O papel de intervenção e bondade das Artes segundo as correntes do Humanismo.

18 Março 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Da Guerra e da Paz na arte do século XVI: o ideário humanista em Benito Arias Montano .

O humanista, teólogo e latinista Benito Arias Montano (n. Fregenal de la Sierra, 1527 -- fal. Badajoz, 1598) é uma das mais notáveis personalidades da cultura europeia de Quinhentos. Contribuíu muito, com as suas ideias e textos, para a sedimentação de uma Teoria da Arte de sinal ecumenista e pacifista, defendendo valores de harmonia, diálogo, assente num rigor doutrinário com carga pedagógica e força emotiva, através de uma representação artística com sinal neoplatónico, dotada de largo sentido trans-contextual. Arias Montano manteve estreita amizade com o editor Christophe Plantin, com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse e Rembert Dodoens, e com os melhores gravadores da época. Numa Europa flagelada pelas guerras de religião, e a ameaça do império otomano, explorou relações meta-textuais e imagéticas através da emblemática e o sentido profundo da Ut pictura poesis. Bibliotecário de El Escorial, publicou sobre antiguidade latina, grega, aramaica e hebraica, em  livros eruditos como Rhetoricorum libri IV (1569), o Discurso del valor y correspondencia de las monedas e a Monumenta humanae salutis (1571), e poesia latina  (Hymni et saecula, 1593) e em castelhano, inspirada em Frei Luís de León (escreve, tal como este, uma versão do Cântico dos Cânticos).

Não foram muitos os contactos directos do Dr. Arias Montano com Portugal: em 1578, é enviado por Filipe II a Lisboa para convencer D. Sebastião a desistir da empresa de Marrocos que iria conduzir, meses depois, à tragédia de Alcácer Quibir; em 1580, tem papel decisivo, junto ao rei, para elaboração das teses de Tomar que confirmariam a Monarquia Dual; e pode ter tido um papel relevante de consultor na programação da Joyeuse Entrée em 1581 (a que não assistiu), a crer no relato do simbolismo decorações escrito pelo Dr. Afonso Guerreiro.  É conhecida a missão de Arias Montano de que foi incumbido por Filipe II, junto a D. Sebastião, para demover o rei português a embarcar na empresa de Alcácer Quibir. Mas é o facto de ter sido ele o campeão da legitimização do rei Filipe ao trono português (teses das Cortes de Tomar) que mais deve ter contribuído para o apagamento do nome de Arias no seio da historiografia portuguesa, à luz de um nacionalismo serôdio. As relações de Arias Montano com personalidades como Damião de Góis e Francisco de Holanda permanecem por estudar… 

Perante o fim do antropocentismo renascentista, e a barbárie e o caos num mundo em  desordem que se desfaz nas suas crenças, em que a melancolia e a skize crescem como estados de espírito, Arias Montano propõe uma renovação ecumenista do cristianismo assente num pensamento de tolerância. Assim se explica o magno projecto da Biblia Poliglota, de que o incumbiu Filipe II (1568) junto do editor Cristophe Plantin (1572), sob o título Biblia sacra hebraice chaldaice, graece et latine, Philippi II regis catholici pietate et studio ad sacrosanctae Ecclesiae usum. Em nome dessa visão de paz, usa as imagens bíblicas como lição e advertência.  Obra relevante, edição de Cristopher Plantin (Antuérpia, 1575), com quarenta e oito emblemas desenhados por Crispin van den Broeck e gravados por Philippe Galle, é David. Hoc Est Virtutis Exercitatissimum Probatum Deo Spectaculum, ex David Pastoris Militis Ducis Exulis ac Prophetae Exemplis, onde explorou o carácter polissémico atribuído ao rei-pastor, no contexto das guerras na Flandres ao tempo do Governador D. Luis de Requesens. Aí destaca o ideal do príncipe cristão benigno e tolerante, tão ligado ao historial de David, cujas virtudes são FIDES, PIETAS, PRUTENTIA e TEMPERANTIA, e compara-o ao ambiente terrível nas guerras de religião. A defesa de políticas indulgentes face aos derrotados (exemplo da piedade que a cidade bíblica de Abel-Bet-Maaká demonstrara após entrega do traidor) ofereciam evidente contraste face às barbaridades cometidas pelo Duque de Alba contra os protestantes de Malines e Haarlem...

