Aula virtual sobre a Sociologia da Arte e a História da Arte que se reclama do Marxismo.

16 Março 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

REFLEXÕES EM TORNO DA ACTUALIDADE DA HISTÓRIA SOCIAL DA ARTE E DO MARXISMO COMO ÚTIL INSTRUMENTO DE ANÁLISE.

 

1.      Marx, Engels, Hadjinicolaou

Se a História da Arte não pode confundir-se com a análise da História definida pelo Materialismo Dialéctico, é evidente nos nossos dias que o Marxismo veio conferir à nossa disciplina uma série de postulados relevantes no propósito de saber analisar as obras de arte e os seus discursos estéticos. É frequentemente citado o comentário de V. I. Lénine a respeito da importância da História da Arte como disciplina onde a análise do Marxismo se pode impor com acuidade: «Quanto trabalho existe aqui para um marxista !», teria ele exclamado. Na antologia Marxismo e Arte, Mayna Solomon diz-nos que embora Karl Marx e Friedrich Engels tivessem dedicado tempo às artes literárias no início das suas carreiras, foi sempre a Economia e a Filosofia que mais os ocupou. Por isso, «não existe uma estética marxista ‘original’ para marxistas posteriores aplicarem. A História da Estética marxista tem sido apenas e só a história do desdobramento de possíveis aplicações das ideias e categorias marxistas à arte e à teoria da arte».

O mesmo postulado pode ser aplicado ao campo a História da Arte, que também usou (em autores como Theodor Adorno, Frederick Antal, Tim Clark, por exemplo) a ideia marxista de uma crítica do sistema social e económico ao utilizar esse enfoque no campo das obras de arte para mostrar os mecanismos através dos quais o modo de produção interfere na conduta e na produção de um dado artista, independentemente das épocas em que se situem. De acordo com Karl Marx, a arte é parte da superestrutura e é inevitavelmente determinada pelo modo de produção e pelo sistema económico. O capitalismo produz mercadorias, sendo cada uma delas um “fetiche”, objeto com valor abstracto. Fetichismo é a projeção da natureza humana e dos desejos humanos num objeto externo. Se aceitarmos a proposição de que a arte se transforma em mercadoria (e, sob este ponto de vista, a arte deve ser uma mercadoria numa sociedade capitalista), existem consequências decorrentes de tal afirmação: ou seja, todos os artistas são produtores culturais que trabalham num sistema capitalista em benefício do mercado. Todo o tipo de arte criada dentro desse sistema é uma mercadoria para ser comprada e vendida como objecto de desejo, espécie de projecção dos sentimentos humanos. A obra de arte numa sociedade capitalista deve ser um objeto consumível e, assim sendo, também deve ser um objeto de desejo, um fetiche. O conceito de alienação de Marx é, pois, essencial para se perceber o que uma História da Arte fielmente construída sob signo do marxismo visa analisar.

Assim, a definição de ideologia imagética avançada por Hadjinicolaou (n. 1938) por exemplo, ganha novos sentidos. Nascido em Salonica, Grécia, este historiador de arte seguidor da metodologia marxista, professor no El Greco Centre (Institute of Mediterranean Studies, Rethymnon, Creta) estudou nas Universidades de Berlin, Freiburg e Munich, em 1965 estudou em Paris com o sociólogo daarte Pierre Francastel (École pratique des Hautes Études) e com Lucien Goldmann (1913-1970) e Pierre Vilar (1906-2003). A sua tese La lutte des classes en France dans la production d'images de l'année 1830, inspira em 1973 o famoso livro Histoire de l'art et lutte des classes. Art History and Class Struggle, onde o autor desmonta a tradicional História da Arte formalista (pós-morelliana) e põe a nu os seus limites. Depois de escalpelizar uma linhagem de defensores da «arte pela arte» desde Théophile Gautier a Victor Cousin, corrente essa ainda dominante nos anos 70 do século XX, Hadjinicolaou constrói a sua teoria: as obras de arte reflectem sempre determinados aspectos da ideologia de classe, pelo que a História da Arte devia ser, no essencial, a história das ideologias imagéticas produzidas em contexto de lutas de classes. Inspirado em György Lukács (1885-1971) e na sua History and Class Consciousness, também se reporta ao filósofo Louis Althusser (1918-1990) e a F. Antal. Das teses de Hadjinicolaou sairá, em 1977, um famoso ensaio de Françoise d'Eaubonne (1920-2005) chamado Histoire de l’art et lutte des sexes, estudo interessante em que as lutas de classe e as lutas «de género» se interligam no campo preciso da produção artística.

