Olhar as formas em muitas direcções

20 Outubro 2020, 15:30 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

Para melhor clarificação da sua proposta teórico-prática, Kandinsky propõe-se acompanhar três exemplos de pequenas formas que podem adquirir novas funcionalidades diversas daquelas que desempenham habitualmente: o da letra, o do travessão e o do fósforo queimado. Somos convidados a isolar uma «letra» de um texto e passamos a «intuí-la» «com olhos inabituais», «apenas enquanto coisa». Aquilo a que chegamos resulta de um primeiro passo que põe de lado a função «prática» da forma abstracta que é designação permanente de um determinado som» - é uma forma corpórea, que de um modo totalmente independente produz uma definida impressão exterior e interior.» A aplicação deste princípio satisfaz em modo idêntico o travessão libertado da sua funcionalidade. Ao fósforo queimado é concedido um pensamento final: «Mais vale tomar a morte pela vida do que a vida pela morte, mesmo que tal ocorra uma única vez. Nada poderá crescer a não ser num solo solto.» (Kandinsky, 1998: 37) Queimado o fósforo não quer dizer que nele não continue a existir vida.

Demos aqui outro exemplo exterior ao pensamento conceptual de Kandinsky mas que com ele tem convergência: o movimento das nuvens.

Refere Kandinsky que, nesta perspectiva a «letra» passa a consistir em duas coisas: 1. Uma «forma principal» inteiramente coincidente com o «fenómeno global»; 2. «diferentes linhas», desenhadas de maneiras diversas e combinadas nesse fenómeno global». A «forma principal» pode surgir como «divertida», «triste», etc. ou seja, pode provocar uma determinada impressão interior». O mesmo sucede com cada uma das «diferentes linhas» que se combinam na «forma principal».

Tudo neste exercício depende do «olhar inabitual». O que o «olhar inabitual» deve pôr de lado é precisamente o … habitual, o hábito, a habituação. O que é o hábito? O hábito é a sempre repetida, sempre reencontrada finalidade instrumental de um objecto.» (Justo, 2003: 71)

Esta nova partitura de entendimento da forma e suas derivações em função de um infinito novo olhar, aquilo a que Kandinsky chama o «olhar inabitual» integra bem o espírito e a concepção da Escola da Bauhaus. Acentua o pintor que o conceito de finalidade de um objecto lhe retira a possibilidade de poder vir a ser outra coisa.

É neste âmbito que nos encontramos, por agora, tendo em conta que o exercitar destas propostas características ajudava os estudantes da Bauhaus a desenvolverem capacidades de que antes não tinham a percepção e a consciência.

 

Recordo a importância de alguns testemunhos apresentados no filme Modelo e Mito.

 

Motivada por uma intenção pedagógica optei por passar da leitura de carácter mais teórico, com que se inicia o ensaio e de que fizemos recorte relativamente ao conceito de «necessidade interior», à exemplificação kandinskiana sobre a letra, o travessão e o fósforo queimado de que já falámos. Através destes exemplos seremos conduzidos de forma mais acessível à linguagem simbólica do pintor russo e aos objectivos através dos quais pretendia defender que «em princípio a questão da forma não existe». A sua noção de que o conteúdo de uma obra de arte se torna presente independentemente dos seus meios de expressão, e o facto de o criador afirmar que a forma, que é correcta do ponto de vista externo, pode estar errada do ponto de vista interno, isto é, a sua motivação pode não corresponder à «necessidade interior» que move o artista. É ainda de referir que a unidade interior que supostamente deriva da dissemelhança externa entre os elementos constituintes de uma obra de arte, em particular, de uma obra de arte «monumental», nos relembra um conceito afim. Este conceito, conhecido como de «obra de arte total», e muito caro a Richard Wagner, é criticado por Kandinsky por não produzir articulação de facto entre os vários elementos que constituem uma ópera sem que se evidencie  a supremacia da música sobre o drama cantado ou outras componentes do espectáculo. Estas premissas para além de se reverem em alguns dos códigos românticos das poéticas e estéticas do séc. XIX alemão (Friedrich Schlegel, Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling ou Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, conhecido como Novalis) ambicionam refundar um percurso que desde os Gregos Antigos mantinha ligação entre disciplinas artísticas (poesia, retórica, filosofia, teatro, música) e disciplinas científicas (matemática, física, astronomia) nascidas de um tronco comum como origem do conhecimento.