Ainda não foi alvo da devida análise global o contributo de Benito Arias Montano (1527-1598) como grande humanista do largo tempo do Renascimento para a teoria das artes do seu tempo, em geral, e para a cultura artística portuguesa, em particular. Prestigiado erudito, formado nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares, membro da Ordem de São Tiago, estante em 1562 no Concílio de Trento, primeiro responsável pela Biblioteca do Real Mosteiro de San Lorenzo do Escorial, adepto da família da caridade, amigo pessoal de Filipe II, é mais conhecido pela famosa Bíblia Poliglota e os numerosos estudos de hebraico, grego, aramaico e latim, livros como o Rhetoricorum libri IV (1569) e Monumenta humanae salutis (1571), a poesia inspirada em Frei Luís de León, etc, mas  o seu contributo para a teoria e prática das artes na Península do século XVI, que foi significativo, mantém-se muito subestimado. 

As ideias de Arias sobre a concepção e valor pedagógico das artes, o poder da ars memoriae e a carga emotiva do discurso mostram  que não estava alheado do debate sobre as imagens sacras aberto no Concílio de Trento (onde participou) e, muito menos, sobre a acentuação de uma cultura de raíz neoplatónica. Amigo dos gravadores Cornelis Cort, Crispín van den Broeck e Philippe Galle, dos escultores dos Países Baixos Willem van der Broecke (Palludanos) e de Jacques Jonghelinck, foi instrumento inspirador nas criações desses artistas, sendo responsável pelo modelo composicional usado por tais estampistas. Conhece-se a sua influência em pinturas maneiristas portuguesas, o que atesta que a sua obra circulava e era estimada. O seu interesse pela estampa de livro e o seu pendor por uma política de tolerância, mostram-no sempre atento ao poder das gravuras de ilustração na sua relação com a palavra, a narração, o exemplo, a sensibilização dos olhares e o apego aos sentidos morais. Arias publicou estudos de antiguidade latina, grega e hebraica e temas doutrinários eruditos, mas a sua opus magnum, trabalho enciclopédico de Filosofia e de Teologia, foi a direcção da Biblia Políglota Regia de Antuérpia. Como conselheiro de Filipe II, teve relações com Christophe Plantin, com quem supervisionou esse projecto da Bíblia Políglota, discutindo-o na cúria papal e dando-a à estampa em oito volumes, em 1572. Fruto deste convívio em Antuérpia, onde andou revendo provas, escolhendo estampas junto de artistas e redigindo prólogos, é a amizade que manteve com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse, Rembert Dodoens e, entre outros pintores-gravadores, o famoso Philippe Galle. Como um  dos mais famosos humanistas do Renascimento, orientalista de renome e editor espanhol da famosa Bíblia Poliglota, estudou nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares, foi ordenado clérigo em 1569, foi membro da Ordem de São Tiago, acompanhou o Bispo de Segóvia ao Concílio de Trento em 1562, ganhando grande prestígio como intelectual e erudito. Foi amigo de Filipe II e primeiro bibliotecário no Real Mosteiro de San Lorenzo de El Escurial. Quando retornou de Itália, retirou-se para a sua quinta em Aracena, mas foi convocado pelo rei Filipe II em 1568 para supervisionar a nova versão poliglota da Bíblia, contando no projecto com a colaboração de intelectuais e gravadores de valia. A obra foi lançada pela editora de Cristophe Plantin (1572, 8 volumes) sob o título Biblia sacra hebraice chaldaice, graece et latine, Philippi II regis catholici pietate et studio ad sacrosanctae Ecclesiae usum.

Entre as estâncias em Sevilha, em Roma, Antuérpia ou em El Escurial, e os tempos que passa no seu retiro da Peña de Aracena (um verdadeiro locus amoenus renascentista), Arias Montano dividiu a sua existência. A casa que fez erigir na Peña, sítio de meditação piedosa, tertúlias de humanae litterae, debates teológicos e all’antico, com a sua biblioteca e obras de arte, o seu bosque com rovine, a sua álea de plátanos, e as suas fontes, tornou-se durante os últimos anos de vida o refúgio privilegiado do humanista. A erudição e sensibilidade de Benito Arias Montano para a linguagem das artes foi estimulada pelo contacto com seu mestre Jacobus Vasquus e pelo seu amigo pintor sevilhano Pedro Villegas Marmolejo.

