Arte, Memória, Desmemória, transmemória: problemas permanentes da teoria e da prática artísticas.

29 Janeiro 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 TRANS-MEMÓRIAS: UMA NOTA SOBRE ARTE E MAÇÃS.

Em 26 de Outubro de 1929 morria em Hamburgo o grande historiador de arte Aby Warburg (1866-1929). O fundador do que se chama vulgarmente Iconologia, que é na realidade uma Antropologia das Imagens entendida como espécie de meta-psicologia das sobrevivências ('nachleben'), anotou nesse seu último dia de vida um fenómeno singular: no jardim da sua casa, uma macieira que ele julgava de há muito seca começava a gerar botões de fruto ! A esse respeito, descreveu no seu diário uma breve nota lírica sobre a sua velha árvore de frutos, cujas flores acabavam de irromper... E morreu, deixando na mesa de trabalho mais essa lição: quando menos se espera, a arte da memória cria por vezes botões, isto é, renova a os seus rebentos frutíferos. Assim se passa com os artista, reinventores de tempos, de aporias, de fábulas crónicas e de fragmentos memoriais perdidos. No ensaio Essayer Voir (2014), tão sugestivo como sempre, Georges Didi-Hubermann evocou as imagens da série 'Apple T', video-projecções de Miroslaw Balka, artista polaco (n. 1958) cuja obra é percorrida pelas memórias traumáticas dos campos de extermínio de Treblinka e Auschwitz. Essas imagens, fragmentos de sítio onde nascem maçãs por entre a vegetação sem memória, são o fermento com que o artista pretende rasgar o sentido dos tempos (mais do que decifrar os sinais históricos), assumindo a busca identitária através de uma criação feita nos limites do teórico e do poético. Mostra-se mais uma vez como as obras de arte -- e a História da Arte que as estuda -- só fazem sentido vistas numa dimensão afectiva, antropológica e trans-contextual. Como diz Didi-Huberman, na senda de Aby Warburg, «la raison, l'art, la poésia, ne nous aident sans doute pas à déchiffrer le lieu d'où ils ont été bannis, mais ils nous démeurent nécessaires, et même vitaux, pour le déchirer». Belo elogio, sem dúvida, sobre esta nossa senda através de parcelas floridas de humanização -- que é a terra em que a arte reside. Tal como esta história de maçãs renascentes ajuda a lembrar...

 

Textos para reflexão:

 

1º texto:

A noção de PROGRAMA ARTÍSTICO é o objectivo fundamental de uma História de Arte moderna, actuante, útil, operativa, socialmente comprometida. Como disse Warburg, «a História da Arte mais não é do que a investigação orientada e sempre interdisciplinar que visa o entendimento globalizante (estético, histórico, ideológico, contextual, etc) das obras de arte particulares à luz da compreensão dos seus ’pontos de vista’ intrínsecos, isto é, das condições culturais, políticas, socio-económicas, laborais, de perdurações e continuidades, de ideologias, etc – numa palavra, «o entendimento iconológico das obras» (ABY WARBURG, 1866-1929)

 

2º texto:

«A SINGULARIDADE é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Esta tradição é, ela própria, algo de inteiramente vivo, de extraordinariamente mutável. Uma estátua antiga de Vénus, por exemplo, situava-se num contexto tradicional diferente, para os gregos que a consideravam um objecto de culto, e para os clérigos medievais que viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma era a sua singularidade, por outras palavras, a sua AURA». Pretende-se entrever aqui as relações entre tudo o que parecia disperso e amalgamado, numa capacidade de perceber as relações, afinal estreitas e clarificantes, entre a matéria bruta e o imaginário da produção de bens de consumo. (WALTER BENJAMIN, A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, 1936).

  

3º texto:

«Diz o gramático indiano ao barqueiro: sabes gramática? E quando este responde que não, ele diz-lhe: perdeste metade da tua vida. Diz o barqueiro ao gramático, quando a barca se vira: sabes nadar? e quando este responde que não, ele diz-lhe: então perdeste toda a tua vida. Mas o que poderia haver de melhor que um gramático que soubesse nadar e um barqueiro que percebesse de gramática?» (UMBERTO ECO, Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Difel, Lisboa, 1989, p. 52). Esta história retomada por Eco serve a abordagem da obra de arte, com base nas imagens artísticas privilegiadas, num autor como OMAR CALABRE, ao longo de sete capítulos reunidos no livro Como se Lê uma Obra de Arte, com olhares complementares incluindo a apreciação estética e o entendimento global das obras de arte, englobando as suas características específicas enquanto objecto estético, as mutações dos valores estéticos e os juízos de valor subjacentes na apreciação do observador/receptor/usufruidor.