Sumários

Balanço do programa ministrado e diswcussão de trabalhos.

6 Maio 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Balanço do programa ministrado e diswcussão de trabalhos.


O conceito de Trans-Contemporaneidade das artes.

4 Maio 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

UM CONCEITO EM REFLEXÃO: A TRANS-CONTEMPORANEIDADE DAS ARTES

Constatamos que a História da Arte é tanto o campo ilustre das produções auráticas como a estrada ínvia da destruição, e esquecimento. É por isso que se torna tão importante estudar os mecanismos fugazes de «apreciação» e «gosto» e afirmar a potencialidade das artes como obras vivas que perduram e põem questões sempre renovadas. É por causa do seu imenso poder impactante (para além das estritas teias da «época») que elas nos atiçam para um olhar estético que é absoluta e permanentemente trans-contemporâneo. É esse olhar que precisa de se reforçar, já que permite, senão apagar, ao menos minorar os actos de iconoclasma e a insustentável miséria de todo o tipo de censura. E, se é possível sonhar, criar pontes mais solidárias entre as pessoas…Afirmamo-lo com plena convicção: é arte contemporânea o painel com um auroque gigante, gravura paleolítica com 23.000 anos, recém-localizado no Vale do Côa (junto à Rocha 9 do Fariseu). Como todas as obras de arte, também esta não prescinde nem de uma percepção trans-contextual que lhe esclareça o percurso, nem de olhares plurais e afectivos que dialoguem com a plenitude das suas auras. É por isso que toda a arte é trans-contemporânea. 

Há que destacar, portanto, a condição trans-contemporânea de todas as obras de arte (tenham elas sido criadas em tempo pré-histórico, medieval, moderno ou dos nossos dias) já que, na sua dinâmica inesgotável, única e irrepetível, a arte é sempre um exercício de engenho que se situa algures entre o desafio, o testemunho e a inquietação. É por isso que de per si se assume um terreno de permanente contemporaneidade na medida em que (disse-o Arthur C. Danto), seja no ontem, no hoje ou no amanhã, elas põem sempre à prova a nossa sensibilidade de interlocutores, para além do seu lastro sacro,  ideológico ou cultural mais preciso. É preciso, dizia Giulio Carlo Argan, saber olhar e ver. História e crítica da arte são faces da mesma moeda, trata de obras que são sempre contemporâneas aptas para a fruição integral do e no nosso tempo. Somos fruidores comprometidos. A arte anseia por integralidade de olhares. A arte tem essa capacidade extraordinária de assumir dimensão trans-contemporânea nas infinitas capacidades de suscitar visões críticas (ontem, hoje, amanhã), mesmo que a cadência de modas, gostos, valências, critérios de aferição, imponha bitolas valorativas distintas...  Tudo ganha sentido nos sentidos, e é plausível sonhar, perceber e, no campo da fé, crer. O estudo da arte sacra proporciona saberes históricos, estéticos, iconográficos, ideológicos, coisas da específica ordem do tempo, da razão, do gosto e da encomenda, sentidos iconológicos, simbólicos, espirituais, parcelas de identidade que formam nexos, cadeias de referência, laços de memória, afectos que perduram e se renovam. A valência aurática que define o território das artes não desaparece pois as obras de arte são de per si trans-contemporâneas. O encontro que temos com a arte é agora», disse Frances Morris, directora da Tate Modern: «As obras de arte não são artefactos arqueológicos: a experiência que desencadeiam é única e singular» (…); «é muito libertador pensar que a História da Arte linear escrita por um determinado conjunto de académicos ocidentais é apenas e só uma narrativa entre outras. Quando pensamos na arte australiana aborígene é evidente que encontramos ali uma compreensão inteiramente diferente da nossa do que seja o tempo ou, por exemplo, o sonho».  Por isso, mais do que aprender com os livros, catálogos e artigos que falam de artes e artistas, o que importa mesmo é o modo íntimo com que vemos as obras: «encorajo toda a gente a ler a História da Arte em livro, mas o encontro de cada um com a arte é agora, não é na história». É, sim, na nossa própria história… 