É neste contexto que se posiciona Kandinsky, neste seu ensaio, quando é favorável à simultaneidade e alternância da forma que figura e da forma que abstraíza. Ambas adquirem equivalência ainda que com distintos propósitos. E é por isso que Kandinsky defende a equação que já é nossa conhecida em ambas as direcções. (Kandinsky: 1998: 24)

Realismo = abstracção

Abstracção = realismo

À primeira vista, como dissemos, esta proposta parece absurda e talvez os alunos sobre ela se interroguem, como também aconteceu. Na verdade, a arte figurativa mantém perante nós uma relação de equilíbrio entre exterior e interior que somos capazes de identificar através dos mecanismos de funcionamento da empatia. A arte abstracta abre caminho para ultrapassar o circunstancial, a pequena ou a grande história da imagem, e também para recriar aquilo que constitui a sua exterioridade. Deste modo a arte abstracta torna-se mais exigente perante o observador suscitando a sua directa participação na formulação de sentido /de sentidos que a obra apresenta através de novas linguagens, novos posicionamentos que suscitam um «olhar inabitual». Diz Kandinsky. Diz José Justo. Poderemos nós dizer.

Quando nos referimos ao exemplo da letra é isso que procuramos desenvolver. Um lugar cativo da letra r na palavra “árvore” pode por deslocamento criar diferentes hipóteses de posicionamento. Os elementos alteram-se entre si e novas possibilidades surgem no horizonte da observação, recriação e activa relação com a obra de arte.

A imagem que podemos observar de Henri Rousseau Retrato de Mulher (Almanaque) e a que poderemos também comentar durante a visita ao site respectivo da Internet, Retrato da Senhora M são representativas da corrente estética do Realismo e não é por isso que Kandinsky as põe de lado. A representação dos objectos em si mesmos (os retratos de mulheres) adquire um carácter tão absoluto quanto aquele que integra a pintura abstracta. Em ambos os casos se verificam existir aquilo que na oposição os caracteriza: a verdadeira presença das suas características e qualidades. Em ambos os casos a «necessidade interior» ajusta, no caso de Rousseau, a maior ausência possível de elementos abstractos e, no caso de Kandinsky, a maior ausência possível de elementos realistas.

O Cavaleiro Azul comprova largamente esta perspectiva.

 

Leituras relacionadas com a questão da forma e sua representação

JUSTO, José, Kandinsky e o Espírito. Três deambulações a propósito de «Fósforo Queimado, in: Anabela Mendes, 2003, Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, programa-livro do espectáculo, Lisboa: CCB, p. 69-74.

KANDINSKY, Wassily 1998. Sobre a questão da forma in: Gramática da Criação – Antologia de artigos apresentados por Philip Sers, Lisboa: Edições 70, pp. 13-37.

KANDINSKY, Wassily Curvas de dança, a propósito das danças da Palucca, Das Kunstblatt, Potsdam, 1926, in: Anabela Mendes, 2003, Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, programa-livro do espectáculo, Lisboa: CCB, p. 52.

KANDINSKY 1994. Complete Writings on Art, edited by Kenneth C. Lindsay and Peter Vergo, Paris, New York: Da Capo Press, Point and Line to Plane pp. 528-699 (selecção: pp. 538-571).

KANDINSKY, Wassily 1989, Ponto Linha Plano, Contribuição para a análise dos elementos picturais, tradução de José Eduardo Rodil, Lisboa: Edições 70, pp. 33-58.