A ICONOLOGIA, ENTRE ABY WARBURG E ERWIN PANOFSKY: AS POSSIBILIDADES DA TEORIA COMO MÉTODO.

23 Março 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 

     Eis que a ICONOLOGIA ultrapassa a sua dimensão de ramo operativo da História da Arte e, do seu bom uso, é capaz de apontar sentidos, descodificar programas, entretecer mistérios que as imagens oferecem aos espectadores, ao longo dos tempos. Depois do uso do termo no dicionário de símbolos que Cesare Ripa editou em Roma (Iconologie, 1593) e reeditou, ilustrado, em 1603, a Iconologia ressurge em Roma, em Outubro de 1912, no X Congrès International d’Historiens d’Art, por palavras de Aby Warburg (1866-1929), ao expôr a sua «leitura iconológica» dos frescos do Palazzo Schifanoia em Ferrara, em oposição às leituras formais e estritamente descritivas dos seus colegas. Na sua biblioteca de Hamburgo, Warburg reuniu até à sua morte materiais de approche interdisciplinar da História da Arte com a Astrologia, a História das Religiões, a Antropologia, a Sociologia, a Literatura, o Folclore, etc, assim nascendo o Instituto Warburg, que achegada do regime nazi obrigará a transferir em 1933 para Londres. Sob direcção de Fritz Saxl, o Instituto recebe grande impacto: aí se formarão Ernst Cassirer e erwin Panofsky, entre outros...

     No livro Through the Looking-glass and what Alice found twere, Lewis Carroll narra o fascínio de Alice, junto ao gato negro Kitty, pelo grande espelho que a intriga, onde se reflecte o quarto em que está encerrada, até ao momento em que finalmente atravessa o espelho e penetra na sua aventura. Aí, dentro, tudo é igual à imagem que Alice podia ver reflectido na superfície, mas tudo o que não era entrevisto na imagem reflectida é, pelo contrário, muito diferente do imaginável... É o mundo da fantasia, todavia com regras precisas, um mundo que Alice tem de percorrer para o poder compreender na sua globalidade... Através do espelho... Através da imagem... A abordagem iconológica encontra nesta dimensão de total descobrimento as suas puras raízes, o seu inflamado desejo de flanquear a superfície das das obras de arte para desvendar o seu lado escondido, a sua face oculta... A História da Arte passou o tempo ’vasariano’  das biografias e o tempo ‘morelliano’ das leituras formais dotadas da maior cientificidade, aprendendo nas várias vertentes – histórica, documental, laboratorial, sociológica, semiótica – um pouco da sua especificidade como disciplina dotada de fascínios no modo sempre irrepetível de saber ver em globalidade as obras de arte.

     Discípulo de Aby Warburg, Erwin Panofsky (Hannover, 1892-Princeton, EUA, 1968) graduou-se em 1914 na Universidade de Friburgo, com uma tese sobre o pintor alemão Albrecht Durer, depois de estudar em várias universidades alemãs. Em 1916 casou-se com Dora Mosse, também historiadora da arte. Em 1924 aparece a primeira de suas grandes obras: Idea: uma contribuição para a história das ideias na história da arte, em que examina a história da teoria neoplatónica na arte do Renascimento. Entre 1926 e 1933 foi professor na Universidade de Hamburgo, onde havia começado a lecionar em 1921. Abandonou a Alemanha quando os nazis tomaram o poder em 1933 (era de ascendência judia) e instalou-se nos EUA, para onde havia viajado como professor convidado em 1931. Foi professor no Instituto para Estudos Avançados da Universidade de Princeton (1935-1962), e também trabalhou nas universidades de Harvard (1947-1948) e New York (1963-1968), e foi amigo de Wolfgang Pauli, um criador da física quântica. Para Panofsky a História da Arte é uma ciência com três momentos inseparáveis do acto interpretivo na sua globalidade: a leitura de sentido fenoménico da imagem; a interpretação de seu significado iconográfico; e a penetração de seu conteúdo como expressão de valores. A arte moderna (que estudou profundamente) são assim analisadas em Renascimentos e Renascimentos na Arte Ocidental.