A IMAGEM ARTÍSTICA COMO EFEITO DE UMA LEITURA  ORGANIZADA «Faire un catalogue ne revient pas à un pur et simple savoir des objects logiquement empruntés. Car il y a toujours le choix entre dix manières de savoir, dix logiques d’agencement, et chaque catalogue particulier résulte d’une option – implicite ou non, consciente ou non, ídéologique en tout cas – à l’égard d’un type particulier de catégories classificatoires. En deçà de catalogue, l’attribution et la datation elles-mêmes engagent toute une ´philosophie’ – à savoir la manière de s’entendre sur ce que c’est une ‘main’, la paternité d’une ‘invention’, la regularité ou maturité d’un ‘style’, et tant d’autres catégories encore qui ont leur propre histoire, ont été inventées, n’ont pas toujours existé. C’est bien l’ordre du discours qui mène, en histoire de l’art, tout le jeu de la pratique». (Georges Didi-Huberman, Devant l’image. Questions posées aux fins d’une histoire de l’art,  Paris, éd. Minuit, 1990). 


O livro 'Florença e Bagdad' de Hans Belting.

29 Abril 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Na sua obra mais recente, Hans Belting desenvolve um confronto entre as atitudes perante a imagem nos séculos XV e XVI entre Constantinopla, capital otomana, e o Renascimento cristão, e não se contenta em explicar a atitude crítica do Islão face às imagens em nome do interdito religioso e do combate à idolatria, mas fazendo intervir as especificidades estéticas, sociais e científicas dessa cultura, em oposição à cultura do Ocidente, através de uma fascinante interpretação, que abre portas aos estudos integrados de História da Arte. O ensaio é especialmente  inovador: centraliza-se nas realidades de Florença e Bagdad, entabula um diálogo/confronto entre as culturas cristã e árabe, e põe em questão o papel assumido pelos códigos imagéticos de ambas. Constatando que o olhar ocidental nasceu no Renascimento florentino com a perspectiva científica e o realismo ao natural, e abriu um novo género de imagens exportadas pelo mundo, observa quão distinto é o mesmo olhar no mundo islâmico e o modo como esse olhar se exprime no campo artístico. Saído em alemão em 2008 e muito traduzido, o livro de  Belting retoma a invenção da perspectiva e suas consequências na arte ocidental a partir do Renascimento. Mostra um grau surpreendente de envolvimento com a arte e a cultura do Oriente, território que, para a maioria dos ocidentais, é literal e metaforicamente estrangeiro. Belting está ciente das armadilhas que a H. Arte  europeia enfrenta nesse desafio. Observa que um ramo da ciência árabe buscava combinar os campos da Física e da Matemática, e vai criar uma teoria da visão não-pictórica baseada na abstracção geométrica. Concebida pelo polímata Abu Ali al-Hasan Ibn al-Haytham (965 a 1040), ou Alhazen,  exposta em  Kitāb al-Manāzir (Livro de Óptica). Tal teoria assenta na noção de recepção visual / intromissão: os raios de luz irradiam a partir de pontos na superfície de um objecto, convergindo no olho como uma forma ( sura ) –na, inversão da teoria clássica de extromissão que afirma que os raios emergem a partir do olho. Alhazen também abordou o que chamou de  khayāl, variabilidade da imagem do objeto de acordo com as condições de luz, distância, ângulo de visão etc, e a relação entre as qualidades de um objeto visível e a sua representação mental, função que denominou  ma 'ānī .  Belting não só explica essa atitude crítica do Islão face às imagens em nome do interdito religioso e o combate à idolatria, mas destaca as especificidades estéticas, sociais e científicas dessa cultura, opondo-a à do Ocidente, numa interpretação fascinante que muito interessa aos historiadores de arte.  Não esquece os momentos de contacto e partilha, por exemplo no contexto da viagem a Istambul do pintor veneziano Gentile Bellini para retratar o Grão Turco Mehmet II e a oferta que outro Sultão faz a Roma, em 1492, ao devolver ao Papa Inocêncio VIII certas relíquias cristãs. 