Em nome de uma visão de paz no campo religioso, usa as imagens bíblicas como exemplo e advertência, mas sempre à luz da tolerância. O conhecimento que adquiriu como crítico de arte foi por si usado na cuidada definição de programas de estampas (na Bíblia poliglota e em outros livros), e em grandes empreendimentos como o polémico monumento ao Duque de Alba ou o projecto do Patio de los Reyes de El Escurial. Como inspirador de gravuras, junto aos melhores artistas do tempo, viu-as sempre com uma estrutura tripartida de lema, ícone e epigrama, em que palavra / narração / imagem se articulam num mesmo corpo de coerências. Cultivou o Humor Melancholicus, tal como Lucas de Heere, em Albrecht Durer, em Vasco Fernandes:sintomas saturnianos da crise generalizada vivida na Europa do pleno século XVI, à luz dos conflitos religiosos e da desagregação do edifício de valores do Renascimento. À ordem, estabilidade, harmonia, tolerância, dignidade, utopia do antigo, valor do antropocentismo, da perspectiva, o sentido regulador de uma ‘geometria do mundo’, etc, dão lugar a um estado generalizado de descrença...

Quando se admira A verdadeira Inteligência (Idea) inspira o Pintor, de Cornelis Cort (1533-78) segundo desenho de Frederico Zuccaro, aberta em 1577-78 em Roma, vemo-la acompanhada por longo poema latino onde Arias discursa sobre o papel pedagógico e emotivo do discurso artístico. A gravura (Staatlische Museum, Berlim) recorre à alegorização clássica e aos conceitos neoplatónicos: Apolo como Ideia das Artes a admirar a tela Fraga de Vulcano, com as Fúrias, a Inveja, o Concílio dos Deuses, Ceres, Vénus, Baco, Hércules, as divindades fluviais, Pan, Diana, Marte, Pomona, Saturno, Tétis, Neptuno, etc, num Olimpo onde a Caritas, Prudentia, Benignitas e Fortituto têm valência qualificante do próprio sentido das artes.

É atribuída a Arias Montano a concepção humanística do programa do malfadado monumento que se ergueu ao Duque de Alba em Antuérpia após a  vitória de Jengum, em 1568, com esculturas de  Jacques Jonghelinck (figura de bronze) e Willem van den Broek ou Paludanus (o pedestal). Ambos eram amigos de Arias.  Mas a violência demonstrada pelo Duque de Alba na campanha da Flandres granjeou inimigos, tanto nos Países-Baixos, incluindo círculos católicos, como na corte de Espanha. Após a chegada do novo governador Luis de Requesens, em 1573 (sendo Arias designado conselheiro), e obtida a paz pelo perdão geral de 6 de Junho do ano seguinte (tardia mas bem acolhida), a estátua foi apeada e fundida. Mas eram medidas que chegavam tarde para restituir o prestígio de Espanha, abalado pelas violentas repressões contra as populações protestantes. É de destacar este ideal do príncipe cristão benigno e tolerante, defendido por Arias Montano, tão ligado ao historial vetero-testamentário de David, rei-pastor cujas virtudes são a FIDES, PIETAS, PRUTENTIA e TEMPERANTIA, e compará-lo com o ambiente vivido nas guerras de religião da Flandres. A proposta de políticas mais indulgentes e a defesa da impunidade dos derrotados (a exemplo da piedade que a cidade bíblica de Abel-Bet-Maaká demonstrara após a entrega do traidor) eram , para os leitores do livro, aspectos que mostravam à época mostrava um evidente contraste face às barbaridades cometidas pelo Duque de Alba contra os protestantes de Malines e Haarlem...

                                                           

                                                                            BIBLIOGRAFIA:

Silvaine HANDEL, Benito Arias Montano. Humanismo y arte en España, trad., Univ. de Huelva, 1999.

Juan Antonio RAMIREZ, Dios Arquitecto, Ediciones Siruela, Madrid, 1995.

Juan GIL, Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos), ed. Regional Extremadura, Sevilla, 1998.

Aires Augusto NASCIMENTO, «Erudição e livros em Portugal ao tempo de Arias Montano: a biblioteca do Duque de Bragança», Actas do Congresso Benito Arias Montano y los humanistas de su tiempo, vol. II, 2006, pp. 723-750.

Vitor SERRÃO, «As ideias estéticas de Benito Arias Montano e a arte portuguesa do tempo dos Filipes», Actas do Congresso Portugal na Monarquia Espanhola – Dinâmicas de integração e de conflito (FCSH e Instituto Cervantes, Lisboa, 26-28 de Novembro de 2009) (no prelo).

Idem, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Lisboa, 2008.