Cripto-História da Arte: as obras fragmentárias e destruídas perdem a sua aura ?
15 Abril 2019, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Cripto-História da Arte: as obras fragmentárias e destruídas perdem a sua aura ?
No corpo de instrumentos de trabalho de que dispõem a História da Arte e as Ciências do Património conta-se o conceito operativo de Cripto-História de Arte, que assenta precisamente no estudo das obras de arte fragmentárias e mortas, ou seja, no papel que cabe aos indícios (mesmo de todo desaparecidos) para a caracterização histórica, artística, cultural, e estilística, dos vários «tempos» patrimoniais. Parte-se do princípio de que esta disciplina científica não deve ser restringida ao estudo das obras vivas, ou seja, os grandes monumentos, edifícios classificados e peças de valia museológica, mas também ao estudo daquelas muitíssimas obras que já desapareceram, por incúria ou destruição.
Acresce a utilidade de se estender esta análise dialéctica assente na noção de fragmento à essência de todo o património visto na sua máxima globalidade, ao estudo daquele que persiste truncado e, até, a projectos artísticos que quedaram inacabados ou não chegaram mesmo a realizar-se. Conceito com útil verificação prática pela comunidade científica, insere-se dentro de um quadro de pesquisa definido em vários níveis de abordagem (cripto-analítico, dedutivo, reconstitutivo, ‘encreativo’). Trata-se de visão alargada em termos teórico-metodológicos, assente na base de dados inventariais como instrumento maior, integrando as perdas patrimoniais no ‘corpus’ exaustivo de bens, ainda que fisicamente já não existam . Tal como a prescrutação micro-artística integrada (recorrendo-se a Carlo Ginzburg), à dimensão de existências em contexto periférico, o conceito alarga este esforço de revalorização ao atentar na valência específica das franjas da paisagem construtiva em espaços de periferismo, incluindo a esfera dos patrimónios a preservar na dimensão desvalorizada das micro-produções artísticas e evitando muitas das inexoráveis perdas que se sucedem no tempo.
Enquanto noção operativa provida de franca utilidade para o alargamento das práticas da H. Arte, a CRIPTO-HISTÓRIA DE ARTE assenta as suas bases de pesquisa cripto-artística em cinco vertentes simétricas e convergentes, a saber:
1 --- a abordagem criptoanalítica; A vertente da cryptoanalysis (ciência que decifra a mensagem em código sem nenhum conhecimento prévio da sua chave) permite à H. da Arte desvendar os ‘indícios’ sem ter aparentemente dados complementares a seu respeito. Obras que foram destruídas (deliberadamente ou por efeito de calamidades) ou tiveram vida efémera podem de algum modo ser reavaliadas através de indagações cripto-artísticas alargadas. Bom exemplo é o projecto de decoração funerária «ao romano» que António Campelo realizou cerca de 1572 para a capela-mor do Mosteiro dos Jerónimos, aquando das exéquias de trasladação dos ossos de D. Manuel I para a nova capela-panteão de D. Catarina de Áustria. Só resta, para a abordagem criptoanalítica, o desenho do mesmo Campelo, inspirado num fresco de Polidoro da Caravaggio em San Silvestro al Quirinale em Roma, que representa a Alegoria à Morte (M.N.A.A). O método de abordagem permite alargar conhecimentos e entretecer uma via lógica de interpretação de como era organizado um programa artístico efémero que a voragem dos tempos de todo destruíu.
2 --- a abordagem dedutiva; A vertente dedutiva, isto é, o enfoque de obras já desaparecidas no conjunto de um ciclo artístico ou na produção geral de um dado artista, decorre da forma dada pela análise visual, documental, estilística, iconográfica, etc, de outras obras do conjunto que subsistiram no presente. O recurso às descrições memoriais e à fotografia antiga, p. ex., apoia o exercício cripto-artístico e assegura a plausível eficiência da análise proposta: veja-se o caso do retrato de D. Violante Gomes, a formosa judia Pelicana, mãe de D. António, Prior do Crato, o malogrado candidato ao trono na crise de 1580, pintado pela oficina de Diogo Teixeira, c. 1578-80, no desaparecido cadeiral do Mosteiro cisterciense de Santa Maria de Almoster.
3 --- a abordagem increativa; O termo metafísico de incriação,ou seja, estudo da obra incriada -- uma obra que foi concebida mas não realizada --, é outra vertente da análise cripto-artística. Trata-se do estudo de obras de arte que fisicamente nunca existiram mas cujos fundamentos e bases programáticas podem ser re-conhecidos a partir de desenhos, fotografias, textos, uma descrição, ou de um outro indício. A coerência de um inquérito histórico-artístico organizado segundo estas vertentes carreia o alargamento da metodologia geral da História da Arte em novas bases.
4 --- a abordagem reconstitutiva; A análise do fragmento ou parte de uma obra parcialmente inexistente, utilizando todas as fontes ao dispôr do historiador de arte, define a via da abordagem reconstitutiva e permite desvendar a possível estrutura inicial da obra em estudo. Bom exemplo é o famoso retábulo da capela de S. Vicente da Sé de Lisboa, que Adriano de Gusmão reconstituíu em 1955 a partir de apenas uma tábua e metade de outra (MNAA).
5 --- e a abordagem cripto-iconológica. Enfim, é à luz da lição da ICONOLOGIA que a pesquisa criopto-artística ganha a sua maior
dimensão: sendo a Iconologia a vertente da H. Arte que desvenda significados e razões ocultas dos programas estéticos, torna-se fundamental na pesquisa iconológica a reconstituição, a dedução, a análise da ‘increação’ e a cripto-análise a partir dos ‘indícios’, caminho necessário para que as obras de arte sejam mais e melhor iluminadas no processo do seu estudo integral.
O sentido dos códigos e dos signos – dos ‘indícios’ – com os seus níveis de significação diversos, abre inesgotáveis possibilidades à fascinação do ver e sentir as obras de arte, tal como elas se nos apresentam hoje, quase sempre truncadas de qualquer coisa que, apesar de tudo, pode ser percebível... É de lembrar que o estudo e revalorização do FRAGMENTO remonta à consciência dos chamados antiquários do Renascimento, como André de Resende e Francisco de Holanda no nosso caso, em torno da descoberta de um primeiro sistema de prova documental baseado na análise e valorização dos INDÍCIOS (aplicados à Numismática, à Epigrafia, etc).