     Panofsky fazia, naturalmente, a distinção entre ICONOGRAFIA e ICONOLOGIA. Em Studies on Iconology (1939), dando exemplos sobre as diferenças. Definiu iconografia como o estudo tema ou assunto, e iconologia o estudo do significado. Ele exemplifica o ato de um homem levantar o chapéu. Num 1º momento (ICONOGRAFIA) é um homem que retira da cabeça um chapéu, num 2º momento, (ICONOLOGIA) menciona que ao levantar o chapéu, esse gesto é "resquício do cavalherismo medieval: os homens armados costumavam retirar os elmos para deixar claras suas intenções pacíficas". Enfatizando a importância dos costumes cotidianos para se compreender as representações simbólicas. Em 1939, Panofsky já detalha as suas ideias sobre os três famosos níveis da compreensão da História da Arte: Primário, aparente ou natural: o nível mais básico de entendimento, esta camada consiste na percepção da obra em sua forma pura. Tomando-se, p. ex., uma pintura da Última Ceia. Num 1º nível, o quadro poderia ser percebido somente como uma pintura de treze homens sentados à mesa. Este 1º nível é o mais básico para o entendimento da obra, despojado de qualquer conhecimento ou contexto cultural. Secundário ou convencional: Este nível avança um degrau e traz a equação cultural e o conhecimento iconográfico. Por exemplo, alguém no Ocidente veria na pintura de treze homens sentados a uma mesa seria a Última Ceia. Similarmente, vendo a representação de um homem com auréola e chapéu de cardeal e acompanhado por um leão poderia ser interpretado como São Jerónimo (por exemplo). Significado Intrínseco ou conteúdo (Iconologia): este nível leva em conta a história pessoal, técnica e cultural para entender uma obra. Parece que a arte não é um incidente isolado, mas um produto de um ambiente histórico. Usando bem estas ‘camadas’, o historiador de arte coloca questões como "por que razão São Jerónimo foi importante para o patrono desta obra ?" Esta última ‘camada’ é precisamente a síntese; é o historiador da arte questionando «o que é que a obra significa»… Para Panofsky era importante considerar sempre estes três estratos. Para Irving Lavin, "era esta insistência sobre o significado e sua busca - especialmente nos locais onde não eram suspeitáveis - que levou Panofsky a entender a arte, não como os historiadores haviam feito até então, mas como um empreendimento intelectual no mesmo nível que as tradicionais artes liberais".

     Recordando o modo como o estudo do significado das obras de arte foi esquecido, compara a Iconologia com a Geologia e a Iconografia com a Geografia: esta limita-se a registar as coisas terrenas, enquanto que a Geologia estuda as estruturas, a origem, a evolução, a coerência dos diversos elementos e materiais do planeta... Esta imagem metafórica pode-se aplicar à Cosmografia /Cosmologia e à Etnografia /Etnologia, que permitem o mesmo raciocínio: estas disciplinas limitam-se a constatar, as últimas a explicar e interpretar... Assim, Hoogewerff seguirá o ‘colossal trabalho iconográfico’ de Émile Mâle para traçar as bases de uma iconologia da arte cristã medieval em França. A hagiografia, as crenças e superstições, a história dos Concílios, a patrologia, a himnologia, os apócrifos, os textos sagrados, servem-lhe para compreender ‘iconologicamente’ o sentido da arte românica e gótica francesa. A introdução, em 1939, aos Studies in Iconology de Erwin Panofsky  (N. York), verdadeiro fundador da Iconologia (após Warburg) no sentido do seu amadurecimento científico, vai aprofundar estes conceitos e fazer a célebre distinção entre os três níveis de leitura das obras de arte: 1. Nível pré-iconográfico, com descrição ‘primária e natural’ das peças, eventos, objectos e imagens em termos estritos de formas e estilos; 2. Nível iconográfico, com ‘análise dos temas e conceitos específicos’ expressos pelas peças segundo as fontes literárias e/ou o seu tipo ou época; 3. Nível iconológico, onde se situa a leitura interpretativa dos significados intrínsecos da obra em apreço segundo o quadro contextual (social, ideológico, político, etc) e segundo o quadro mais lacto dos símbolos e códigos que a informam como «tendência essencial do espírito humano».

