Arthur C. Danto e o conceito de Artworld.

5 Fevereiro 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Visto que a criação ex-nihilo está reservada aos deuses - categoria em que o artista não se enquadra --- o homem comum não cria a partir do nada. Como tal, existe toda uma história por detrás de toda a criação artística. Sendo o nosso foco temporal de reflexão o período contemporâneo, e, principalmente, a arte realizada nos dias que correm, abrimos a abordagem vendo a posição que a arte tem neste mesmo período, partindo do conceito de Artworld, o “mundo da arte”, tal como o definiram e caracterizaram Arthur C. Danto e que noutros autores é completado, procurando definir a natureza da obra de arte, ou seja, chegar às determinações que vigoram hodiernamente.

“Entendo aqui, por útil, o conceito operatório (Artworld) utilizado pelo antropólogo e crítico de arte Arthur C. Danto para caracterizar as teias relacionais entre artistas, agentes, galeristas, mecenas, críticos de imprensa, fotógrafos, leiloeiros e demais promotores da indústria e do mercado das artes, técnicos de conservação e restauro, museólogos, curadores de exposições, sociólogos, historiadores de arte e os públicos.” (Serrão, 2016: 585). A partir de Danto percebemos que não existe, a priori , nenhuma barreira formal à apresentação de obras ao mundo. A categoria de Artworld tem importância maior do que as concepções de outros autores. Ela engloba em si todas as formas de arte, pois não há nada que impeça teoricamente o cruzamento das artes. A divisão de George Dickie (Public Artworld) diz-nos que cada área tem elementos e regras específicas, o que não é de todo mentira. Contudo, no pensamento hodierno essa divisão cada vez se torna mais ultrapassada. Certo está Howard Becker (Mundos da Arte) quando realça a carga de cooperação entre os vários Mundos da Arte, e através dele conseguimos vários elementos para pensar a produção artística. Ao ponto na vida prática do artista, ponto em que decide expor, chamamos: momento de exposição. O juiz só falará depois de exposto o caso; para o réu se defender tem de contratar advogado e em cooperação terão de construir os seus argumentos. O artista, antes de sair para o mundo, forma a sua identidade, busca, obtém parcerias, procura formação, desenvolve técnicas. De forma leviana se afirma que o artista pode fazer o que bem entender e só depois terá sucesso em função do mundo da arte. Interessa-nos explorar esse tempo que o artista percorre até chegar ao momento de exposição.

“…temos uma noção da organização dos mundos da arte que parte do mero bom senso: eles existem de tal modo que alguns dos seus membros são considerados pela maioria das pessoas interessadas como mais habilitados que outros para falar em nome desse mundo da arte. As pessoas interessadas são as que participam nas actividades cooperativas onde as obras desse mundo são produzidas e consumidas. Os membros deste modo habilitados podem ser considerados como tais em virtude da sua experiência, porque possuem um dom inato para reconhecer a arte, ou porque aquele é o seu trabalho e porque devem estar bem preparados para o saber. Pouco importa a razão. O que lhes permite estabelecer e afirmar a distinção é a autoridade que os participantes lhes reconhecem de comum acordo.” (Becker, 2010: 142)… Mas Howard S. Becker não deixa de seguir a mesma linha de pensamento, atribuindo a responsabilidade da reputação de um artista ao trabalho coletivo no seio dos mundos da arte: Para que as reputações se imponham duradouramente, os críticos e os estetas devem estabelecer teorias da arte e critérios que permitam reconhecer a arte, a arte de qualidade e a grande arte. Sem tais critérios, ninguém poderia formular juízos acerca das obras, dos géneros e das disciplinas que, por sua vez, determinam os juízos dos artistas. (Becker, 2010: 293).

A filosofia da arte, a estética e a teoria da arte em geral desempenham um papel de relevo no estabelecer dos critérios de Becker. No entanto, falam só do que é visto, abordam aquilo que, em diferentes intensidades, já existe e se encontra no mundo da arte. A sua teoria é muito interessante por tentar chegar ao pano de fundo do mundo da arte. Ao contrário de Danto, que filosoficamente define uma categoria universal para compreender o estado da arte no mundo contemporâneo, Becker fá-lo sociologicamente, dividindo e analisando cada parte desse mundo artístico nesta mesma era. Dessa forma, surge a pluralização: mundo(s) da arte, analisada com carga empírica forte. Para ele não existe só um mundo da arte. Becker encaixa nos mundos da arte o fabricante de lápis, o crítico, o fabricante de tintas, o pintor, o cineasta; fazendo variar o grau e o impacto da intervenção de cada entidade. Os Mundos da Arte não são só os intervenientes directos, também os indirectos têm papel relevante (Becker, 2010). O importante destas ideias é a interação entre os indivíduos e entidades que formam estes mundos, as relações que fazem a arte surgir e evoluir, como processo constante, acrescente-se: dialético, englobando muitas contradições, sendo o progresso o resultado da resolução dessas contradições.