 

2.              Antal, Hobsbawm

A figura do citado Frederick Antal (1887-1954) é deveras importante no campo da historiografia de arte marxista. Historiador de arte húngaro e militante comunista, Antal é das mais relevantes referências no quadro de uma análise das obras de arte a partir das categorias do materialismo dialéctico. O seu famoso livro Florentine Paintig and its Social Background (trad. A Pintura florentina e seu contexto social: a República Burguesa antes do advento do poder de Cosimo de 'Medici: XIV e início do século XV), saído em Londres em 1948 (reimpressão: Harvard University Press, 1986) atesta o quanto os estudos de arte a partir do conceito de ideologia do mercado, analisado a partir das estratégias ideológicas e das cambiantes de gosto, podem atingir um grau de percepção muito evoluído.

O estudo sobre a pintura em Florença na viragem da Idade Média para o Renascimento e do gosto dos clientes burgueses que encomendam obras aos pintores continua a ser o melhor exemplo da vitalidade do pensamento marxista no campo das artes. Hoje, é consensual aceitar-se que (seja ou não a partir de um ponto de vista marxista) toda a obra de arte se reflecte de alguma maneira, sempre, sobre a sociedade em que foi concebida. Ou seja, o artista é sempre parte integrante da cultura de um dado contexto, e a arte nunca é independente ou absoluta, mas dependente de um ambiente em que a luta de classes se manifesta como dinâmica transformadora.

Como refere o grande historiador Eric Hobsbawm, autor do luminoso ensaio Atrás dos Tempos-declínio e Queda das Vanguardas do Séc. XX (trad. Campo das Letras, 2001), ao analisar a produção artística tardo-novecentista à luz da (im)possibilidade de gerar rupturas vanguardísticas, é possível contrariar os escritores e compositores que aceitaram a produção de massas e a tecnologia da repetição ilimitada, ou os pintores não quiseram renunciar à obra de arte “única”, realizada com as suas próprias mãos. Esta relutância resultou numa série de “vanguardas” pictóricas estéreis que, segundo o autor, estavam de antemão condenadas ao fracasso. Será mesmo assim? Nascido em Alexandria (Egipto), em 1917, Eric Hobsbawm, viveu nas cidades de Viena e Berlim antes de iniciar a sua vida académica em Londres. Considerado um dos mais importantes historiadores da era contemporânea, Hobsbawm, além de militante de Esquerda, utilizou sempre o método marxista para a análise da História a partir do princípio da luta de classes, mas rejeitando o ‘marxismo vulgar’ e tendo defendido o seu compromisso com um certo ideal de comunismo. Sem Eric Hobsbawm não haveria um retrato tão amplo da história dos séculos XIX e XX e dos totalitarismos (e suas razões) nos seus diferentes aspectos. A pós-modernidade e o discurso das artes. Arte, mercado, vanguardas. Novas teorias, métodos e approches pluridisciplinares.