     Na prática, a ICONOLOGIA dedica particular relevo ao estudo dos textos, dos contextos e dos programas: todas as obras de arte têm um programa interno, que pode ser perceptível. O modelo conceptual de Aby Warburg, Cassirer, Saxl, Shapiro e Panofsky, buscava já englobar forma, sujeito e sentido na sua abordagem das obras de arte. É certo que os estudos iconológicos têm dado ênfase a temas do Renascimento (como o ensaio de Panofsky e Fritz Saxl, de 1923, sobre a Melencolia I de Durer), e tem negligenciado outras épocas artísticas – mas tal não deve ser visto como sinónimo de fraqueza, mas sim como falta de aplicação integral do seu modus faciendi... O uso da Iconologia, tal como praticado após a morte dos seus fundadores, tem tido recuos e «vulgatas» redutoras. É certa, e tem dose de verdade, a crítica de que alguma iconologia presta mais atenção aos textos literários que às obras de arte. É certo, e tem dose de verdade também, a crítica de que alguma iconologia se perde nas gavetas infindas das colecções de gravura na sua busca desenfreada de um «sentido escondido» em todas as imagens, e de lhes determinar a priori um sentido determinado de que depois tenta fazer prova... Enfim, é também certo que a obra de arte se não pode reduzir aos seus códigos de significação, e que a «irredutibilidade» de alguma Iconologia presta um mau serviço ao estudo integral da obra de arte, por não a deixar expressar livremente os seus códigos estéticos... Algumas destas críticas colhem fundo: em nome da iconologia, tem-se praticado uma H. de Arte redutora. Mas convém lembrar também que, num prisma bem diverso, a Iconologia suscitou outro tipo  de críticas (o maccarthismo nos EUA versus a teoria de Panofsky, desconfiando do uso do termo ‘ideologia’...). A questão reside, segundo o grande historiador de arte, na operacionalidade do método: «a Iconologia é uma técnica que quedará fundamental para a identidade dos géneroas de imagem e no uso das fontes», aduzindo que importa também ter-se em conta a necessária «abertura» inerente à arte e à interpretação dos símbolos e códigos artísticos.

     Tudo reside no pensamento fundador de Aby Warburg, segundo o qual o que importa à ICONOLOGIA é saber abrir as fronteiras entre várias matérias do saber, entre várias disciplinas das Humanidades, redefinindo noções como «contexto» e «programa artístico» e articulando vias interdisciplinares de saber ver as obras de arte na sua carga de integralidades. 

 

A Primavera de Sandro Botticelli

     Sandro Boticelli nasceu em Florença em 1445 e ali faleceu em 1510. Foi discípulo de Fra Filippo Lippi, cujos modelos seguiu nos primeiros tempos da sua actividade, e, à excepção de curto período em Roma (1481-82; obras como a História de Moisés na Capela Sistina), permaneceu sempre em Florença. Esteve ao serviço dos Médici, em especial de Lorenzo di Pierfrancesco de Medici (primo de Lorenzo de Medici, muito influenciado pela obra de Poliziano e Marsilio Ficino), para quem pinta entre 1478 e 1484 as célebres Primavera e Nascimento de Vénus. Foi também para Lorenzo di Pierfrancesco que Botticelli fez os desenhos para uma das edições da Divina Comédia de Dante. Do que se conhece da biografia do pintor verifica-se que trabalhou sobretudo para a burguesia florentina, uma clientela culta de formação neoplatónica. Com a maturidade, o seu modo estilístico ganha em pessoalismos e afasta-se quer de Filippo Lippi quer de Verrochio e Pollaiuolo. As referências à Primavera e ao Nascimento de Vénus multiplicam-se ao longo dos tempos em perspectivas diversas (formalistas, positivistas, técnicas, botânicas, etc). Na perspectiva iconológica, são fundamentais as obras de Aby Warburg (1893), de Erwin Panofsky Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental e de Edgar Wind Pagan Mysteries in the Renaissance (trad.: Los Misterios Paganos del Renacimiento). O estudo de Mirella Levi d’Ancona, (Due quadri del Botticelli eseguiti per nascite in Casa Medici, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1997) envolve conceptualizações úteis, a ponderar cuidadosamente, dado que envolvem aspectos polémicos ou redutores.

