Da poética da dança à sua geometrização

24 Novembro 2020, 15:30 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

NOVEMBRO                                   3ª FEIRA                                          15ª Aula

 

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AULA ZOOM

O recurso à plataforma Zoom é um flop no que diz respeito ao visionamento de filmes em DVD. Frequentemente somos obrigados a alterar a calendarização para que tudo o que desejamos fazer seja realizável

Regras sanitárias que todos queremos cumprir retiram-nos aulas presenciais, durante as quais, por exemplo, temos planeado o comentário a testes realizados e que devem, obviamente, ser recebidos em presença.

Este contexto, tecnológico e pandémico, inviabilizam um ritmo regular de trabalho que já de si é exigente.

Esforçamo-nos por cumprir em todas as frentes, embora reconheçamos as nossas vulnerabilidades.

Aqui deixo escrito que a atenção que dedico aos alunos e que tem da parte deles contrapartida resulta da força de vontade com que todos queremos alcançar de forma positiva o fim deste semestre.

 

Na impossibilidade de comentar com os alunos exercícios e pequenas peças criadas por Oskar Schlemmer no final da década de 20 do séc. passado, material que teríamos visto na aula de hoje, fui obrigada a inverter a prática pela teoria.

Oskar Schlemmer é um artista paradoxal, revê-se na figura do inacabamento e ao mesmo tempo é um exigente formalista no enquadramento da figura humana no espaço.

Para tornar mais acessível a sua proposta teórica fui escrevendo um texto desde o Verão passado até agora na expectativa de descomplexificar a sua ideia de arte.

HORA E MEIA COM OSKAR SCHLEMMER

1. Quando tivermos visto alguns dos exercícios e jogos criados por Oskar Schlemmer e pelos seus alunos na oficina de Teatro e Dança da Bauhaus, entre 1923 e 1929, e pudermos comparar em versão reconstruída e em filmagem original de época, esses mesmos exercícios, atentaremos em alguns dos nomes atribuídos a essas curtas cenas: «Dança das formas», «Dança em vidro», «Dança em metal», «Dança dos paus» ou «Dança no espaço». Assim compreendemos que estas designações referenciavam materiais ao mesmo tempo que descobriam e desenvolviam movimentos corporais e criavam relações destes com o espaço.

2. Para os Bauhäusler o palco surge como um lugar, mas também como um meio de criação de novos modelos de apropriação e interacção com o espaço. Esta visão encontra paralelismo em concepções semelhantes entre futuristas, dadaístas e construtivistas que se questionavam e punham em acção projectos artísticos que consideravam a cena como lugar de experiência com selo de vanguarda.

Acontece, porém, que o fenómeno em desenvolvimento na Bauhaus possuía uma componente fundamental praticamente ausente em termos sistemáticos nos outros movimentos modernistas. A presença da arquitectura como arte do espaço e da construção da forma acaba por influenciar de maneira diversa de outras propostas contemporâneas de então o rumo das artes cénicas na Escola da Bauhaus.

Se Kandinsky se refere na sua teorização sobre Composições para Palco a uma síntese das artes e também a uma obra de arte total, privilegiando a transdisciplinaridade mas sobretudo a organização do espaço, a sua iluminação, a profundidade e a dinâmica das formas em movimento, na esteira de uma visão crítica daquilo que Richard Wagner considerava ser o contexto operático a partir das suas partituras e do equilíbrio entre as artes em palco, verificamos que, por exemplo, Walter Gropius se torna defensor de um «Teatro total» que para ele tinha a vantagem de permitir a cada encenador uma utilização variável e flexível do espaço de cena, quer sob a forma de arena, com extensão móvel para o proscénio, ou ainda considerando perspectivas em profundidade com cobertura de toda a área disponível. Gropius propôs este seu projecto a Erwin Piscator mas não o conseguiu fazer aprovar.

https://vimeo.com/388640017

Outros mestres da Bauhaus, como o austro-húngaro Andor Weininger, usam designações como «Teatro em abóbada» ou «espaço de palco construtivo». A ideia de construção, de articulação de elementos e de estruturas, própria de uma arquitectura de cena que se conjuga com as necessidades e desempenha funções precisas e essenciais, dá origem ao entendimento da área cénica em toda a sua proporcionalidade e dimensão como se se tratasse da concepção de uma casa.

Eficácia, aplicação de instrumentário tecnológico que revolucionava a movimentação e o sentido de orientação em cena (diferentes palcos giratórios, uso do vidro e do aço em zonas exteriores, projecções que interceptam as acções em cena) apelam a todo um conjunto de outras áreas artísticas como cenografia, construção e jogos de máscaras, figurinos, concepção de desenho de luz que absorvem o espírito de época na relação entre «máquina e abstracção», um binómio muito caro a Oskar Schlemmer que, apesar disso, opta em obra por uma concepção espacial muito discreta e poderíamos dizer pobre, quando comparada aos projectos arquitectónicos de outros dos seus colegas.