A recepção ocidental do Livro da Ótica, conhecido na Europa pelo título latino de Perspectiva , catalisou o surgimento de uma teoria pictórica que fez do olho humano o ponto central de toda percepção e permitiu que os artistas reproduzissem esse olhar. A interpretação errónea da tradução de Alhazen sugeriu aos leitores de latim que a teoria da visão também deve envolver um estudo de figuras. Ao escrever o Perspectiva, o matemático Biagio Pelacani da Parma (m. 1416) abriu o caminho para a perspectiva linear, colocando o espaço vazio como entidade geométrica em si, volume mensurável (inovação necessária para se chegar ao conceito da imago). Como Martin Jay e David Summers, observaram, tais mudanças coincidem com uma nova atitude em relação à imagem caracterizada por crescente aceitação da representação naturalista. Para explicá-lo, Belting resume o debate que ocorreu nos sécs. XIII e XIV, em torno da visão fisiológica divina versus humana e sobre se a percepção sensorial óptica, deve ser tomada como fonte confiável de saber. Alguém poderia equiparar a coisa vista a olho com a verdadeira forma dessa coisa?  Segundo Belting, o Oriente não experimentou a mesma mudança r permaneceu desconfiado da natureza enganosa da visão humana: a arte continuou informada pela matemática e a favor da abstração. O conceito de engano da visão enfatizado no Livro da Ótica foi reforçado pela crença muçulmana de que, como seres criados, os  homens não se poderiam tornar criadores, pois usurpariam a eminência criativa de Deus. A cultura árabe compensava a ausência de "figuras no sentido ocidental" com "formas simbólicas" como os muqarnas , sistema de arqueamento arquitetónico baseado no arranjo radial de células de concavidades e perfis e mashrabiyya, grades de madeira para cobrir janelas e outras aberturas. A geometria tornou-se a forma simbólica por ser  sujeito de representação, em oposição à representação no Ocidente. Foi uma "tradução da matemática para a estética". Belting expõe essas ideias ao longo de seus quatro primeiros capítulos, e concentra-se nas teorias da perspectiva de Filippo Brunelleschi e Leon Battista Alberti, discute as obras de uma série de artistas e arquitectos, incluindo Lorenzo Ghiberti, Sebastiano Serlio, Leonardo da Vinci e Jan van Eyck.

Belting faz o ponto de vista político sensível de que o objectivo da sua comparação Leste-Oeste não é elevar uma cultura sobre a outra, "reforçar um ponto de vista colonial" ou afirmar a perspectiva como norma., que"rotule tudo como desvio".  E repete:  os estudos comparativos são raros "talvez por causa dos riscos envolvidos em cruzar as fronteiras de disciplinas nas quais os especialistas de ambos os lados tendem a se tornar defensivos". Esses sentimentos aparecem como esforços para inocular o livro contra críticas. Apesar do escrúpulo intelectual declarado, Oriente e Ocidente não recebem considerações igualmente matizadas de Belting, dizem alguns críticos, e a caracterização da arte islâmica sucumbe a uma visão ainda difundida, rastreável à erudição orientalista do século XIX, que  diz que a posição do Islão em relação à imagem promove o aniconismo, só imagens não-opticamente naturalistas, e impulsiona a ascensão da caligrafia e da abstração baseada em geometrias bem-sucedidas porque complementares à figuração como possibilidade desenfreada. . Tais ideias e sua cadeia causal podem parecer senso comum, mas ainda são apenas especulações.

