Formalismo versus Iconologia: um exemplo de análise.

1 Abril 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

•«A arte é, doravante, concebida como um certo tipo de processo; a obra de arte é o resultado de um procedimento ou de um comportamento artístico: apenas a experiência dos vários modos de procedimento artístico, ou das diversas “maneiras” dos artistas, pode permitir ao crítico, agora tido como “conhecedor”, de reconhecer que uma dada obra é “autenticamente” artística. (…)»  (Argan, Giulio Carlo. 1988. Arte e Crítica de Arte. P. 134. Editorial Estampa. Lisboa).

Estudo de A Primavera. Sandro Boticelli nasceu em Florença em 1445 e ali faleceu em 1510. Foi discípulo de Fra Filippo Lippi, cujos modelos seguiu nos primeiros tempos da sua actividade, e, à excepção de curto período em Roma (1481-82; obras como a História de Moisés na Capela Sistina), permaneceu sempre em Florença. Esteve ao serviço dos poderosos Medici, em especial de Lorenzo di Pierfrancesco de Medici (primo de Lorenzo de Medici, pessoa muito influenciada pela obras de Poliziano e Marsilio Ficino), para quem pinta entre 1478 e 1484 as célebres obras, Primavera e Nascimento de Vénus. Foi também para Lorenzo di Pierfrancesco que Botticelli fez os desenhos para uma das edições da Divina Comédia de Dante. Pelo que se conhece da biografia do pintor verifica-se que o mestre trabalhou sobretudo para a burguesia florentina e para uma clientela culta de formação neoplatónica. Após os primeiros anos de actividade, o seu modo estilístico foi-se personalizando, afastando-se quer de Fillipo Lippi, quer dos seus contemporâneos Verrochio e Pollaiollo. Os estudos e referências à Primavera e ao Nascimento de Vénus multiplicam-se ao longo dos tempos na História da Arte, em perspectivas diversas (formalistas, positivistas, etc). Na perspectiva iconográfica e, sobretudo, iconológica, são fundamentais as obras de Erwin Panofsky Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental e de Edgar Wind Pagan Mysteries in the Renaissance (trad.: Los Misterios Paganos del Renacimiento). Um estudo recente de Mirella Levi d’Ancona, (Due quadri del Botticelli eseguiti per nascite in Casa Medici, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1997) envolve conceptualizações úteis, a ponderar cuidadosamente, dado que envolvem aspectos polémicos ou redutores.

A eterna «Primavera»: poucos quadros poderão almejar ao estatuto de «Pintura do Século» como A Primavera, de Sandro Botticelli, uma das obras de inspiração mitológica que o autor (criador do género) realizou na década de 1480 à sombra do mecenato da poderosa família florentina dos Médicis. Foi, ao que tudo indica, pintado para um primo segundo de Lorenzo o Magnífico, de nome Lourenço de Pierfrancesco, que se tornaria protector do pintor e fora educado sob a tutela do primo, tendo sido discípulo do poeta Poliziano e do filósofo Marsílio Ficino, o principal animador da Academia Platónica que se reunia num dos palácios da família, a Academia de Careggi, nos arredores da Cidade do Arno. Apesar da controvérsia que a identificação das fontes de inspiração da pintura tem suscitado entre os estudiosos do Renascimento, a leitura de Edgar Wind (Pagan Misteries in the Renaissance, 1968) é a mais abrangente e lúcida, baseando-se precisamente na conjugação de textos antigos e modernos proporcionados ao pintor por Poliziano e ainda nos princípios da Theologia Platonica de Ficino.     O facto de as Três Graças se apresentarem vestidas com túnicas e não exibindo nudez, como viria a acontecer em pinturas de outros mestres e, sobretudo, em épocas mais tardias, decorre, uma vez mais de autores clássicos, como Horácio e Séneca, como é de Horácio que resulta a sua gestualidade e também  o facto de não olharem, exibicionisticamente para o exterior. Aquilo a que Wind chama a coreografia da dança tem, mais uma vez, correspondência nas alusões da literatura clássica: “Ille consertis manibus in se redeuntium chorus” (Séneca). Estes atributos e gestualidade, obviamente decorrentes de fontes literárias, não se limitam a eles porque se limitam  a «reforçar o sentido da acção» (Wind). «Enquanto a “verde” Castitas e a “abundante” Voluptas avançam uma para a outra, a Pulchritudo, mantém-se pura e serena no seu esplendor, aliando-se à Castitas, agarrando-a pela mão e ao mesmo tempo unindo-se à Voluptas num gesto florido» (Wind).Há, naturalmente, um sentido dialéctico neste relacionamento entre as três graças  (e sob este ponto de vista encontramos aproximações entre as perspectivas de E. Wind e de E. Panofsky), sentido esse  que se definirá pela «oposição», «acordo» e «acordo na oposição», todas estas atitudes reflectidas pelos movimentos corporais, pela elegante colocação das mãos que se entrelaçam e, no caso da Voluptas e da Pulchritudo, se unem como que formando uma coroa sobre a Castitas, que elas próprias vão iniciar no Amor e, consequentemente, na tríade que acompanha Vénus. O ideia de Vénus, tradicionalmente identificada com a deusa do amor, sofreu algumas alterações desde as palavras do humanista Pico della Mirandola (que seguiu Plutarco) até Marsílio Ficino que, ao retomar, em versão sua, o mesmo Plutarco,  permite a Boticelli a introdução na dança das Três Graças de um sentido de decoro, sentido ausente da «enérgica vitalidade» (Wind) da relação do grupo da direita, quando Zéfiro se aproxima de Cloris, produzindo uma Flora com o «aspecto de jovem camponesa louçã» (Wind).