3.ballets mecânicos (como por exemplo, com Kurt Schmidt) que equacionam todo esse experimentalismo por vezes excêntrico, sem criação de grande empatia por parte de quem assiste, mas que se revelavam muito adequados à ideia de um «novo e moderno ser humano» e, como refere Oskar Schlemmer, que deveria ser um «ser humano dançante».

Assim o palco da Bauhaus era um lugar de incorporação arquitectónica, de experimentalismo de materiais, de trabalho com as formas, de modelagens permanentes, de uso de tecnologia já disponível e que era alvo de condições perceptivas que se adequavam às necessidades de cada momento.

Desta perspectiva a materialidade de cena transformava-se na presença e actividade de um conjunto de actantes (objectos, estruturas, maquinarias) que concorriam com a acção em palco do próprio ser humano. Importante parecia ser dar a medida, algumas medidas, da relação entre o ser humano e a técnica. E essa relação não era apenas fulgor e êxtase. Muitos dos exercícios composicionais propostos, por exemplo por Oskar Schlemmer, indiciavam espírito crítico, vivência individual e colectiva, capacidade lúdica de transformação do corpo e da mente, uso da máscara e da pantomima como meios de distorção da realidade.

A leitura destes exercícios, em si múltipla pela variedade dos mesmos, mas também aleatória devido à repetitividade expansiva de alguns deles, não deixa porém de tornar relevante que o ser humano individualizado (o actor tradicional e o seu egocentrismo) perde a centralidade em prol de outros elementos que consigo concorrem no trabalho cénico. Com isto pretendo dizer que o ser humano não é banido do palco da Bauhaus. Ao contrário, o que verificamos é que existe uma nova consciência da presença e acção em palco da pessoa humana. O actor e o bailarino, a actriz e a bailarina representam-se enquanto indivíduos e enquanto seres colectivos a quem é pedida a consciência de que «o trabalho da máquina», como afirmava Karl Marx no 13º capítulo de O Capital (eu li em tempos a obra), reprime o jogo complexo dos músculos e confisca toda a atividade intelectual livre.»

Karl Marx parecia estar certo se pensarmos na realidade do primeiro Capitalismo, mas Oskar Schlemmer com o seu extraordinário aparato de geometrismos de chão de cena, adereços e objectos lúdicos, disfórmicos modelos, imaginosos transportes entre luz e ausência da mesma defendia que bailarinos e actores se deviam submeter ao mecânico e mesmo criar com ele empatia.

Em 1931, Schlemmer afirma num dos seus diários de trabalho sobre aplicação de medições geométricas e biologia humana: «O mundo das formas que usei surgiu, por um lado, da teoria elementar da geometria e da estereometria [medição de sólidos], traduzidas em novos materiais estimulantes próprios do nosso tempo; por outro lado, [veio] da teoria elementar do corpo humano, que, como continuo a afirmar, também diz respeito a um ser de carne e osso, com mente e sensações, assim como com um esqueleto, tudo maravilhosamente funcional e exacto. Se esse lado do corpo humano for encarado como uma oportunidade para demonstrações fantásticas e sem negligenciar maliciosamente a síntese de ambas as possibilidades, basta apenas uma tentativa para estabelecer um equilíbrio com o outro lado, que é aquilo a que comummente chamamos de dança, e que é tão abundantemente representado.»[1]

 

4. Estes procedimentos através dos quais Schlemmer, em conjunto com os seus bailarinos e actores, foi construindo inovação no espectro da dança do seu tempo, deu origem a representações artísticas que correspondiam a uma visão modernizada do mundo circundante. E, no entanto, esses procedimentos cientificamente testados transportavam consigo processos de poetização do próprio corpo ao explorarem uma nova linguagem imagética que se sobrepunha à presença e ao uso cada vez mais avançado da tecnologia.

A experimentação em palco resultou de uma prática elaborada sob o efeito de uma certa abstinência (exercícios limpos e bem desenhados) e de um pragmatismo sistemático com vista à criação de modelos explicativos de uma ordem que também se inspirava em paralelismos criados com a realidade, e dela se mostrando muito distantes ao mesmo tempo.

Clara era apesar de tudo a questionação de Schlemmer sobre o que de facto poderia ser entendido como realidade e como é que uma reflexão estética e crítica se posicionava perante um mundo cada vez mais racionalizado.

Muitas das suas criações apresentavam-se como quadros sequenciais e que se interligavam através de imagens simbólicas, por vezes até metafísicas (as várias parcelas finais do Ballet Triádico apontam nesse sentido) e em que paradoxalmente o ser humano se entrega ao poder da máquina, do maquinal, relevando a partitura cénica de uma lógica de construção, de uma precisão de gesto e movimento, de uma sistematicidade que se cumpre quase de modo implacável.