Em tempos difíceis em que os homens vivem a globalização com aspectos plurais e heterogéneos, em que a fisionomia do tempo se redesenha -- a par de um processo em que a desmemória se enraíza, tal como o espaço das grandes diferenças e exclusões se tende a tornar uma coisa banal, em nome da cultura alienante do efémero --, parece importante devolver à História uma das suas linhas operativas de actuação: ver os factos (e as obras de arte são factos artísticos) à luz da sua contribuição o mais possível aproximada, em abordagens que unam o enfoque micro-contextualizado e a dimensão trans-contextual que lhes está imanente. Para a História-Crítica da Arte, revivificada com a crise decorrente do mundo global, o que se coloca é saber re-avaliar o sentido das obras, as ‘antigas’ e as de ‘hoje’ (que são já de ‘ontem’ também), devolvendo-lhes entendimento artístico, a memória do que eram as suas funções, redescobrindo estratégias de sedução que o tempo desvitalizou e refocalizando o caudal de memórias que, afinal, elas nunca deixaram de transportar. Numa cadeira como esta, que busca enfatizar a importância da Teoria da Arte na redefinição da própria metodologia de 'approche' das obras de arte, os vinte autores destacados para análise nas nossas aulas (caso de Hobsbawm) contribuem para delimitar as linhas de pensamento em que a disciplina se debate: a importância do olhar trans-contextual e trans-memorial, o peso da iconologia, a viabilização da Hiastória da Arte como uma antropologia da memória dos códigos artísticos.

Decorrente do facto de o artista ter sido «abandonado por Deus», tal como constata a análise marxista, a arte da Idade Contemporânea pode ser apenas irónica, no sentido sugerido por Friedrich Schiller. Na contemporaneidade, a arte pode apenas exibir a alienação humana. Com nada mais para simbolizar, o simbolismo dá lugar à alegoria. O uso de símbolos abre campo directo a um sentido, mas a alegoria é um agrupamento ou uma colecção indirecta de sentidos. Como resultado da quebra da união dos homens com um sentido de espiritualidade, a arte contemporânea pode ser vista como indirecta e referencial, justamente por estar ligada à ideologia capitalista e ao pensamento burguês, uma ilusão que esconde os factos sobre os quais as crenças são construídas.

 

3.      Marx,  Lukács, Adorno, Dubois, Greenberg

Num ensaio de 1939 chamado Arte de vanguarda e o kitsch, o escritor norte-americano Clement Greenberg (1909-1994) propôs que o socialismo promoveria a liberdade de que o artista de vanguarda necessita, já que o sistema capitalista apenas recompensa o artista que não responde aos anseios da sociedade e que actua, por sua vez, sob a influência de uma dada ideologia dominante. A classe possidente produz uma ideologia em seu próprio benefício, mas avança a ideologia de modo a fazê-la parecer “real”. Ora, longe de ser “natural”, o que a ideologia constrói, sejam crenças ou aquilo aque chamamos «arte», é um acto cultural. É através dos mecanismos de ideologia que o que é cultural se torna natural.

Relações sociais são presumidamente “naturais” e, consequentemente, as pessoas não reconhecem ou não percebem que os meios pelos quais interagem são “culturais”. A ideologia permanece invisível. Uma obra de cultura visual expressa a ideologia dominante, não apenas no que se refere ao que a obra de arte expressa, mas também ao que a obra de arte não diz. A arte possui a marca da história de seu próprio tempo e não é nem atemporal nem transcendente. Longe de ser livre ou independente, o artista de vanguarda é reconstruído, a partir de uma perspectiva marxista, é um intelectual servo do sistema. Como Marx observou, «a burguesia despojou de sua auréola todas as actividades até então veneradas e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio, fez seus servidores assalariados. A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias. (…) [os intelectuais] vivem apenas enquanto encontram trabalho, e (…) encontram-no apenas enquanto os seus próprios trabalhos valorizam o Capital. Esses trabalhadores, que têm de vender-se são uma mercadoria como qualquer outro artigo do comércio, e estão consequentemente expostos a todas as vicissitudes da competição e a todas as flutuações do mercado (…)».

Longe de ser um rebelde, o artista é um trabalhador cultural sem “auréola”. O artista que não reconhece os mecanismos da ideologia é cúmplice de um sistema opressor. A partir de uma perspectiva socialista, qual deve ser então o papel de um artista informado e consciente? De acordo com Auguste Comte, a arte erige-se a partir do estudo da natureza e deve facilitar a contemplação de valores morais. A oposição de Comte, para quem a arte é a representação ideal da realidade, é essencialmente a perspectiva académica que prevalecia na sua época. Décadas depois, Proudhon sugere um papel mais específico para o artista em Du Principe de l’art (1865). O realismo e o naturalismo ultrapassaram o Romantismo nos anos 1860 e Proud’hon viu a arte como possuidora de um papel social que deveria subordina-la a fins sociais e políticos. O que distingue a posição de Proudhon é que esses “fins” seriam a crítica social e a denúncia das suas práticas injustas de dominação dos mais pobres.

