A Teoria da Arte face ao vazio: as obras de arte que morrem... e morrem mesmo ?

25 Março 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A CRIPTO-HISTÓRIA DA ARTE: A TEORIA DA ARTE FACE ÀS PERDAS E À DESMEMÓRIA: UM NOVO CONCEITO OPERATIVO PARA A HISTÓRIA DA ARTE.A Teoria da Arte face ao vazio: as obras de arte que morrem... e morrem mesmo ? Aquilo que se define por CRIPTO-HISTÓRIA DE ARTE atenta no papel que as obras desaparecidas no tempo podem ter assumido em determinadas circunstâncias históricas, económicas, políticas, ideológicas, na sua roupagem estética e no seu programa iconológico. O estudo das «zonas escuras» da produção das artes clarifica e alarga sempreo conhecimento. Poderá fazer-se História da Arte eficaz recorrendo aos objectos mortos, à sua diluída memória, às cicatrizes deixadas como rasto, bem como às obras de arte que não só não existem como chegar a ter verdadeiramente  uma existência, porque nunca passaram da fase da concepção (bom ex.: o projecto de ponte que Leonardo da Vinci, em 1502, desenhou para o sultão turco Baiazid II, destinado a unir a Gálata e Constantinopla, que nunca chegou a ser construído, senão em 2001 na Noruega pelo arquitecto Vebjoen Sansd...). As noções de totalidade, de fragmento, de micro-história, o conceito alargado de mercado e de programa artístico, iluminam as possibilidades (e a utilidade) do olhar cripto-artístico. A novidade desta vertente reside na consciência reforçada que possa ser atribuída à obra de arte morta e a possibilidade de se organizar o inquérito a seu respeito segundo sólidas bases de pesquisa. Tal como as pessoas, as obras de arte também morrem. Muitas vezes esquecemos que são seres viventes e, por isso, sujeitas à lei inapelável da ruína física, que decorre da fragilização das condições ambientais e de circunstâncias fortuitas que contribuem para as degradar, arruinar ou, pura e simplesmente, destruir.      A Cripto-História da Arte, nova proposta de conceptualização para a nossa disciplina, parte da revalorização da noção de fragmento, não apenas como memória parcelar da obra ausente, mas colmo testemunho vivo da sua essência,  senão como indício perene (tal como o iconólogo E. H. Gombrich o referiu, ao acentuar que a H. da Arte  impõe sempre a ideia do conjunto artístico, e do seu contexto) – uma avaliação da obra em globalidade. Uma História de Arte operativa, apta a alargar as suas bases teóricas e metodológicas não pode reduzir o seu objecto de estudo às obras de arte vivas; também as que desapareceram do nosso convívio, as que só sobrevivem através do indício ou do fragmento, ou seja, as obras de arte mortas, têm uma palavra a dizer aos historiadores, aos críticos e fruidores de arte.

Enquanto noção operativa provida de franca utilidade para o alargamento das práticas da H. Arte, a CRIPTO-HISTÓRIA DE ARTE assenta as suas bases de pesquisa cripto-artística em cinco vertentes simétricas e convergentes, a saber:

1 --- a abordagem criptoanalítica; A vertente da cryptoanalysis (ciência que decifra a mensagem em código sem nenhum conhecimento prévio da sua chave) permite à H. da Arte desvendar os ‘indícios’ sem ter aparentemente dados complementares a seu respeito. Obras que foram destruídas (deliberadamente ou por efeito de calamidades) ou tiveram vida efémera podem de algum modo ser reavaliadas através de indagações cripto-artísticas alargadas. Bom exemplo é o projecto de decoração funerária «ao romano» que António Campelo realizou cerca de 1572 para a capela-mor do Mosteiro dos Jerónimos, aquando das exéquias de trasladação dos ossos de D. Manuel I para a nova capela-panteão de D. Catarina de Áustria. Só resta, para a abordagem criptoanalítica, o desenho do mesmo Campelo, inspirado num fresco de Polidoro da Caravaggio em San Silvestro al Quirinale em Roma, que representa a Alegoria à Morte (M.N.A.A). O método de abordagem permite alargar conhecimentos e entretecer uma via lógica de interpretação de como era organizado um programa artístico efémero que a voragem dos tempos de todo destruíu.

2 --- a abordagem dedutiva; a vertente dedutiva, isto é, o enfoque de obras já desaparecidas no conjunto de um ciclo artístico ou na produção geral de um dado artista,  decorre da forma dada pela análise visual, documental, estilística, iconográfica, etc, de outras obras do conjunto que subsistiram no presente. O recurso às descrições memoriais e à fotografia antiga, p. ex., apoia o exercício cripto-artístico e assegura a plausível eficiência da análise proposta: veja-se o caso do retrato de D. Violante Gomes, a formosa judia Pelicana, mãe de D. António, Prior do Crato, o malogrado candidato ao trono na crise de 1580, pintado pela oficina de Diogo Teixeira, c. 1578-80, no desaparecido cadeiral do Mosteiro cisterciense de Santa Maria de Almoster.

3 --- a abordagem reconstitutiva; O termo metafísico de incriação,ou seja, estudo da obra incriada --  uma obra que foi concebida mas não realizada --, é outra vertente da análise cripto-artística. Trata-se do estudo de obras de arte que fisicamente nunca existiram mas cujos fundamentos e bases programáticas podem ser re-conhecidos a partir de desenhos, fotografias, textos, uma descrição, ou de um outro indício. A coerência de um inquérito histórico-artístico organizado segundo estas vertentes carreia o alargamento da metodologia geral da História da Arte em novas bases. 

4 --- a abordagem incriativa; A análise do fragmento ou parte de uma obra parcialmente inexistente, utilizando todas as fontes ao dispôr do historiador de arte, define a via da abordagem reconstitutiva e permite desvendar a possível estrutura inicial da obra em estudo. Bom exemplo é o famoso retábulo da capela de S. Vicente da Sé de Lisboa, que Adriano de Gusmão reconstituíu  em 1955 a partir de apenas uma tábua e metade de outra (MNAA). 

5 --- e a abordagem cripto-iconológica. Enfim, é à luz da lição da ICONOLOGIA que a pesquisa cripto-artística ganha a sua maior dimensão: sendo a Iconologia a vertente da H. Arte que desvenda significados e razões ocultas dos programas estéticos, torna-se fundamental na pesquisa iconológica a reconstituição, a dedução, a análise da ‘increação’ e a cripto-análise a partir dos ‘indícios’, caminho necessário para que as obras de arte sejam mais e melhor iluminadas no processo do seu estudo integral. O sentido dos códigos e dos signos – dos ‘indícios’ – com os seus níveis de significação diversos, abre inesgotáveis possibilidades à fascinação do ver e sentir as obras de arte, tal como elas se nos apresentam hoje, quase sempre truncadas de qualquer coisa que, apesar de tudo, pode ser percebível...É de lembrar que o estudo e revalorização do FRAGMENTO remonta à consciência dos chamados antiquários do Renascimento, como André de Resende e Francisco de Holanda no nosso caso, em torno da descoberta de um primeiro sistema de prova documental baseado na análise e valorização dos INDÍCIOS (aplicados à Numismática, à Epigrafia, etc).