Apesar desta vertente maquinal, técnica, racional de criar distanciação no espaço representacional artístico, Schlemmer nunca deixa de defender acerrimamente o ser humano como a criação mais perfeita do Universo.

https://www.bauhaus100.com/the-bauhaus/people/masters-and-teachers/oskar-schlemmer/

 

https://www.theguardian.com/artanddesign/gallery/2016/nov/24/oskar-schlemmers-ballet-of-geometry-in-pictures

 

https://www.bauhaus-bookshelf.org/bauhaus-book-4-oskar-schlemmer-theater-at-the-bauhaus-pdf-1926.html

 

5. A era da mecanização e da abstracção é, porém, encarada por Schlemmer como uma oportunidade para se analisarem e modelarem novas possibilidades de entender a mutabilidade dos comportamentos do ser humano. Questões como: natureza e técnica, mas também aspectos do domínio psicofísico, psicopolítico concorrem para que se coloque a pergunta como pode o corpo ser de novo imaginado ou como ele poderá ser revivido.

É dentro deste contexto que o artista cunha um conceito que talvez possa responder às preocupações estéticas e artísticas dos seus intérpretes e por extensão de quem os expecta. O conceito de Kunstfigur (Figura Artística) surge pela primeira vez no seu livro programático Mensch und Kunstfigur (Ser Humano e Figura Artística) de 1925.

https://monoskop.org/images/a/a7/Gropius_Walter_ed_The_Theater_of_the_Bauhaus.pdf

 

É nesse livro que o futuro mestre da Bauhaus fala de quatro "tipos de figurino" que são fundamentais para ele e com os quais é possível criar uma "mudança de forma no ser humano" em direção à acentuada artificialidade e abstração. Essa aparente e invocada "arquitectura em mudança" está relacionada com:

i. As "leis do espaço cúbico" e suas relações com o corpo humano são testadas em lugares em forma de caixa onde se produzem exercícios arquitectónicos que prevêem a tal “arquitectura em mudança”, i. e., o aproveitamento geometrizado das formas no espaço;

ii. A "boneca ou o boneco articulado" através dos quais se opta pelas "leis da função do corpo humano no espaço" conduzem com os seus movimentos a formas de ligação e torsão decisivas para a compreensão do “organismo técnico”;

iii. O “organismo técnico" que reflete as "leis do movimento do corpo humano no espaço" é também um factor de “desmaterialização”;

iv. A "desmaterialização” da figura em cena deve permitir a existência de "formas metafísicas de expressão" que podem conduzir a fundamento moral, a juízo político na representação do corpo e suas possibilidades.

Todas estas indicações que estão na base da criação de figurinos, mas também relacionadas com materiais têxteis e outros, com o uso simples da cor com significado associado aos tipos-base temperamentais (sanguíneo, colérico, melancólico), servem para dotar actores e bailarinos de uma nova substancialidade corporal e mental que lhes permita ao mesmo tempo figurarem a fusão entre artificialidade e humanidade.

A figura artística resulta basicamente da transformação operada pelo figurino e máscara no actor/bailarino que se movimenta no espaço executando um desenho coreográfico. Ao executar este percurso ele ora é transmissor de processos, ora é receptor dos mesmos, muitas vezes, porém, executa ambos, tornando-se assim num veículo de uma tipologia caracterial que adquire também valor simbólico. Eis como o ser humano se transforma para Schlemmer em Figura da Arte.

 

http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistaiara/index.php/ballet-triadico-da-bauhaus-pesquisa-experimentacoes-e-execucao-reflexoes-e-registros-percurso-de-uma-reconstituicao/

 

Bibliografia consultada:

Torsten Blume (Hrsg.) 2015. Das Bauhaus tanzt, Dessau: E. A. Seemann, Stiftung Bauhaus Dessau.

Oskar Schlemmer, Tagebucheintrag vom 7. September 1931, in: Andreas Hüneke (Hg.), Oskar Schlemmer. Idealist der Form, Briefe, Tagebücher, Schriften 1912-1943. Leipzig, 1990, S. 238.

Ina Conzen (Hrsg.), 2014, Oskar Schlemmer, Visionen einer neuen Welt, Stuttgart: Hirmer Staatsgalerie Stuttgart.

Anabela Mendes

20-11-2020

 

A gravação premeditada de aulas retira às mesmas a espontaneidade de participação


[1] Oskar Schlemmer, Tagebucheintrag vom 7. September 1931, in: Andreas Hüneke (Hg.), Oskar Schlemmer. Idealist der Form, Briefe, Tagebücher, Schriften 1912-1943. Leipzig, 1990, S. 238.