Em nome de uma dramaturgia de protecção

9 Março 2018, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

MARÇO                       6ª FEIRA                                        6ª Aula

 

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Temos vindo a verificar, ao longo de seis aulas, como se estrutura a peça de Elfriede Jelinek, Os Protegidos (2013-2016), quanto aos conteúdos e quanto à forma, que a autora lhe atribui. Poderíamos pensar que três anos de trabalho contínuo na composição desse texto justificariam a sua complexidade e apuro. Esse pressuposto não pode nem deve ser descartado, embora ele ganhe correspondência, num primeiro nível, a uma imagem geológica. Se observarmos a peça a partir de um corte longitudinal idêntico àquele que encontraríamos numa estrutura montanhosa, descobriríamos que as camadas geológicas se sobrepõem indiciando a passagem do tempo. O mesmo se poderá passar com esta peça de Jelinek.

Neste primeiro nível, a peça comporta-se como um aglomerado que agrega muitas textualidades. Diríamos na perspectiva geológica que a peça adquire muitas camadas: de Ésquilo a Ovídeo, de Messi às sopas Maggi, da General Motors/Opel a Iélzin e suas filhas, convoca particularidades e costumes da vida austríaca, desdobra um pouco do pensamento de Martin Heidegger sobre o tempo e o ser humano, faz-se eco da poesia do escritor menor alemão, Ludwig Rellstab, mas que ao ser musicado por Franz Schubert passa a materializar o gosto musical da própria autora. Tudo isto para escrever uma peça de tese sobre refugiados.

Significa este procedimento que estamos perante uma opção que procura ser abrangente e ao mesmo tempo atravessar várias texturas da existência humana singular em várias épocas. O assunto tratado e expandido nas diferentes linhas de entrelaçamento discursivo não diz apenas respeito aos refugiados de hoje mas a todos os refugiados de todos os tempos. Deste modo Jelinek universaliza o assunto que se vai complexificando e adquirindo cada vez maior exigência para quem lê, para quem encena, para quem representa e para quem assiste a essa representação.

Continuamos a não passar do primeiro nível. O texto dramático de Jelinek apresenta-se-nos por camadas sobrepostas que indiciam a passagem do tempo: o tempo da Áustria e o tempo da Europa actuais, mas igualmente o tempo de todos os continentes desde sempre. Basta que pensemos na função e no desempenho de As Suplicantes de Ésquilo entretecidas na textualidade geral.

O único tempo que não integra este mapa, e que por isso não é um espaço conflitual entre humanos, é o território antárctico. Por estranho que possa parecer, é por opção humana que este continente passou a recusar, desde 1959, a posse territorial para fins bélicos ou de apropriação exploratória, em moldes económicos e financeiros segundo os actuais modelos do capitalismo liberal. O Tratado da Antárctida consagra uma muito clara preservação deste continente, conferindo-lhe apenas a condição de ser um espaço científico para os países que demonstrem ter condições para fazerem investigação. Tal não inviabiliza que a Antárctida sofra com os malefícios do aquecimento global. De certo modo poderemos justificar a estratégia de Jelinek na sua peça, quando estende o caso de estudo (os refugiados de 2012 em Viena de Áustria) a um quadro de intercepções comportamentais da nossa espécie, como se não fosse possível educar e aprender, preservar valores e princípios com os quais estamos de acordo em sociedades democráticas, mas que parecemos desaprender de geração em geração. Os Protegidos são também reflexo deste estado de coisas.

Na Antárctida as condições climatéricas e geológicas são dominadas pelo frio extremo, por ventos excepcionalmente agrestes, pelo vazio branco, pelo silêncio profundo. Os malefícios dos homens não têm ali cabimento.

 

Os Protegidos começam então por ser uma resposta a um acontecimento do quotidiano, considerado um caso político, que é depois desconstruído e tratado de forma parodística mas também com uma profunda seriedade. Esta peça, como constatámos, aborda como assunto maior o desrespeito pelos direitos humanos. Instalados num acampamento diante da igreja Votiva de Santa Maria, em Viena, os refugiados de diversas proveniências, não possuem ainda visto legal de permanência em território austríaco, mas ao mesmo tempo deixaram de pertencer aos seus países de origem. O vazio legal em que se encontram e a incerteza quanto ao futuro potenciam o discurso dos mesmos sobre a incongruência das suas vidas miseráveis, as memórias próximas de conflitos vividos, e a indiferença com que outros seres humanos, nomeadamente aqueles que podem decidir a curto prazo sobre as suas vidas, se tornam entraves conscientes e arrogantes a que exista real protecção aos estrangeiros que chegam à Áustria e à Europa, mas também a outros países como o Canadá, os EUA, a Islândia, que não faz parte da União Europeia, activando a condição mundializada do problema.

A peça, como foi dito, começa por integrar informação de um caso concreto, abrindo-se a outros assuntos decorrentes da expansão do primeiro, temas e motivos que irão compor a estrutura textual e torná-la cada vez mais elaborada.

Uma das possibilidades de identificação de cruzamentos nasce com os nomes utilizados no corpo textual que estabelecem outras ligações entre presente próximo e longínquo passado. A título de exemplo recordo: Boris Iéltsin, Helena Okulova, Tatyana Yumasheva Dyashenko, Sberbank, Europa, Io, mas também as diversas possibilidades de entendimento que o conceito de Deus/deus/ Ser supremo pode significar.

A passagem a um segundo nível de articulação das diversas incidências na peça não ocorre de forma sistemática e sucessiva, antes surgindo sob a lógica do puzzle que se monta, se cola, se cita de forma directa ou indirecta. Esta estratégia ocorre num segundo nível textual como dinamização conceptual e de linguagem. As camadas geológicas são abaladas por um tremor de terra. Estamos naturalmente perante um caso de intertextualidade múltipla, uma vez que os procedimentos são vários.

Introduzimos agora um outro campo metafórico: passa mos ao tecido e às suas reticulações de fios. Do ponto de vista formal constatamos que todas as articulações, todas as ligações temáticas, todas as redes que transformam o texto dramático fazem-no como tessitura reticular. Esta imagem do grande pano como trama em várias direcções é o produto de uma linguagem que se constitui em modelo, modelando-se.

Este modelar-se resulta num paradigma para o desrespeito pelos direitos humanos que acontece todos os dias na Europa, em todo o mundo. A própria linguagem faz explodir as fronteiras da Áustria, colocando em xeque todos os países que praticam e defendem o neo-liberalismo na economia e na política, na vida social, no plano individual.

 

Leituras recomendadas:

ELFRIEDE JELINEK, Die Schutzbefohlenen (Os protegidos), 2013-2016, tradução de Anabela Mendes, dactiloscrito, 2017.

http://www.elfriedejelinek.com/

https://www.youtube.com/watch?v=fxeEpHMYtUw

ÈSQUILO, As Suplicantes, prefácio, tradução e notas de Ana Paula Quintela Ferreira Sottomayor, Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, 1968.

 

ÉSQUILO, As Suplicantes, prefácio, tradução e notas de Ana Paula Quintela Ferreira Sottomayor, Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, 1968.

ÉSQUILO, As Suplicantes, Tradução de Urbano Tavares Rodrigues, Porto: Inquérito, s/d.

OVÍDIO, Metamorfoses, Introdução e tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Lisboa: Edições Cotovia, 2014.