Agindo como um crítico ou uma crítica de seu próprio tempo, a artista torna-se assim uma espécie de profeta e um combatente que busca um futuro melhor (o caso de Courbet e do realismo francês). De um ponto de vista socialista, o artista, como servo da sociedade, possui o dever moral de revelar os mecanismos da ideologia apontando a verdade. Não é correcto dizer que todos os artistas e escritores realistas eram socialistas (como o foi Courbet), mas sim que a missão dos realistas em França e Inglaterra tinha como objectivo mostrar a vida na sua nudez. Revelações da realidade dos tempos modernos seriam geralmente consideradas como manifestações políticas, justamente pelas forças que funcionam melhor quando tais verdades eram mantidas veladas pela ideologia.

A Segunda Globalização (a primeira fora a da era dos Descobrimentos portugueses e espanhóis) -- abriu campo para conquistas e também para reforço da exploração do homem pelo homem: nova era de esclavagismo, repressão, intolerância religiosa e cobiça desenfreada. Hoje, ao analisar a realidade dos nossos dias em comparação com a do «largo tempo do Renascimento», descobrimos mecanismos com objectivos idênticos destinados à apreensão do mundo, à multiplicação do conhecimento em rede, para afirmação de interesses pretensamente superiores, fossem militares, económicos e mercantis, ou valores religiosos. No seu ensaio Le Bel Aujourd'hui de la Renaissance. Que reste-t-il du XVIe siècle ? (Paris, Seuil, 2001), Claude-Gilbert Dubois estudou esse fenómeno, em singular cotejo com a realidade global do novo milénio, encontrando idênticos pressupostos de acção entre a realidade dos séculos XV-XVI e a do dealbar do XXI no uso e configuração de uma dimensão estética .

O desabar das experiências que «em nome do Socialismo» foram realizadas a Leste com epicentro na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (onde os princípios da Revolução de Outubro, com sua aura emancipadora, descambaram depois na deriva totalitária do estalinismo) colocou o mundo face a desequilíbrios ainda hoje irresolúveis. Num dos últimos ensaios do já referido Eric Hobsbawm, Tempos Interessantes, o historiador analisou este fenómeno e expressou reservas em relação aos modismos históricos recentes, nos contextos do cenário historiográfico exaltando o fim da História e subsequente dependência da cultura à massificação descaracterizadora. Hobsbawm nota como a busca de um vínculo permanente, de uma fertilização mútua entre História, Ciências Sociais e Antropologia Cultural (seguindo o legado de Marx e a sociologia marxista do conhecimento), não tem sido acompanhada no campo dos estudos económicos.

Depois de largo tempo em que o conceito de ‘ideologia’ submergiu numa espécie de limbo de fim de História, outros conceitos operativos utilizados pela História da Arte, como ideologia imagética, polemicamente avançado por Nicos Hadjinicolaou , voltam a emergir, revistos e depurados do lastro de um ‘marxismo vulgar’, como úteis para a percepção do  chamado facto artístico. No campo das artes, Hobsbawm nota como as ideologias imagéticas foram muitas vezes rejeitadas pelo público, que não as entendia ou via com desconfiança, e se voltava para a revalorização das obras clássicas, ou para as ‘artes populares’, transformadas e incorporadas pela indústria cultural. A verdade é que o consumidor de vanguarda sempre se situa nas camadas mais prósperas, intelectualizadas (mas não necessariamente mais cultas ou informadas) da sociedade contemporânea, nas quais encontra símbolos indicadores de status, que deixammarca na vida das comunidades. É notório, nesta nova globalização, o que tem de contraditório e descontrolado, com o ascenso de ‘poderes apátridos’ e em que a exploração do homem pelo homem se acentua, a apreciação estética continua presente e a constituir espaço de cultura. Retomando a definição de George Lukács («Arte e verdade objectiva», Problemas del Realismo, Cidade de México, Fondo de Cultura Económica, 1966, vol. II, pp. 471-472), a apreciação das artes continua a propor reflectir sobre «um mundo essencialmente do plano dos homens que não se confunde com o processo oficializado de ‘estetização’, próprio de uma estética da mercadoria com ênfase no discurso das formas». A globalização, com suas contradições, derivas totalitárias e aplicações distorcidas, deflagrou um facto inequívoco: as novas possibilidades de olhar e de ver o fazer, pois o papel do singular, o regional, o micro-cultural, assumiram essa possibilidade de se projectarem num plano transnacional – o que vem ao encontro desse desejo profundo da História-Crítica da Arte de encontrar no particular o universal – como diriam Warburg e Panofsky, Deus está no pormenor…