  Seguindo à letra a interpretação de Edgar Wind, “quando a Paixão (na figura de Zéfiro) transforma a fugidia Castidade (Clóris) na Beleza (Flora), a progressão representa o que Ficino denominou como «tríade produtiva»”. Daí que, quando estas três figuras se “transformam” nas Três Graças, passam a uma «tríade convertida» em que a Castitas, ao centro, se mantém virada de costas para o observador dirigindo o olhar para o “mais além”. E esse mais além é, nada mais nada menos, que a figura de Mercúrio que ergue o caduceu não para os frutos que pendem da árvore, mas sim para o pequeno grupo de nuvens que se acumula junto dos ramos. Qual a razão da presença de Mercúrio neste conjunto ? Resumindo os textos de Wind e as fontes clássicas, designadamente Vergílio (Eneida) e Boccaccio (Genealogia dos Deuses) teremos que Mercúrio, por tradição o guia das Três Graças, é simultaneamente aquele que conduz ao mais além, simbolizado na pintura pelas nuvens. E, curiosamente, esse mais além pode ser «lido» como a morte, identificável no seu manto pelo símbolo neoplatónico das múltiplas chamas invertidas  (divinus amator). Mercúrio assume, aqui, uma multiplicidade de funções e significados que estabelecem o relacionamento não apenas com os grupos já mencionados, mas também com a deusa Vénus. O deus que domina as nuvens e os ventos “não era apenas o mais astuto e veloz de todos os deuses, o deus da eloquência [...], o guia das almas dos mortos, o acompanhante das Graças, o mediador entre mortais e deuses, o que salva a distância entre a terra e os céus; para os humanistas, Mercúrio era, sobretudo, o deus engenhoso, o do intelecto indagador, sagrado aos olhos dos gramáticos e metafísicos, o patrono dos eruditos e da interpretação, o revelador do conhecimento hermético, do qual o seu bastão mágico ( o caduceu) chegou a ser símbolo” (Wind).Todavia, de todas estas funções, aquela que mais se aproxima do significado do  grupo das três graças, será a da divindade que atinge o «mais além». E não é certamente por acaso que Botticelli representou a Castitas, voltando as costas para o observador e dirigindo o olhar para o mais além representado nos poderes de Mercúrio, seu guia e companheiro. Será ele que romperá as nuvens permitindo o acesso à luz divina.

     Tendo em conta a filiação da pintura nos textos dos clássicos e dos humanistas que retomaram os seus textos e referências, é possível concluir, com Edgar Wind (e também com Panofsky e, menos directamente, com André Chastel), que “não é possível compreender totalmente a composição da pintura, nem entender completamente o papel de Mercúrio, até que se observa a simetria de composição entre esta divindade e Zéfiro”.  Virar as costas ao mundo com o distanciamento de Mercúrio e regressar a ele com a impetuosidade de Zéfiro, são essas as duas forças complementares do amos, de que Vénus é a guardiã e Cupido o agente: «A Razão é a rosa dos ventos, mas a paixão é a tempestade»(Alexander Pope, apud Wind)”. Mais ainda, se Zéfiro simboliza mitologicamente o vento, Mercúrio é o condutor das nuvens e, consequentemente, uma espécie de deus do vento (Ventus agere Merurii est, Boccacccio, in Genealogia dos Deuses). Assim,  “Zéfiro e Mercúrio representam duas fases de um processo  periodicamente recorrente: o que desce à terra como sopro da paixão, regressa ao céu no espírito da contemplação”.


Biliografia seguida n

Aby Warburg, A Primavera e o Nascimento de Vénus de sandro Botticelli, trad,. portuguesa, lisboa, Ymago.André Chastel, Marsile Ficin et l’Art, Genève, Droz, 1996

Giorgio Vasari, Les Vies des Meilleurs Peintres ...., Vol 4, Paris, Berger-Levrault, 1983, pp. 253-266.

Erwin Panofsky, Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, Lisboa, Presença, 1981

Erwin Panofsky, Estudos de Iconolgia, Lisboa, Estampa, 1986

Edgar Wind, Pagan Mysteries in the Renaissance, Oxford University Press, 1980 (ed. espanhola Los Misterios Paganos del Renacimiento, Madrid, Alianza, 1998). Um Mirella Levi d’Ancona, Due quadri del Botticelli eseguiti per nascite in Casa Medici, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1997