David J. Roxburgh (Professor de História da Arte Islâmica, Univ. Harvard) critica em Florença e Bagdad  este confronto das construções prospectivas e não-prospectivas da “imagem” como a janela com visualizador estático colocado diante dela no primeiro caso e como uma composição multifocal que combina perspectivas de visualização no segundo. Ora Necipoğlu descreveu a construção geométrica não-prospectiva como espaço isotrópico infinito sem ponto de vista fixo. A fonte de Belting é Hamid Naficy, que estuda o véu no Islão contemporâneo e a miniatura persa para descrever "a evitada aparência“, o hábito de dividir o espaço em células herméticas. A visão trans-histórica de Naficy e Belting coincidem: o mashrabiyya  domestica o olhar e purifica-o de imagens externas sensuais através da geometria estrita da luz interior“. As duas visões de mundo são assim reduzidas ao sujeito activo que olha no Ocidente e ao sujeito passivo que recebe no Oriente. São comparações interculturais sugestivas mas que se limitam à recepção de Alhazen no Ocidente e o que aconteceu na arte depois disso. Fica a sensação de que, se se trata da erradicação de estereótipos e da elucidação de práticas culturais incompreendidas, a questão da perícia talvez seja mais saliente do que nunca...

Em 1492, o Grão Turco Bajazet II mandou a Inocêncio VIII a relíquia da Santa Lança de São Longuinho, com a qual o flanco de Cristo foi perfurado. Foi representada no seu túmulo em bronze, c. 1498, por Antonio Pollaiuolo (1431-1498) na Basílica de São Pedro. O Sultão mandou também ao Papa o «verdadeiro retrato de Cristo» de perfil, aos modos da retratística otomana do tempo. Esse «retrato»  inspirou as reinterpretações humanísticas do «perfil de Cristo . O veneziano Gentile Bellini pintara c. 1479 o retrato do Sultão Mehmet II (National Gallery, Londres), no âmbito do acordo de paz da República Veneziana com o Grão Turco. Assume-se importante catalisador da influência oriental na arte europeia – e abertura fundamental para a presença da cultura oriental no ocidente. Permiti-me aduzir do meu estudo recente sobre o Calendário de Miranda alguns dados sobre a difusão portuguesa do verdadeiro retrato de Cristo mandado a Inocêncio VIII pelo Sultão, com a relíquia de  S. Longuinho. No caso do VERDADEIRO RETRATO, de perfil, temos réplicas no Convento dos Carmelitas de Aveiro, na igreja de Santa Maria da Devesa em Castelo de Vide e na Sé de Miranda do Douro. Analiam-se outras imagens do Rosto de Cristo de perfil, versões inspiradas na oferta otomana do sultão Bayezid II ao Papa Inocêncio VIII em 1492, e versões com interpretação humanística da responsabilidade de Benito Arias Montano / Philippe Galle / Hieronymus Wierix (as duas últimas). Também se analisa A Virgem Maria com a Santa Lança de Longuinhos, tela seiscentista da Sé de Miranda, e uma das versões da Maddona Addolorata de Alessandro Allori, que lhe serviu de inspiração.  A Relíquia da Santa Lança de Longino, o centurião Caio Cássio Longino  que trespassou o corpo de Cristo no Calvário, sofria de infecção nos olhos, curada pelo sangue que jorrou da ferida. Depois de se converter, viria a ser martirizado. A relíquia (com autenticidade caucionada no séc.oV por Cassiodoro e Gregório de Tours) passa a ser venerada em Jerusalém, mas em 615, com o ataque persa de Cosroes II, foi posta a salvo por Nicetas e levada para Santa Sofia em Constantinopla. Em 1492 Benajir II envia-a a Inocêncio VIII com o Retrato Verdadeiro de Jesus Cristo, que passam a ser venerados em São Pedro. Existe outra lança apontada como original, no Schatzkammer, uma das colecções do Museu Hofburg em Viena de Áustria. Diz-se que era usada, desde 1273, na coroação do Imperador do Ocidente, e que em 1424 passou a Nuremberg, onde era chamada a «Lança do Destino» a que se atribuíam poderes sobre os destinos do mundo (o que suscitou inclusive, a sua veneração por Adolf Hitler e prosélitos do III Reich !). 


