Do interior para o exterior - busca de destino livre

19 Outubro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Kandinsky – Palucca

Exercícios sobre a forma

 

Iniciámos a aula com o propósito de nos ocuparmos do ensaio de Wassily Kandinsky Sobre a questão da forma (1912), pela primeira vez publicado no Almanaque O Cavaleiro Azul. Debruçámo-nos sobre esta publicação (versão inglesa) para apreciarmos exemplos de pintura, aguarela, gravura, desenho, partituras musicais, estatuária, ensaio, uma composição para palco de Kandinsky, poesia. Um Picasso ao lado de um Rousseau, mais adiante pintura infantil, Van Gogh, Gauguin e Matisse, tudo o que pudesse ser representativo de diversas épocas artísticas, de diversificadas correntes artísticas e estéticas agradava aos dois amigos, Franz Marc e Wassily Kandinsky, que consideravam incluir nesta publicação desde  a arte egípcia, à arte oriental, à expressão modernista das vanguardas, entre outras, como se não houvesse barreiras entre elas, e se calhar não havia ou não há. Partimos do princípio de que o gesto artístico na sua diferenciação é o que produz a singularidade da obra em si mas também pode estabelecer correspondência com outras obras de forma infinita segundo o espírito de um almanaque que traça pontes entre várias áreas do conhecimento tal como era o objectivo desta obra publicada, associada a várias exposições em Munique e em Berlim.

Os elevados custos de O Cavaleiro Azul em grande formato e a cores, assim como o prejuízo editorial puseram termo ao juvenil empolgamento de Marc e Kandinsky virem a publicar um segundo exemplar do Almanaque. Um terceiro factor de impedimento adveio com o início da Primeira Guerra Mundial.

 

Tomemos como exemplo algumas das passagens finais do ensaio, de Wassily Kandinsky, Sobre a questão da forma, publicado em 1912 no Almanaque O Cavaleiro Azul. Apesar de ser um texto anterior à entrada de Kandinsky na Bauhaus, o que só viria a ocorrer em 1922, é um facto que o pintor russo dele se socorre para exprimir aos seus alunos o valor que tem uma decisão que deles brote de forma livre, mas a partir de um ímpeto ou «necessidade interior». Esta prorrogativa é exercitada em prol de um objectivo que consiste em tomar consciência da essência das coisas e compreender o fenómeno da abstracção apresentado como materialização da forma aberta. No curso de Desenho Analítico é isto que Kandisnky procura fazer. E será isto também que o Mestre desenvolve em sucessivos exemplos nas lições dadas na Bauhaus e que coligiu em Ponto, Linha, Plano (1926).

O ensaio de 1912, que estudámos, questionando-nos sobre o valor que as motivações internas em cada artista operam relativamente à representação exterior das mesmas, abrem possibilidades de associação entre elas a partir da liberdade de criação, mas também da recepção dessas mesmas obras.

 Na transição de 1912 para 1922/24, o pensamento teórico de Kandinsky revela um progressivo abrandamento em relação à ideia de “necessidade interior”, embora esta nunca tenha sido abandonada totalmente até ao fim dos seus escritos de concepção plástica. Portanto, é este factor - a «necessidade interior» - que determina a forma que a obra adquire. A dissemelhança produzida do ponto de vista exterior (Realismo, Abstraccionismo, Impressionismo, Expressionismo, Cubismo, etc.), que reconhecemos como característica que distingue cada obra por si, pertencente a cada estilo mencionado, não invalida, segundo Kandinsky, que possam existir afinidades entre obras que aparentemente nada teriam a ver umas com as outras. As afinidades encontram-se no domínio subjectivo e são elas que determinam, a partir dos elementos que constituem o quadro, a natureza da motivação do observador que deverá gozar da maior liberdade possível para apreciar obras exteriormente díspares.

A defesa do binómio

Realismo = abstraccionismo

Abstraccionismo = realismo

parece fazer de Kandinsky um defensor do  indefensável, mas que, segundo as suas teses, ganha sentido entre correntes estéticas que na sua dimensão figurativa adquirem leitura de natureza abstraizante. No Almanaque O Cavaleiro Azul, surgem imagens de obra de artistas que, de acordo com Kandinsky, reforçam a ideia de interioridade. Henri Rousseau é um entre vários casos.  

Os exemplos que aqui deixo e que respeitam a frase de Kandinsky: «A maior diferença exterior transforma-se na maior semelhança interior» (Kandinsky, A questão da forma, p. 24) podem, por exemplo, suscitar no observador a presença de quietude, solidão, teatralidade do espaço, ausência/presença da figura humana como reflexividade, simbolização dos elementos pictóricos, estatização/movimento, poética da cor. O carácter comum destas características de ambas as imagens poderão corresponder ao ponto de vista de Kandinsky presente no binómio e na sua fundamentação.

                                                                                                                       Henri Rousseau, Retrato de mulher, 1895   Wassily Kandinsky, Vila bávara e campo, 1910

 

Leituras relacionadas com a questão da forma e sua representação

JUSTO, José, Kandinsky e o Espírito. Três deambulações a propósito de «Fósforo Queimado, in: Anabela Mendes, 2003, Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, programa-livro do espectáculo, Lisboa: CCB, p. 69-74.

KANDINSKY, Wassily 1998. Sobre a questão da forma in: Gramática da Criação – Antologia de artigos apresentados por Philip Sers, Lisboa: Edições 70, pp. 13-37.

KANDINSKY, Wassily Curvas de dança, a propósito das danças da Palucca, Das Kunstblatt, Potsdam, 1926, in: Anabela Mendes, 2003, Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, programa-livro do espectáculo, Lisboa: CCB, p. 52.

KANDINSKY 1994. Complete Writings on Art, edited by Kenneth C. Lindsay and Peter Vergo, Paris, New York: Da Capo Press, Point and Line to Plane pp. 528-699 (selecção: pp. 538-571).

KANDINSKY, Wassily 1989, Ponto Linha Plano, Contribuição para a análise dos elementos picturais, tradução de José Eduardo Rodil, Lisboa: Edições 70, pp. 33-58.