 

     A eterna «Primavera». Poucos quadros poderão almejar o estatuto de «Pintura do Século» como A Primavera de Botticelli, uma das obras de inspiração mitológica que o autor (criador do género) realizou na década de 1480 à sombra do mecenato dos Médicis. Foi pintado para o primo segundo de Lorenzo o Magnífico, Lourenço de Pierfrancesco, que se tornaria protector do pintor, tendo sido discípulo do poeta Poliziano e do filósofo Marsílio Ficino, animador da Academia Platónica que se reunia num dos palácios dos Médicis, a Academia de Careggi, nos arredores da cidade. Apesar da controvérsia que a identificação das fontes de inspiração da pintura suscita, a leitura de Edgar Wind (Pagan Misteries in the Renaissance, 1968), a seguir à pioneira interpretação de Warburg, é a mais abrangente e lúcida, baseando-se precisamente na conjugação de textos antigos e modernos proporcionados ao pintor por Poliziano e ainda nos princípios da Theologia Platonica de Ficino.

     A leitura do quadro deve ser feita da direita para a esquerda. A primeira tríade de personagens representa a metamorfose da ninfa Clóris na esplendorosa Flora, por acção do vento fecundante da Primavera, Zéfiro. Inspira-se num passo dos Fastos do poeta latino Ovídio, e asim se justificam as quinhentas espécies botânicas representadas, atapetando os planos da composição, documentando o interesse científico dos artistas do Renascimento pela Natureza. Em contraponto, no lado oposto, vemos a segunda tríade, constituída pelas Três Graças, Castidade, Beleza e Volúpia. Entre ambas, Vénus, Deusa do Amor, comanda a acção que seu filho, Cupido, energia do Amor, desencadeia, ao disparar, cego, as flechas com o fogo da Paixão, na direcção da Castidade. Se, na primeira tríade, vemos um princípio produtor em que a Paixão fecunda a terra e a transforma «em sons e cores» (como diria Fernando Pessoa), na segunda emerge um princípio conversor em que a energia do Amor Divino desencadeia na Alma a procura da Verdade. De facto, o olhar da Castidade vira-se para Mercúrio, última figura desta istoria, mensageiro dos Deuses, líder das Graças e intérprete dos segredos, que, afastando com o seu caduceu as nuvens da obscuridade, conduz o intelecto na contemplação da luz escondida da Beleza intelectual. Uma tão sublime interpretação do ideal de Amor e Beleza, tal como o concebia o Humanismo florentino, dificilmente voltaria a ser alcançada, pelo que este quadro se transformou no ícone do próprio Quattrocento, coração artístico e filosófico de um Renascimento que será sempre, na história dos homens, uma eterna Primavera.

     O título da obra, Primavera, decorre da referência do pintor e escritor florentino Giorgio Vasari (nas Vite, 1550), segundo o qual a pintura “significa a Primavera”. De acordo com E. Wind, as fontes clássicas utilizadas por Botticelli foram principalmente os textos de Poliziano e, deste, as referências às Odes de Horácio e aos Fastos de Ovídio, em episódios não forçosamente interrelacionados. Na cena da direita vê-se Zéfiro, o vento da Primavera, a tentar tocar a ninfa Cloris, que se escapa. Do vento que sai da boca de Zéfiro escapam algumas flores que, ao tocarem Cloris, a transformam em Flora, a terceira figura do grupo e a mensageira da Primavera. Iremos encontrar nos Fastos de Ovídio o jogo etimológico que transforma a ninfa Cloris a deusa romana Flora: (Chloris eram quae Flora vocor). Há neste primeiro grupo uma clara alusão a um ciclo de tempo, mas não de um tempo cronológico, stricto sensu, mas do tempus que a idea platónica compõe ciclicamente. Como Wind refere, a criatura primitiva e tímida de Cloris (tal como Ovídio a descreve) dá lugar à beleza vitoriosa da Flora. Mas foi a timidez e singeleza de vestuário, uma túnica quase transparente, que atraiu Zéfiro e fez dele “um fiel marido que a fez germinar e exibir mil cores de flores novas (Fastos)”. Este grupo da direita está, evidentemente, relacionado com as três figuras da esquerda, as Três Graças, baseando-se numa relação dialéctica ovidiana da trilogia pulchritudo, castitas, voluptas. Enquanto no grupo da direita se denota uma criação da beleza, que está na figura central da pintura – a deusa Vénus, como sugeria Vasari – é desta divindade que decorre a presença das Três Graças, as ninfas que sempre estiveram ao seu serviço. Ao alto, sobre a cabeça da deusa, um Cupido de olhos vendados, dirige a sua seta para a Graça que se encontra no centro do grupo de três.