Hans Belting o conceito de antropologia artística e outros contributos para o modo de ver as obras de arte.

27 Abril 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Hans Belting nasceu a 7 de Julho de 1935 (Andernach) e é reconhecido especialista em arte medieval e renascentista, no tempo das Reformas católica e protestante, e sobre Teoria da Imagem e da Arte Contemporânea. Leccionou nas Universidades de Munich, Heidelberg e Hamburgo. É Prof. Jubilado pela Hochschule für Gestaltung de Karlsruhe, onde criou o projecto de investigação interdisciplinar Antropologia da imagem: meio-imagem-corpo. Tendo iniciado os estudos no campo da arte bizantina e medieval, cedo se abriu à arte moderna e contemporânea, das artes não-Ocidentais e das imagens da era digital. É autor de ensaios e livros essenciais, como Das Ende der Kunstgeschichte ? (O Fim da História da Arte ?, 1983-1995), Bild und Kult. Eine Geschichte des Bildes vor dem Zeitalter der Kunst (Imagem e Culto. História das imagens antes da época da arte, 1990), A Imagem Verdadeira (trad., Dafne, 2011), Florenz und Bagdag (2008) e co-editor de The Global Contemporary, and the rise of new art worlds (2013). Começou como especialista em pintura medieval e bizantina, e toda a sua obra trata de questões relacionadas com a imagem. Este enfoque levou-o a avançar pelo Renascimento e o Barroco, desenvolvendo uma reflexão própria sobre a teoria da imagem e a teoria da arte, com os seus prolongamentos na própria arte contemporânea. •Estudou História da Arte, Arqueologia e História nas Universidades de Roma e Mainz, onde se doutorou em 1959. É hoje Professor jubilado de História da Arte e Teoria dos Media, Hochschule für Gestaltung, Karlsruhe, que ele próprio fundou. Escreveu mais de 30 livros.

Belting demonstra que a nossa percepção das imagens está marcada ainda hoje por uma sobrevivência de noções religiosas derivadas da fé cristã, que teve no Ocidente um papel formador de identidade e de consciência que cimentou uma determinada definição de imagem. Assim, em lugar de seguir uma história linear, opta por meio de sondagens, dando ênfase a dois momentos-chave  da cultura europeia: o fim da Antiguidade, em que a questão da imagem se colocou em debates filosóficos em torno da dupla natureza de Cristo; e a época da Reforma, em que a tradução da Bíblia em língua vulgar e a sua difusão pela imprensa conduzem a uma certa desvalorização ontológica da imagem, mais ligada doravante ao mundo da arte e das teorias estéticas.  A tradição sacra e espiritual das imagens, destinadas sobretudo à conversão pela fé, é pois muito mais que um prelúdio naif da sua complexidade moderna. Neste ensaio, Belting  analisa o arco secular que une a Antiguidade à nossa época,  tratando a História, a Religião, as Imagens e as Ideias como um todo.

