora M são representativas da corrente estética do Realismo e não é por isso que Kandinsky as põe de lado. A representação dos objectos em si mesmos (os retratos de mulheres) adquire um carácter tão absoluto quanto aquele que integra a pintura abstracta. Em ambos os casos se verifica na oposição que os caracteriza a verdadeira existência das suas características e qualidades. Em ambos os casos a «necessidade interior» ajusta no caso de Rousseau a maior ausência possível de elementos abstractos e no caso de Kandinsky a maior ausência possível de elementos realistas.

O Cavaleiro Azul comprova largamente esta perspectiva.

 

 

Leituras recomendadas

DROSTE, Magdalena 2019. Bauhaus – A hundred years of Bauhaus, updated edition, Berlin: Bauhaus Archiv, pp. 130-149 e pp. 298-303.

JUSTO, José, Kandinsky e o Espírito. Três deambulações a propósito de «Fósforo Queimado, in: Anabela Mendes, 2003, Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, programa-livro do espectáculo, Lisboa: CCB, p. 71.

KANDINSKY, Wassily 1998, Sobre a Questão da Forma, Da Compreensão da Arte, A Pintura como Arte Pura, Conferência de Colónia in: Gramática da Criação, Lisboa: Edições 70. Apenas o primeiro ensaio é fundamental. Os restantes serão escolha de leitura dos alunos.