Cremos que, no campo específico da História e da Crítica das artes, tal formulação continua a ser válida nos dias globalizados do presente. A produção da arte, apta a explorar novas sensibilidades no mercado da era global, revela um aspecto que Hobsbawm denegou: que as vanguardas de Novecentos, afinal, não esgotaram a criatividade das formas tradicionais. Nesse aspecto, o vaticínio do historiador sobre a crise e esgotamento das vanguardas não foi certeiro.

 

4.      Casos de estudo

O QUARTO STATO, ou Il cammino dei lavoratori,  pintado em 1901 por Giuseppe Pellizza da Volpedo, pintor italiano formado na academia de Brera  e, depois, em Roma e Florença, constitui um testemunho de pintura realista de signo proletário. «En El Cuarto Estado, da Volpedo siguió las teorías de G. Balla sobre el divisionismo. La obra, cuyo nombre ya es significativo (con el cuarto estado se refiere a un nuevo estamento que se uniría a los tradicionales del antiguo régimen en la nueva estructural social posterior a la revolución francesa: el proletariado; el cuarto estado es aquel grupo social que no tiene cabida en los otros estamentos), representa el creciente éxodo rural que llevó a muchos campesinos a las grandes ciudades en busca de un trabajo y para huir de las condiciones precarias de la actividad agraria». O filme ‘Novecento’, de 1976, dirigido por Bernardo Bertolucci, com Robert De Niro y Gérard Depardieu, divulgou muito o quadro de Volpedo.

Eugène Delacroix (1798-1863) é figura-chave da pintura europeia na viragem do neo-classicismo para o Romantismo. Discípulo de Guérin,  segue de seguida Géricault e Gros, na sua busca de uma pintura mais ruptural, socialmente mais interverntiva e plasticamente atraente. Passa a participar nos Salons de Peinture em Paris, a partir de 1824, com Massacres de Scio (Louvre), vai a Inglaterra em 1825, contacta com os  meios artísticos (Constable, Bonington), apaixona-se por Shakespeare. De novo em Paris, convive com Merimée, Stendhal, Dumas, George Sand. Em 1831, expõe Les Barricades (A Liberdade guiando o povo), eco das jornadas de luta revolucionária de 1830, obra que resume de modo claro a sua abertura ao Romantismo, ligando-o muito a Gros e a Géricault, mas com um registo dramático mais largo, mais épico e transcendente. O quadro evoca os acontecimentos de Julho de 1830 em que foi derrubado Carlos X, com a tomada do poder por uma  monarquia burguesa, com Louis-Philippe d’Orléans. Obra polémica, atacada no Salon, Les barricades foi tida como ‘muito radical’ ou como muito ‘realista’ devido ao modo como alegorizou a Liberdade, como tratou o colorido (azul, vermelho, branco, cores da Revolução Francesa), a oposição de luz-sombra, o modelo tomado para compôr as figuras populares em luta, etc. Victor Hugo, no ano seguinte, inspirar-se-á no quadro para começar a escrever um dos seus mais célebres romances, Les Miserables, só editado em 1862. Les Barricades é uma espécie de ‘poster’ político e, por isso, muito aclamado no contexto das Histórias da Arte que se reclamam do Marxismo. Celebra o 28 de Julho de 1830 e o derrube dos Bourbons, ou seja, um movimento onde o pintor interveio. Segundo G. C. Argan, a pintura (que inclui um auto-retrato do intor) seria mesmo a primeira obra de arte ‘engagée’ da pintura moderna. A Liberdade é uma força abstracta, mais do que uma mulher-símbolo, escreveu Argan, e é esse justamente o sentido universal desta Alegoria política.5.      Ainda a ideologia imagética

