Balanço sobre a teoria da arte da Idade moderrna, entre Contra-Reforma e Reforma protestante.
13 Março 2019, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
1. O conceito de restauro storico: Ad Perpetuam Rei Memoriam VS. Ad Majorem Gloria Dei.
O papel renovador do Concílio de Trento para valorizar o património secular da Igreja Católica assentou e teve ênfase na sua reorganização global, numa prática que teve acento na conservação e reconquista da sua auctoritas, na valorização do cristianismo primitivo, na afirmação litúrgica dos cultos específicos (o culto mariano, dos santos, das relíquias e das imagens sagradas) e a definição de princípios artísticos normativos e de contrôle da ecclesia [1]. Com a última sessão conciliar e o debate sobre as normas de representação, a arte sacra passou a reforçar a primeira linha desse princípio da auctoritas, face aos ataques protestantes.
As bases doutrinárias do Concílio de Trento encontram-se, nestas vertentes, reflectidas em obras dos Cardeais Cesare Baronio, Carlo Borromeo e Gabriele Paleotti, e outros autores, nos quais a noção de tempo e a noção moderna de História se reforçam em argumentação e pesquisa. Os livros destes autores tridentinos pesaram na refutação das Centurias de Magdeburgo (Basileia, 1559-74), a compilação de teóricos protestantes (como Iliricus Flacius, entre outros) que criticavam Roma pelo desvio do ideal evangélico. A Igreja Católica assume então um moroso caminho de renovação, onde segue um idêntico método de compilação de textos, segundo uma estrutura inovadora, que permitiu fundamentar as bases de um formidável processo de reforma em todas as suas estruturas. Abriu-se uma ‘cruzada apologética’ dos teólogos católicos, como é o caso do padre jesuíta Roberto Belarmino, que estruturou a defesa teológica da Igreja segundo os princípios tridentinos, através das suas Controvérsias Religiosas (1586-1593). Outra figura de peso no campo da renovação da representação e uso imagem sacra foi o Cardeal Gabriele Paleotti, autor do famoso livro De immaginibus sacris et profanis (1582), onde se defende que a arte cristã tem seguir clareza didascálica, decorum, rigorismo e apego à ut ars rhetorica divina [2].
No campo da arquitectura, o princípio da Restauratio est Rinnovata Creatio veio indicar a subordinação do espaço sacro à liturgia e à necessidade de seduzir as almas (animos impellere). O valor histórico-devocional passa a ser motor da intervenção sobre a preexistência, transformada por necessidades de adaptação (instaurare). São obras como esta que permitem compreender o intrincado processo de restruturação intestina levado a cabo pelos renovadores da Igreja Católica e a atenção que tiveram, nesse contexto, aos aspectos plurais da cultura visual. Seguiu esse caminho, com acento especial no campo do património edificado e nas políticas de restauro storico, o oratoriano Cardeal Cesare Baronio, autor do Martyrologium Romanum, cum notationibus Caesaris Baronii (Roma, 1598), onde se deu destaque ao papel do historiador como investigator veritatis e ao papel das artes como fonte afectiva, documental e pedagógica [3]. Com Baronio, a defesa dos factos históricos através da compilação da História da própria Igreja Católica constitui um pólo de interesses articulados, em que se defendia a análise rigorosa das fontes documentais, filologicamente organizadas, integrando nesse estudo as preexistências arquitectónicas (paleocristãs, românicas e góticas) e seguindo um método de revalorização do património católico em todos os territórios de implantação. As fontes históricas passam a ser objecto de dupla investigação, filológica e patrimonial, abrindo campo dos arquitectos, escultores, pintores e outros artistas para o cumprimento de uma espécie de arte senza tempo pontuando o triunfo de Roma e a autoridade absoluta da Igreja Católica.
Figura-chave da teoria artística de signo tridentino, o Cardeal Baronio proferiu em San Girolamo della Carità, entre 1564 e 1567, várias leccios sobre a História da Igreja, dando início nesta última data à compilação dos seus famosos Annales, com recurso a informação provinda de toda a Europa e do Médio Oriente e a uma eficaz pesquisa de arquivo. Define-se nessa obra de sólida metodologia, baseada no estudo crítico das fontes, o princípio que deveria regular o restauro storico das velhas igrejas e lugares de culto paleo-cristão e, bem assim, as normas para uma nova arquitectura tridentina senza tempo. Em 1596-1600, nas vésperas do grande Jubileu Católico, o Cardeal Baronio coordena uma tarefa emblemática e que servirá de modelo-âncora para ulteriores intervenções no campo da arquitectura sacra: o restauro da igreja dos Sancti Nereo e Acchileo, em Roma. Aí orienta os trabalhos com pleno respeito pela préexistência e com acento no bom uso desse conceito de restauro storico. Segundo observou oportunamente Gabriella Casella [4], as igrejas paleocristãs e medievais deviam ser vistas, segundo explanava Baronio, como opus antiquitatis, ou seja, como monumentos, pelo que era imperioso restaurar as suas estruturas e decorações em respeito à estratificação do tempo.
Assim, o conceito de restauro storico em Baronio é sinónimo de encomenda heróica, de acto providencial de agentes tutelares, de intervenção apta a preservar a memória do sítio hierofânico assente em avaliações qualitativas das existências e das próprias intervenções recomendadas. É por isso que a cumplicidade territorial e a memória histórica da Igreja se fundem, como afirma explicitamente nos Annales, numa força identitária cristã que é comum à vastidão dos territórios abrangidos e que vem consolidar a sua própria auctoritas.
[1] Anthony BLUNT, Artistic Theory in Italy, 1450 to 1600, Oxford, 1962.
[2] Anthony BLUNT, op. cit.
[3] Gabriella Maria CASELLA, O Senso e o Signo. A relação com as préexistências românicas (1564-1700). Contributos para uma História do Restauro Arquitectónico em Portugal, tese de Doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2005.
[4] Gabriella Maria CASELLA, op. cit.