Na sua obra mais recente, Florença e Bagdad, Hans Belting desenvolve um confronto entre as atitudes perante a imagem nos séculos XV e XVI entre Constantinopla, capital otomana, e o Renascimento cristão, e não se contenta em explicar a atitude crítica do Islão face às imagens em nome do interdito religioso e do combate à idolatria, mas fazendo intervir as especificidades estéticas, sociais e científicas dessa cultura, em oposição à cultura do Ocidente, através de uma fascinante interpretação, que abre portas aos estudos integrados de História da Arte.     No limiar da Idade Moderrna, a imagem oriunda do Ocidente cristão vai contituir-se através de uma intensa troca com a ciência e a cultura árabes. Mas o olhar perspéctico, uma das invenções do Renascimento, estará na origem de uma ruptura sem precedentes. O olhar que a arte islâmica exprime é em absoluto diferente: não está ligado a um espectactador nem ao lugar que este ocupa no mundo, mas visa, sim, aproximar-se do irrepresentável, o inominável, ou seja, aquilo que existe de mais profundo e intenso. DizAnthony Pagden (Mundos em guerra: 2500 anos de conflito entre o Ocidente e o Oriente, Ed. 70) que com a queda de Contantinopla em 1453 pelo Sultão Mehmed II se torna clara do outro lado dos Dardanelos “a percepção de que a Cristandade na parte oriental desaparecera de vez. No seu lugar, encontrava-se a potência mais imponente a ameaçar as liberdades dos povos da Europa desde Xerxes”. Mehmet II (1432-1481) intitula-se Kaiser-i-Rumi , o César dos Romanos”, e em 1480 fez questão de ser retratado por um pintor europeu, o veneziano Gentile Bellini,  enviado a Constantinopla, a capital otomana, pelo governo da República do Adriático. O quadro tem uma atmosfera de consagração e apoteose:  Imperator Orbis. Mehmet sonhou abrir a corte à arte ocidental,  em tentativa frustrada o conceito de retrato à europeia e com perspectiva foi, a curto trecho, rejeitado… Nota Belting que Mehmed II promoveu  a tolerância religiosa, tentou uma abertura à cultura do Ocidente, e quis-se retratar à europeia (chmando Bellini), ainda que o gosto pelo arabesco otomano não tivesse igual acolhimento na Europa. Alimentou o sonho de uma coexistência pacífica e criou círculos cortesãos de latim, literatura e arte na corte de Constantinopla. A arte do retrato europeu exigia a mirada frontal, rejeitada na tradição otomana, o que levou Bellini a tentar um compromisso. O quadrinho (Nat. Gallery9 tem legenda em árabe: «É obra de Ibn Muazzin, que foi um dos célebres mestres dos francos». Também destaca Belting que, mesmo adaptando o retrato ao modo otomano, Bellini pinta o sultão de perfil prescindindo de toda a simbologia que implique a perpectiva,  valorizando a cor e a luz, numa estratégia oposta ao realismo ocidental.  O que importa no mundo islâmico nas coisas visíveis é a cor e a luz, tudo o mais é mera dedução, dizia já Ibn-al-Haitham (Alhazén) (965-1040) no Kitáb-al-Manãzir... A lição prossegue em torno deste e outros livros de H. Belting)



AS OBRAS DE ARTE, ENTRE A AUSÊNCIA E A TRANS-MEMORIZAÇÃO UTILIDADE DO CONCEITO DE CRIPTO-ARTE NA TEORIA E NA PRÁTICA DA NOSSA DISCIPLINA.

22 Abril 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Ainda a Cripto-História da Arte. As noções de totalidade, de fragmento, de efemeridade, de micro-história, bem como conceitos alargados de mercado e programa artístico, iluminam as possibilidades (e a utilidade) do olhar cripto-artístico. A novidade desta vertente cria uma consciência reforçada atribuída à obra de arte morta e a possibilidade de a resgatar histórica e esteticamente através do inquérito a seu respeito, segundo sólidas bases de pesquisa. 

A História da Arte portuguesa, depois de viver uma longa etapa de letargia, aprendeu a agir com uma visão e uma prática interdisciplinares, ancorada em três princípios fundamentais:

     -- assumindo uma doutrina e uma base teórica o mais possível alargada que explique gostos, critérios, usos, escolhas e manutenções de cada fase histórica, à luz do seu primordial conceito e base de trabalho, a autenticidade – TEORIA DA ARTE;

     -- assumindo uma metodologia e uma prática de contornos pluri-disciplinares, atenta às existências e às perdas – METODOLOGIA HISTÓRICO-ARTÍSTICA;

     -- assumindo uma ética e uma base de princípios morais em nome da salvaguarda do património, prevenindo contra a sua deterioração e perda – ÉTICA PATRIMONIAL. 