Um ensaio integrado na colectânea Estudos de Pintura Maneirista e Barroca (Editorial Caminho, Lisboa, Col. Universitária, 1990) reflecte sobre questões de teorização e metodologia da disciplina da História da Arte a partir do conceito de ideologia imagética proposto pelas teses marxistas do referido historiador de arte grego Nicos Hadjinicolao, analisando-se a sua utilidade operativa no caso da História de Arte portuguesa e as vantagens, e também os limites, do seu uso prático.

Já em Rembrandt, que pinta em 1635 o tema do Rapto de Ganimedes para um mecenas calvinista holandês, os matizes eróticos clássicos sofrem uma mudança radical (e mordaz): a águia-Júpiter rapta um menino (quase um querubim) que urina e treme de medo (Museu de Dresden). É uma pintura que critica a homossexualidade de modo explícito.  O historiador de arte marxista Nicos Hadjinicolaou analisou o quadro sob essa perspectiva da ideologia imagética à luz da ideologia do encomendante.

(outros casos de estudo...)


5.      A Micro-História da Arte e a Sociologia da Arte

O uso do conceito de Micro-História da Arte na análise da produção artística, ao iluminar ‘zonas’ de periferismo, i. e., fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, obriga a ver o tecido artístico – autores, oficinas, clientes, programas, públicos, e fruidores – numa ampla perspetiva comparatista.

É esse ponto de vista que deixa perceber as linhas de ruptura e continuidade, o sopro de originalidade, as linhas de vanguarda e anacronismo, conformismos, e demais valências envolvidas – seja qual for a situação analisada ou o peso relativo dos artistas analisados. A História da Arte portuguesa, tão rica de fenómenos de descontinuidade e permanência dadas as relações de miscigenação lusófonas, pode tirar partido deste conceito (que não se confunde com meras listagens de artistas, artífices e obras regionais, mas com um comparatismo alargado que ilumine as situações em apreço). Por isso, a Micro-História da Arte, ao devolver uma consciência plural aos fenómenos de criação e recepção artística, vem justificar a prática de um olhar microscópico sem arrogância nem preconceitos. busca revalorizar e promover, no campo da teoria e prática dos historiadores de arte, a aplicação do conceito de Micro-História, utilizado pela primeira vez por Enrico Castelnuovo e Carlo Ginzburg na análise do facto artístico segundo uma conjuntura globalizante e uma visão trans-contextual e comparatista mais alargada (História Cultural, Geografia, Antropologia, Sociologia da Arte, Iconologia).

O uso por parte dos historiadores de arte deste conceito de análise microscópica das artes ilumina melhor a produção que emana em situações de periferismo, fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, e impõe um olhar integrado sobre o tecido artístico – artista, oficina, clientes, programas artísticos, públicos, e fruidores no seu conjunto – numa mais ampla perspectiva, que deixa perceber as linhas de ruptura e de continuidade, o sopro original e os anacronismos, o vanguardismo e os conformismos, independentemente do tempo e do espaço em que se situe a conjuntura artística em apreço. Estamos dentro das possibilidades de uma leitura microscópica aplicada ao campo das artes, i. e., uma História vista de baixo (utilizando o conceito marxista de António Gramsci de «classes subalternas»), para melhor se alcançar o âmbito da circularidade cultural percepcionada por Ginzburg e Castelnuovo. Correndo sempre o risco de esta opção de pesquisa, que se baseia na complementaridade de testemunhos artísticos sobreviventes, ser algo de fragmentário (até pela aceitação implícita do carácter conjectural dos dados recolhidos), é inegável que uma análise muito alargada e transversal dos comportamentos colectivos num dado momento histórico permite observar com outra objectividade o que se passou e passa no campo da produção das artes nas suas instâncias plurais, na dialéctica entre reaccionarismo e inovação -- o que só por si justifica e recomenda a prática da Micro-História da Arte (Carlo Ginzburg, Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del '500, Milano, Einaudi, 1976 (trad. portuguesa: O Queijo e os Vermes, Lisboa, Companhia das Letras, 2007). O objecto da História da Arte, como parece estar estabelecido, é o de poder reabrir diálogos com as obras de arte, interrompidos por circunstâncias e razões de gosto, moda, etc, ao alterarem um tecido social e as estratégias de comunicação da obra (ideológicas, materiais,  religiosas, sócio-políticas, iconográficas, iconológicas, trans-contextuais, etc), o que impõe novas formas de as saber avaliar em termos de fascínio perene.  O olhar micro-artístico, ao pôr tónica no estudo integrado da História cultural e da Geografia social, com enfoque na iconologia, contribui assim para um alargamento do comparatismo na nossa prática, deixando ver as obras de arte sem preconceitos académicos ou valorizações subjectivas.