     Observando o grupo das Três Graças verificamos que se relacionam como numa dança, denunciada pelo modo como colocam os pés em sequência de movimento. A Graça ao centro é, pelo seu vestuário e ausência de adornos, a Castitas. Veja-se a simplicidade do vestuário e a simplicidade das pregas da túnica, em evidente contraste com as suas companheiras. Por outro lado o rosto apresenta uma expressão triste e melancólica enquanto a Voluptas exibe um vistoso penteado, com tranças serpenteantes e uma jóia sumptuosa no peito, e túnica a acentuar as curvaturas do corpo. É a energia voluptuosa. A terceira graça, a Pulchritudo, é a que exibe orgulhosamente a sua beleza. A sua jóia é mais modesta e os cabelos não esvoaçam, serpenteantes, mas exibem um penteado cuidado menos espectacular que o da Voluptas. O facto de as Três Graças se apresentarem vestidas com túnicas e não exibindo nudez, como viria a acontecer em pinturas de outros mestres e, sobretudo, em épocas mais tardias, decorre, uma vez mais de autores clássicos, como Horácio e Séneca, como é de Horácio que resulta a sua gestualidade e também o facto de não olharem, exibicionisticamente para o exterior. Aquilo a que Wind chama a coreografia da dança tem, mais uma vez, correspondência nas alusões da literatura clássica: “Ille consertis manibus in se redeuntium chorus” (Séneca). Estes atributos e gestualidade, obviamente decorrentes de fontes literárias, não se limitam a eles porque se limitam  a «reforçar o sentido da acção» (Wind). «Enquanto a “verde” Castitas e a “abundante” Voluptas aproximam-se, a Pulchritudo mantém-se pura e serena no seu esplendor, aliando-se à Castitas, agarrando-a pela mão e unindo-se à Voluptas num gesto florido» (Wind).

     Há, naturalmente, um sentido dialéctico neste relacionamento entre as três graças  (e sob este ponto de vista encontramos aproximações entre as perspectivas de E. Wind e de E. Panofsky), sentido esse  que se definirá pela «oposição», «acordo» e «acordo na oposição», todas estas atitudes reflectidas pelos movimentos corporais, pela elegante colocação das mãos que se entrelaçam e, no caso da Voluptas e da Pulchritudo, se unem como que formando uma coroa sobre a Castitas, que elas próprias vão iniciar no Amor e, consequentemente, na tríade que acompanha Vénus. A ideia de Vénus, tradicionalmente identificada com a deusa do Amor, sofreu algumas alterações desde as palavras do humanista Pico della Mirandola (que seguiu Plutarco) até Marsílio Ficino que, ao retomar, em versão sua, o mesmo Plutarco,  permite a Boticelli a introdução na dança das Três Graças de um sentido de decoro, sentido ausente da «enérgica vitalidade» (Wind) da relação do grupo da direita, quando Zéfiro se aproxima de Cloris, produzindo uma Flora com o «aspecto de jovem camponesa louçã» (Wind).