Precisa de ser mesmo assim o destino da arte ? Ruínas ? O que alguém, por grito de revolta ou desígnio funesto, escreveu nos muros da Faculdade de Letras será mesmo uma inevitabilidade ? E se for mesmo, como escrita na areia, traço de uma vitalidade que murche ? N'Os Passos em Volta, o poeta Herberto Hélder expõe o problema como só ele sabia fazer: «às vezes procuro apenas uma palavra que algures na desordem estava certa, nos âmagos e umbigos da alma: brilhava...». Assim é a força da arte, do património histórico-artístico: BRILHA, sabe persistir para além da sua dimensão, efémera e imensa, de ruína adiada.

Eternas efemeridades que são, as monumentos e obras de arte sabem unir um poder imenso de fascínio com uma natureza de inapelável fragilidade: também morrem, de morte natural, abandono, mau uso, catástrofes, desmemória, acto iconoclástico e outras circunstâncias. Queremos pesar, nós, historiadores de arte e patrimonialistas, que o nosso esforço no sentido da preservação vale alguma coisa, mais do que um exercício de iluminação estéril nas fímbrias do Tempo: pode ser que sim... Conforta-nos o que em 1945 foi dito com tanta lucidez pelo grande geógrafo Orlando Ribeiro: «Afigura-se-me que há duas formas de olhar para as rápidas transformações por que o mundo passa. Muitos vêem sobretudo o que muda, outros procuram surpreender o que, a despeito delas, permanece». 

Os comportamentos: !) Iconoclastia: tipos de destruição das obras de arte e suas razões ao longo dotempo histórico; 2) Iconofilia:  tipo de deificação das obras de arte em determinadas conjunturas, ora promovendo  ora desqualificando obras de arte consoante a sua maior ou menor fidelidade a princípios pré-determinados. 3) Conservação generalizada: princípio de salvaguarda das obras de arte como testemunhos históricos e valências culturais da humanidade.

     A Cripto-História da Arte, nova proposta de conceptualização para a nossa disciplina, parte da revalorização da noção de fragmento, não apenas como memória parcelar da obra ausente, mas colmo testemunho vivo da sua essência,  senão como indício perene (tal como o iconólogo E. H. Gombrich o referiu, ao acentuar que a H. da Arte  impõe sempre a ideia do conjunto artístico, e do seu contexto) – uma avaliação da obra em globalidade. Uma História de Arte operativa, apta a alargar as suas bases teóricas e metodológicas não pode reduzir o seu objecto de estudo às obras de arte vivas; também as que desapareceram do nosso convívio, as que só sobrevivem através do indício ou do fragmento, ou seja, as obras de arte mortas, têm uma palavra a dizer aos historiadores, aos críticos e fruidores de arte.

Aquilo que se define por CRIPTO-HISTÓRIA DE ARTE atenta no papel que as obras desaparecidas no tempo podem ter assumido em determinadas circunstâncias históricas, económicas, políticas, ideológicas, na sua roupagem estética e no seu programa iconológico. O estudo das «zonas escuras» da produção das artes clarifica e alarga sempre o conhecimento. Poderá fazer-se História da Arte eficaz recorrendo aos objectos mortos, à sua diluída memória, às cicatrizes deixadas como rasto, bem como às obras de arte que não só não existem como chegar a ter verdadeiramente  uma existência, porque nunca passaram da fase da concepção (bom ex.: o projecto de ponte que Leonardo da Vinci,  em 1502, desenhou para o sultão turco Baiazid II, destinado a unir a Gálata e Constantinopla, que nunca chegou a ser construído, senão em 2001 na Noruega pelo arquitecto Vebjoen Sansd...).