Outro nome relevante da teoria institucional, paralelamente a Danto, George Dickie define o mundo da arte como o framework, o contexto, ao qual a obra de arte é submetida ou criada para. Ao contrário de Danto, para Dickie, o artworld é dividido em vários mundos da arte também não se pode dizer que esta divisão é a mesma de Becker. Contudo, também este autor ressalva a importância de um mundo exterior ao artista para a validação da obra de arte. Ou seja, a própria definição de obra de arte decorre dessa realidade e existe em função desse mundo: «A work of art is an artifact of a kind created to be presented to an artworld public» (Dickie, 1989: 204). E reforça a ideia: «Whenever art is created there is, then, an artist who creates it, but an artist always creates for a public of some sort» (Dickie, 1989: 201).

“Os filósofos tendem a argumentar a partir de exemplos hipotéticos, e o ‘mundo da arte’ de que falam Dickie e Danto só tem consistência necessária para garantir as suas demonstrações. Nenhum dos que participou neste debate abarcou os mundos da arte em toda a sua complexidade organizacional como se faz aqui, mesmo se o nosso ponto de vista não é incompatível com aquela tese.” (Becker, 2010: 141).O capitalismo tornou banal o conceito de “arte”: falar de mundo da arte é falar de mercado da arte. Passa a ser neste que a vida do artista se desenvolve, ou desaparece. As concepções filosóficas de Danto e Dickie são relevantes para pensar em função da teoria da arte os artistas e obras que surgem. Porém, a vida real é o mundo do homem que produz bens para sobreviver. Becker percebeu este aspecto: o artista não é excepção à regra, precisa de beber, comer, dormir, abrigar-se, comprar tintas ou rolos para a máquina fotográfica. Para o fazer na sua actividade artística, a obra ganha carácter de mercadoria.  A hierarquia da obra de arte contemporânea começa no mercado e acaba igualmente neste. Ao abranger a totalidade das determinações do mundo da arte, não nos podemos desligar de critérios mercantis e economicistas. Mesmo a teoria da arte e a crítica estão envoltas nesse espectro financeiro – não tivessem os seus agentes o poder de elevar ou rebaixar um artista.

Diga-se que a arte é uma mercadoria; feita pelo homem (Dickie e Hadjinicolaou), resultado de cooperações várias (Becker), com o intuito de integrar um mundo da arte onde é reconhecida ou não como parte do mesmo (Danto e Dickie). Não é de todo redutora esta concepção. Ao pensarmos a obra de arte como mercadoria, estamos a trazer a obra de arte para um esquema complexo, cujas regras são de

difícil percepção. O que leva à concepção de uma obra e ao reconhecimento como tal não é de todo linear, e seguem-se critérios vários consoante a posição ocupada na hierarquia dos mundos da arte. Esta hierarquia é feita, principalmente, segundo princípios financeiros. Esses princípios é que dão o estatuto e poder às várias entidades. Contudo, o inverso também não se pode afirmar como falso. Os estatutos sociais e culturais da obra de arte misturam-se com o seu estatuto económico. É em função do mercado – logo na obra de arte como mercadoria – que as liberdades e restrições artísticas devem ser refletidas, esta relação complexa dita a sua forma fenoménica, a forma como elas nos aparecem na imediatez...

Vamos ao encontro à teoria de Becker que nos diz que a produção artística depende de uma cooperação no seio dos Mundos da Arte. Esta cooperação nem sempre é pacífica, e depende de imensas condicionantes que vão fazer a obra vir à luz do dia de uma maneira e não de outra… «Também nos apercebemos de que os mundos da arte acabam frequentemente por aceitar obras que haviam rejeitado num primeiro momento. De onde se pode deduzir que a diferença não reside nas obras em si, mas sobretudo na capacidade que um mundo da arte tem de acolher as obras e os seus autores” (Becker, 2010: 196).