Trazendo à colação historiadores de variada formação e de diversa metodologia, e pondo a tónica na análise globalizante a partir do indício, o historiador de arte José-Augusto França nos lembra que «a historia (da arte) é feita de céu e de terra, e seja qual for a ordem de preferência, a nossa obrigação é procurar num sítio e no outro (mesmo no céu, por inocente utopia) os factos e as crenças que lá estejam, os eventos e os mitos, que eventos são, de outra ordem.»(José-Augusto França, História: Que História?, Lisboa, Edições Colibri, 1996, reed. 2005). Aliás, a questão que se nos coloca é sempre a mesma: dentro da sua dimensão mais ou menos regional (já que todas as obras de arte geradas ao longo da História são fruto de contextos regionais, pois tão frágil se torna definir-se a unicidade da sua permanência ao «centro» de onde emana), o que importa é saber situar e ver as obras de arte -- todas as obras de arte -- como objectos vivos, parcelas de um discurso integral e trans-memorial que interage a níveis históricos, formais, iconográficos, iconológicos, estilísticos e, sempre, estéticos.

O caminho é o da conjugação metodológica de vias: a investigação dos arquivos, a análise laboratorial, a via estilística e comparativa, o re-conhecimento dos dialectos artísticos das obras de per si, na sua dimensão dialéctica de microcosmos de um tempo e de testemunho trans-contextual vivenciado. Também aprendemos isso com José-Augusto França. Recorrendo a alguns «estudos de caso» no campo da pintura portuguesa do Renascimento, do Maneirismo e do Barroco, analiso aqui várias alegorizações da arte da Pintura e algumas manifestações de vanguarda, de continuidade e de reelaboração, com exemplos de obras entre Lisboa, Viseu, Évora, Santarém e alguns ‘focos’ regionais, que abrem pistas para um estudo globalizante das várias situações de ‘centro relativo’ e de ‘periferismo activo’.

Sem se perder de vista o postulado de Pierre Francastel (1900-1970) ao recomendar como ofício primeiro da História da Arte ‘je propose qu’on cherche’ -- que foi, e é, lema de toda a produção crítica de José-Augusto França, o maior e mais internacional dos historiadores de arte portugueses --, a micro-história da arte coloca o objecto de análise artística num plano superior de exigência, uma questão permanente.

 

Aula virtual  devido ao CoronaVírus 

(Vitor Serrão, 18 de Março de 2020)

 

Bibliografia de N. Hadjinicolaou: Histoire de l'art et lutte des classes. Paris, 1973; Art History and Class Struggle. London: Pluto Press, 1978; El Greco. Rethymnon: Crete University/New Rochelle, NY, 1990, vol. 1. : Documents on his Life and Work, vol. 2. El Greco: Byzantium and Italy. 1990, vol. 3. El Greco: Works in Spain, vol. 4. El Greco: Altarpieces in Spanish Churches. Rethymnon: Crete University Press, 1999; El Greco in Italy and Italian art: Proceedings of the Iinternational Symposium, Rethymnon, Crete, September 1995. Rethymnon, University of Crete, 1999.