O conceito de Trans-Contemporaneidade das artes.

4 Maio 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

UM CONCEITO EM REFLEXÃO: A TRANS-CONTEMPORANEIDADE DAS ARTES

Constatamos que a História da Arte é tanto o campo ilustre das produções auráticas como a estrada ínvia da destruição, e esquecimento. É por isso que se torna tão importante estudar os mecanismos fugazes de «apreciação» e «gosto» e afirmar a potencialidade das artes como obras vivas que perduram e põem questões sempre renovadas. É por causa do seu imenso poder impactante (para além das estritas teias da «época») que elas nos atiçam para um olhar estético que é absoluta e permanentemente trans-contemporâneo. É esse olhar que precisa de se reforçar, já que permite, senão apagar, ao menos minorar os actos de iconoclasma e a insustentável miséria de todo o tipo de censura. E, se é possível sonhar, criar pontes mais solidárias entre as pessoas…Afirmamo-lo com plena convicção: é arte contemporânea o painel com um auroque gigante, gravura paleolítica com 23.000 anos, recém-localizado no Vale do Côa (junto à Rocha 9 do Fariseu). Como todas as obras de arte, também esta não prescinde nem de uma percepção trans-contextual que lhe esclareça o percurso, nem de olhares plurais e afectivos que dialoguem com a plenitude das suas auras. É por isso que toda a arte é trans-contemporânea. 

Há que destacar, portanto, a condição trans-contemporânea de todas as obras de arte (tenham elas sido criadas em tempo pré-histórico, medieval, moderno ou dos nossos dias) já que, na sua dinâmica inesgotável, única e irrepetível, a arte é sempre um exercício de engenho que se situa algures entre o desafio, o testemunho e a inquietação. É por isso que de per si se assume um terreno de permanente contemporaneidade na medida em que (disse-o Arthur C. Danto), seja no ontem, no hoje ou no amanhã, elas põem sempre à prova a nossa sensibilidade de interlocutores, para além do seu lastro sacro,  ideológico ou cultural mais preciso. É preciso, dizia Giulio Carlo Argan, saber olhar e ver. História e crítica da arte são faces da mesma moeda, trata de obras que são sempre contemporâneas aptas para a fruição integral do e no nosso tempo. Somos fruidores comprometidos. A arte anseia por integralidade de olhares. A arte tem essa capacidade extraordinária de assumir dimensão trans-contemporânea nas infinitas capacidades de suscitar visões críticas (ontem, hoje, amanhã), mesmo que a cadência de modas, gostos, valências, critérios de aferição, imponha bitolas valorativas distintas...  Tudo ganha sentido nos sentidos, e é plausível sonhar, perceber e, no campo da fé, crer. O estudo da arte sacra proporciona saberes históricos, estéticos, iconográficos, ideológicos, coisas da específica ordem do tempo, da razão, do gosto e da encomenda, sentidos iconológicos, simbólicos, espirituais, parcelas de identidade que formam nexos, cadeias de referência, laços de memória, afectos que perduram e se renovam. A valência aurática que define o território das artes não desaparece pois as obras de arte são de per si trans-contemporâneas. O encontro que temos com a arte é agora», disse Frances Morris, directora da Tate Modern: «As obras de arte não são artefactos arqueológicos: a experiência que desencadeiam é única e singular» (…); «é muito libertador pensar que a História da Arte linear escrita por um determinado conjunto de académicos ocidentais é apenas e só uma narrativa entre outras. Quando pensamos na arte australiana aborígene é evidente que encontramos ali uma compreensão inteiramente diferente da nossa do que seja o tempo ou, por exemplo, o sonho».  Por isso, mais do que aprender com os livros, catálogos e artigos que falam de artes e artistas, o que importa mesmo é o modo íntimo com que vemos as obras: «encorajo toda a gente a ler a História da Arte em livro, mas o encontro de cada um com a arte é agora, não é na história». É, sim, na nossa própria história… 

A IMAGEM ARTÍSTICA COMO EFEITO DE UMA LEITURA  ORGANIZADA «Faire un catalogue ne revient pas à un pur et simple savoir des objects logiquement empruntés. Car il y a toujours le choix entre dix manières de savoir, dix logiques d’agencement, et chaque catalogue particulier résulte d’une option – implicite ou non, consciente ou non, ídéologique en tout cas – à l’égard d’un type particulier de catégories classificatoires. En deçà de catalogue, l’attribution et la datation elles-mêmes engagent toute une ´philosophie’ – à savoir la manière de s’entendre sur ce que c’est une ‘main’, la paternité d’une ‘invention’, la regularité ou maturité d’un ‘style’, et tant d’autres catégories encore qui ont leur propre histoire, ont été inventées, n’ont pas toujours existé. C’est bien l’ordre du discours qui mène, en histoire de l’art, tout le jeu de la pratique». (Georges Didi-Huberman, Devant l’image. Questions posées aux fins d’une histoire de l’art,  Paris, éd. Minuit, 1990).