     Seguindo à letra a interpretação de Edgar Wind, “quando a Paixão (na figura de Zéfiro) transforma a fugidia Castidade (Clóris) na Beleza (Flora), a progressão representa o que Ficino denominou como «tríade produtiva»”. Daí que, quando estas três figuras se “transformam” nas Três Graças, passam a uma «tríade convertida» em que a Castitas, ao centro, se mantém virada de costas para o observador dirigindo o olhar para o “mais além”. E esse mais além é, nada mais nada menos, que a figura de Mercúrio que ergue o caduceu não para os frutos que pendem da árvore, mas sim para o pequeno grupo de nuvens que se acumula junto dos ramos.

     Qual a razão da presença de Mercúrio neste conjunto ? Resumindo os textos de Wind e as fontes clássicas, designadamente Vergílio (Eneida) e Boccaccio (Genealogia dos Deuses) teremos que Mercúrio, por tradição o guia das Três Graças, é simultaneamente aquele que conduz ao mais além, simbolizado na pintura pelas nuvens. E, curiosamente, esse mais além pode ser «lido» como a morte, identificável no seu manto pelo símbolo neoplatónico das múltiplas chamas invertidas  (divinus amator). Mercúrio assume uma multiplicidade de funções e significados que estabelecem o relacionamento não apenas com os grupos já mencionados, mas também com a deusa Vénus. O deus que domina as nuvens e os ventos “não era apenas o mais astuto e veloz de todos os deuses, o deus da eloquência, o guia das almas dos mortos, o acompanhante das Graças, o mediador entre mortais e deuses, aquele que salva a distância entre a terra e os céus; para os humanistas, Mercúrio era o deus engenhoso de intelecto indagador, sagrado aos olhos de gramáticos e metafísicos, o patrono dos eruditos e da interpretação, o revelador do conhecimento hermético, do qual o seu bastão mágico (o caduceu) chegou a ser símbolo” (Wind). Todavia, de todas estas funções, aquela que mais se aproxima do significado do  grupo das três graças, será a da divindade que atinge o «mais além». E não é certamente por acaso que Botticelli representou a Castitas de costas para o observador e dirigindo o olhar para o mais além representado nos poderes de Mercúrio, seu guia e companheiro. Será ele que romperá as nuvens, permitindo o acesso à luz divina.

     Tendo em conta a filiação da pintura nos textos dos clássicos e dos humanistas que retomaram os seus textos e referências, é possível concluir, com Edgar Wind (e também com Panofsky e, menos directamente, com André Chastel), que “não é possível compreender totalmente a composição da pintura, nem entender completamente o papel de Mercúrio, até que se observa a simetria de composição entre esta divindade e Zéfiro”. Virar as costas ao mundo com o distanciamento de Mercúrio e regressar a ele com a impetuosidade de Zéfiro, são essas as duas forças complementares do amos, de que Vénus é a guardiã e Cupido o agente: «A Razão é a rosa dos ventos, mas a paixão é a tempestade»(Alexander Pope, apud Wind)”. Mais ainda, se Zéfiro simboliza mitologicamente o vento, Mercúrio é o condutor das nuvens e, consequentemente, uma espécie de deus do vento (Ventus agere Merurii est, Boccacccio, in Genealogia dos Deuses). Assim, “Zéfiro e Mercúrio representam duas fases de um processo  periodicamente recorrente: o que desce à terra como sopro da paixão, regressa ao céu no espírito da contemplação”.

 

Bibliografia seguida neste texto de apoio

Aby Warburg, O Nascimento de Vénus e a Primavera (de) Sandro Botticelli, trad. Portuguesa, Ymago.

André Chastel, Marsile Ficin et l’Art, Genève, Droz, 1996

Giorgio Vasari, Les Vies des Meilleurs Peintres ...., Vol 4, Paris, Berger-Levrault, 1983, pp. 253-266.

Erwin Panofsky, Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, Lisboa, Presença, 1981

Erwin Panofsky, Estudos de Iconolgia, Lisboa, Estampa, 1986

Edgar Wind, Pagan Mysteries in the Renaissance, Oxford University Press, 1980 (ed. espanhola Los Misterios Paganos del Renacimiento, Madrid, Alianza, 1998). Um Mirella Levi d’Ancona, Due quadri del Botticelli eseguiti per nascite in Casa Medici, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1997